Condenação de dono de bar por estupro é histórica e muda jurisprudência
Do UOL, em São Paulo*
14/08/2024 12h52Atualizada em 14/08/2024 15h16
Aviso: este texto contém relatos de abuso sexual, que podem causar gatilho
Dono do bar Bambambã, na Asa Norte, em Brasília (DF), Gabriel Ferreira Mesquita foi condenado nesta terça-feira (13) em 2ª instância em uma das 12 acusações formais que existem contra ele por estupro de mulheres. Foram três votos a dois no julgamento que aconteceu na 6ª turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça), a partir do qual Mesquita deverá cumprir 6 anos de prisão em regime semiaberto.
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A decisão é considerada inédita, pois altera a jurisprudência no Brasil sobre estupro, disseram fontes da acusação e do MP-DFT (Ministério Público do Distrito Federal e Territórios) ao UOL.
Decisão anterior, da 3ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, considerou que não teria havido estupro porque a vítima não se "opôs ou reagiu, de forma séria, efetiva, a fim de demonstrar ao réu a sua inequívoca objeção" ao negar fazer sexo anal com Mesquita (leia o histórico do caso mais abaixo).
Essa decisão muda a jurisprudência no Brasil sobre estupro. Nenhum tribunal do país tinha se manifestado sobre uma questão que já é jurisprudência internacional: de que a violência se caracteriza quando a mulher diz não.
Fonte do MP-DFT, ouvida pelo UOL sob anonimato
O presidente da 6ª Turma do STJ, Sebastião Reis Junior, criticou a decisão do tribunal anterior, ao dizer que os julgadores, quando consideraram que as ações da mulher "seriam incompatíveis com quem foi vítima de estupro, (...) além de indicarem possível desconhecimento sobre o que pode ocorrer em delitos dessa natureza, como traumas, sequelas, passividade e desatinos". Afirmou ainda que a sentença "transmite um viés desatualizado e machista da situação, ao querer estabelecer a forma de agir de uma verdadeira vítima de crime sexual". E concluiu: "a realidade é muito mais complexa".
O que muda na jurisprudência e por que voto é histórico
Ao abrir o julgamento, Reis disse que a Corte deveria apontar se o "não" da vítima, "caracterizado pela expressa e reiterada negativa para a prática do coito, ainda que sem reação mais drástica ou severa, ou resistência heroica de sua parte, é capaz de caracterizar o estupro quando efetivado o ato mediante força física".
Segundo ele, o dispositivo do código penal que tipifica o estupro "não exige determinado comportamento ou forma de resistência da vítima, exige, sim, explicitamente, o dissenso (...), o que restou comprovado nos autos".
Em seu voto, Reis declarou que "a concordância e o desejo inicial da vítima tem que perdurar durante toda a atividade sexual, pois a liberdade sexual pressupõe a possibilidade de interrupção do ato".
Não tenho dúvidas em afirmar que a vítima, ao dizer ao recorrente que não queria e não gostava do sexo daquela forma, pedir expressamente para o réu parar e afirmar que estava doendo, caracteriza reação e oposição efetiva e expressa de censo claro que deveria ter sido respeitada prontamente. Sebastião Reis Jr.
Também votaram pela condenação os ministros Rogério Schietti Cruz e Otávio de Almeida Toledo. Já os ministros Jesuíno Rissato e Antônio Saldanha Palheiro defenderam a absolvição do réu.
Veja o que alguns deles disseram:
Se, apesar da relevância que se dá à palavra da vítima como prova permanecer dúvida fundada, entendo que não tem outro caminho para um julgador de matéria penal do que a absolvição. Antônio Saldanha Palheiro
Não há dúvidas de que as evidências sinalizam para um expresso e reiterado dissenso da vítima que não foi o suficiente para fazer cessar a iniciativa do acusado. Rogério Schietti Cruz
Após a condenação de Mesquita pelo STJ, um membro do MP-DFT, que pediu para não ser identificado, por se tratar de um processo ainda sigiloso, declarou ao UOL: "A violência no estupro não é só bater ou machucar, mas prosseguir o ato sem consentimento. Esse entendimento já existe em tribunais internacionais, mas o Brasil ainda não tinha admitido isso por tribunais superiores".
Até aqui, ainda se entendia que a configuração de violência no estupro precisava de um laudo, comprovando uma lesão corporal, por exemplo, ou de uma ameaça de morte. Essa decisão [do STJ] muda essa jurisprudência e coloca o Brasil em consonância com leis internacionais.
A advogada de acusação do caso, Manuela Paes Landim, acredita que, com a nova jurisprudência, "as mulheres vão se sentir mais protegidas e amparadas nacionalmente". "Em termos de evolução legislativa e sociológica, essa decisão é tão importante porque essa jurisprudência consolidada em um tribunal assegura que a palavra da vítima tem relevância", completou.
Procurado, o advogado da defesa de Mesquita, Bernardo Fenelon, não retornou aos contatos da reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.
Entenda o caso que gerou a condenação
Em fevereiro de 2020, doze mulheres se juntaram e denunciaram Mesquita na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher 1 do Distrito Federal. Ele virou réu em cinco casos.
Neste primeiro processo, a vítima Raquel* contou ter conhecido Mesquita pelo Tinder, em 2018. Eles tiveram um encontro no bar, beberam e foram para a casa dele. Depois de tomar uma bebida preparada por ele, Raquel diz que se sentiu entorpecida.
A relação sexual começou de maneira consentida, disse ela em depoimento, até que ele a virou e iniciou a penetração anal. Raquel pediu que ele parasse, falou que não queria, que estava doendo. "Vai ser rápido", teria respondido Mesquita.
Embriagada e mais fraca do que ele, Raquel decidiu só esperar acabar. No fim, foi ao banheiro e disse que viu que estava sangrando.
Julgado pela primeira vez em 31 de agosto de 2022, na 2ª Vara Criminal do DF, Mesquita foi condenado em 1ª instância, mas recorreu em liberdade.
Em maio do ano passado, foi absolvido de maneira unânime pela 3ª Turma Criminal do TJDFT.
No acórdão, o desembargador Demétrius Gomes Cavalcanti afirmou que o comportamento de Raquel não foi o de uma vítima de estupro, porque não se "opôs ou reagiu, de forma séria, efetiva, a fim de demonstrar ao réu a sua inequívoca objeção". Não havia, portanto, como o réu saber que ela não queria, segundo o magistrado.
Ele também questionou o fato de Raquel ter voltado para a cama e dormido ao lado de Mesquita naquela noite, disse estranhar o porquê de ela ter mandado mensagem para o rapaz depois e ter denunciado o empresário depois da postagem da outra vítima no Facebook.
O desembargador desconsiderou os relatos das outras cinco mulheres que, em 2020, registraram na delegacia queixa contra Gabriel Mesquita por estupro e viraram testemunhas no caso de Raquel.
Na sentença, afirmou que "os elementos de convicção dos autos não demonstraram que o réu tivesse a inteira compreensão de que a vítima passou a se opor de forma séria àquilo que ele fazia, não restando caracterizado, portanto, o dolo".
Por fim, ele afirmou, citando estudiosos do direito, todos homens, que, para configurar estupro, "não basta uma recusa puramente verbal, uma oposição passiva e inerte ou meramente simbólica, um não querer sem maior rebeldia".
MP refutou decisão do desembargador
Os argumentos do desembargador foram refutados pelo MP-DFT e pelo MPF (Ministério público Federal), em maio deste ano.
Em sustentação oral durante sessão da 6ª Turma do STJ, a coordenadora da Comissão de Prevenção e Combate ao Feminicídio do MPDFT e promotora de Justiça, Fabiana Costa, questionou: "Essa resistência heroica é exigida pela legislação penal para a configuração do delito?"
A lei brasileira define estupro como conjunção carnal ou ato libidinoso mediante violência ou grave ameaça, mas, na prática, depende da interpretação do magistrado entender o que é violência.
Na mesma sessão, Paulo de Souza Queiroz, do MPF, declarou: "Crimes sexuais, como todos sabem, são marcados por tabus, preconceitos e muito machismo. (...) A mulher tem o direito de dizer não e o estupro pode ser consumar antes de iniciada a relação sexual, com a negativa da vítima, mas pode também se consumar durante a execução sexual".
O que está em discussão é se há necessidade de uma resistência heroica, como alguns autores defendem (...), ou se basta a mulher dizer não. Então, me parece que há uma mudança de paradigma a se exigir nesse caso, e o STJ deve apreciar essa questão com muito cuidado e muita sensibilidade, pois esse é um tema recorrente neste tribunal de Justiça e será ainda mais recorrente, inclusive, envolvendo esse réu [Gabriel Mesquita], que responde a outros processos. Paulo de Souza Queiroz, do MPF
A promotora também reforçou que o caso tem grande alcance e repercussão e trazer demanda atual de revisão da jurisprudência "para se adequar à mudança paradigmática". "O enfrentamento da quaestio iuris [questão de direito] exige debate e amadurecimento para a construção de um delineamento jurisprudencial que reflita as necessidades dos novos tempos", concluiu.
*O nome foi alterado para preservar a identidade da vítima.