Travesti brasileira em Harvard: 'Ouvi que única opção era ser cabeleireira'

Quando era criança, no bairro de Itaquera, zona leste da capital paulista, Victória Dandara Amorim dizia que queria ir para Harvard, sem saber exatamente que estava se referindo à mais prestigiada universidade do mundo, que fica em Boston, nos Estados Unidos.

Naquela época, ninguém da sua família havia frequentado uma universidade ou saído do Brasil. "Eu nem sabia o que era Harvard, não tinha referências nem de pessoas que foram pra universidade, quanto mais pra Harvard", lembra.

Hoje, aos 26 anos, a advogada formada pela Faculdade de Direito Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), foi aprovada para fazer mestrado em oito universidades norte-americanas bastante renomadas — entre elas Berkeley, Columbia e UCLA. Ao escolher o mestrado em Direito na Universidade de Harvard, se torna a primeira travesti brasileira a estudar na instituição, o que Victória Dandara considera "uma vitória coletiva".

A educação é a única ferramenta para nós. Ouvi de pessoas da família, quando transicionei, que minha única opção era ser cabeleireira, lembra.

"Não há demérito nenhum nisso, mas é muito violento dizer para uma adolescente de 16 anos que ela só tem uma opção. Mas, quando travestis entram e permanecem na educação, conseguimos nos mobilizar e reivindicar outros lugares possíveis. Hoje eu me sento nos mesmos bancos que Barack e Michelle Obama ocuparam anos atrás, e isso é muito potente", cotinua.

O mestrado que Victória Dandara começa a cursar neste mês, em Harvard, a torna apta a prestar o exame da American Bar Association, a ordem dos advogados norte-americanos. Se for aprovada, Victória, que já é advogada no Brasil, poderá advogar também nos Estados Unidos.

Victória Dandara Amorim
Victória Dandara Amorim Imagem: Arquivo pessoal

Ajuda para lutar por todos

Em conversa com Universa, por telefone, nos primeiros dias de aula, a advogada disse não saber com certeza se quer prestar o exame ao final do curso, daqui a três anos, mas que seu maior objetivo é trabalhar com Direitos Humanos:

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O que pessoas trans reivindicam são direitos humanos muito básicos. E, quando reivindicamos esses direitos, estamos falando de cidadania, saúde, educação, direito à moradia, temas que não dizem respeito apenas às pessoas LGBTQIA+, mas a todos os brasileiros.

Para chegar a Harvard, Victória Dandara teve ajuda de institutos que custearam suas inscrições e as provas que precisou prestar — para se ter uma ideia, apenas a taxa de inscrição para a universidade custa em torno de R$ 5 mil, mas também foi preciso pagar as taxas de inscrição das outras universidades e uma prova de proficiência para comprovar que é fluente em inglês. "É um processo muito caro, pensado para pessoas que vêm de famílias ricas, o que não é o meu caso", fala.

Com a aprovação, a universidade de Harvard assumiu os custos de todo o mestrado e permanência dela em Boston, o que inclui alimentação, estadia e até plano de saúde. Mas, para começar o mestrado, a instituição exige que os alunos estrangeiros passem por um curso preparatório, que ensina inglês jurídico e conceitos básicos da lei norte-americana, etapa que Harvard não cobre, ou seja, que deveria ser custeada com recursos próprios — apenas o curso, com duração de cinco semanas, custa cerca de R$ 36 mil, mas era preciso somar a este valor estadia e alimentação.

"Ainda que eu tivesse algum dinheiro guardado, não era suficiente", lembra. Por isso, decidiu criar uma vaquinha virtual, que arrecadou R$ 20 mil, valor que finalmente possibilitou seu ingresso no mestrado de Direito em Harvard.

"Nossa maior ferramenta é continuar sonhando"

Carteirinha de Victória Dandara Amorim
Carteirinha de Victória Dandara Amorim Imagem: Arquivo pessoal
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Há dois anos, Victória Dandara foi, também, a primeira pessoa trans a se formar pela Faculdade de Direito Largo de São Francisco, da USP, em 191 anos de instituição.

Durante toda a sua graduação, ela era a única pessoa trans do campus — embora seja parte da USP, o Largo de São Francisco fica separado dos outros cursos, o que dificultava o contato dela com outros alunos trans.

Segundo uma pesquisa realizada em 2022 pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, 82% das pessoas trans abandonam o Ensino Médio entre os 14 e os 18 anos. Um levantamento da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) aponta para números ainda mais graves: apenas 0,02% dessa população tem acesso ao ensino superior.

Para Victória, sua trajetória só fugiu à regra graças ao apoio da mãe — que, além dela, tem outros três filhos mais novos.

"Pessoas da minha família achavam que o certo era minha mãe me expulsar de casa. Ela teve que ser muito firme para me acolher e isso me abriu portas", fala.

Esse apoio familiar foi decisivo para continuar estudando e, principalmente, continuar sonhando. Não importa quanta força de vontade eu tivesse, se tivesse sido expulsa de casa não poderia continuar meus estudos.

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Com o apoio da mãe, ela conseguiu uma bolsa para estudar em uma instituição privada aos 14 anos — a nova escola, no entanto, era católica e bastante conservadora, justamente na adolescência, momento em que começou a viver sua transição de gênero. Lá, tinha dificuldades para usar o banheiro e era frequentemente desrespeitada por colegas e professores.

Mais tarde, na USP, a situação não mudou muito, e ela continuou vivendo episódios de transfobia.

Diferente da experiência na escola e na graduação, em Harvard Victória convive com outros alunos e instrutores trans, e percebe o espaço muito mais preparado para receber corpos como o dela:

"Algumas dependências do campus têm banheiros sem gênero e, na minha primeira aula do curso preparatório, o professor perguntou qual era o meu pronome, o que nunca aconteceu na USP. Existem coisas a melhorar, claro, mas eles pensam muito mais sobre inclusão e o clima é muito menos violento", conta.

Embora seja a primeira travesti brasileira a estudar em Harvard, faz questão de não ser a última e quer que sua trajetória inspire outras meninas e mulheres como ela:

A nossa maior estratégia política é sonhar. O que o Brasil tenta fazer todos os dias é matar os nossos sonhos, fazendo com que a gente deixe a escola, não tenha uma profissão, por isso nossa maior ferramenta é continuar sonhando. E eu estou aqui também para alimentar o sonho de outras meninas.

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