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'Estupro é arma de guerra': ela foi escrava sexual do Estado Islâmico

Há 10 anos, Nadia Murad foi sequetrada pelo Estado Islâmico e feita como escrava sexual Imagem: Divulgação

de Universa, em São Paulo

24/08/2024 05h30

Nadia Murad tinha 21 anos quando terroristas do Estado Islâmico invadiram sua aldeia yazidi em Sinjar, ao norte do Iraque. Neste dia, em 2014, mataram homens e mulheres velhas demais para serem escravas sexuais. Além de se transformar em uma escrava sexual, ela perdeu seis irmãos e sua mãe, que foram brutalmente assassinados.

Ela não fala dos detalhes da época em que ficou mantida em cativeiro, sendo espancada e estuprada, mas conta que só está viva hoje porque conseguiu fugir em Mossul, também no Iraque, e recebeu abrigo. Dez anos depois, ela tem um Prêmio Nobel da Paz e escreveu um livro sobre os horrores que viveu chamado "Que eu seja a última" (Novo Século). O problema é que não foi.

Hoje, Nadia luta ativamente para que os direitos das mulheres sejam preservados e que o ciclo de violência sexual - principalmente em áreas de guerra - seja interrompido. "Países como o Brasil, que fazem parte do G20, também têm a responsabilidade de trazer essas questões para a frente nos fóruns globais e de se comprometerem a apoiar a justiça e a responsabilização", diz em entrevista para Universa.

Esse é um dos grandes objetivos de Nadia: que grupos terroristas sejam responsabilizados e arquem com as consequências de seus atos de violência.

Para garantir a segurança das mulheres durante os conflitos, o mundo deve tomar ações decisivas em várias frentes. No curto prazo, as sobreviventes precisam de reparação e justiça para reconstruir suas vidas e se recuperar de seus traumas, Nadia Murad

Neste mês, Murad veio ao Brasil para uma palestra na Rio Innovation Week e conversou com Universa. Leia a entrevista a seguir:

UNIVERSA: Você escreveu um livro na esperança de ser a última mulher a sofrer o que ela passou - o que está longe de acontecer. Isso te frustra?
Nadia Murad:
Escrevi esperando que eu pudesse ser a última mulher a sofrer tais atrocidades, mas ver que outras pessoas ainda estão passando por horrores semelhantes é profundamente desanimador. Isso me motiva a continuar lutando por justiça e conscientização, mas é doloroso saber que a violência sexual em áreas de conflitos está aumentando. Mulheres do Sudão, Ucrânia e Mianmar - só para citar algumas - foram submetidas à pior violência que alguém pode suportar. O ano passado foi o pior registrado para esse tipo de atrocidade.

O estupro em tempos de guerra não é apenas um ataque realizado na confusão e no caos do conflito. É um ato intencional de barbárie, com o objetivo de destruir uma comunidade, fazendo com que mulheres vivam com a vergonha e o estigma pelo resto de suas vidas. O trauma que a violência sexual cria não é um acidente, é premeditado.

Escrever sua história foi uma forma de buscar cura para o que você passou?
Quando sobrevivi ao cativeiro, senti que tinha a responsabilidade de compartilhar minha história e a de tantas mulheres que ainda estavam lá. Também escrevi com a esperança de ser a última. Pensei que, se o mundo ouvisse agiria e garantiria que nenhuma garota jovem jamais tivesse que ser vendida, mantida como escrava e submetida a abuso sexual. Queria compartilhar minha própria história, contar ao mundo as barbaridades do Estado Islâmico e os crimes horríveis que eles cometeram contra minha família, comunidade e outros sobreviventes.

Acredito que justiça e responsabilidade são essenciais para a prevenção, e é por isso que tenho lutado para responsabilizá-los e enviar uma mensagem a grupos semelhantes.

Você é a prova de que é possível sobreviver a esses traumas. Mas a que custo?
Conheço muitas mulheres e meninas da minha comunidade que foram levadas para o cativeiro e nunca sobreviveram, incluindo minhas próprias sobrinhas. Milhares continuam desaparecidas. Me considero uma das sortudas por ter sobrevivido e ter a oportunidade de não apenas compartilhar minha história, mas também de dar voz àquelas que ainda estão suportando violência horrível.

Temos uma responsabilidade coletiva de reconhecer que a violência sexual em conflitos é uma arma de guerra, frequentemente usada por grupos radicais em regiões de instabilidade.

É imperativo que pressionemos nossos governos e representantes eleitos a tomarem ações mais fortes para proteger mulheres e meninas da violência de gênero.

Você faz parte de um movimento que busca proteger as mulheres. Houve melhorias na última década? O que ainda é necessário para nos sentirmos seguras?
Ao longo da última década, houve avanços notáveis, embora pequenos, nesse campo. Um desenvolvimento importante é o reconhecimento crescente de que a violência sexual relacionada a conflitos é uma tática deliberada de guerra, não apenas um subproduto.

Por exemplo, o governo do Reino Unido lançou a Iniciativa de Prevenção de Violência Sexual em Conflitos em 2022 e, como parte desse esforço, introduziu o Código Murad - um projeto ao qual tenho a honra de ter emprestado meu nome.

O Código Murad é um código de conduta para jornalistas e investigadores que interagem com sobreviventes. Seu propósito é garantir que elas sejam tratadas com dignidade e protegidas de novos traumas durante essas interações. Tenho muito orgulho de estar envolvida nesta iniciativa e de ver mulheres na Ucrânia usando ativamente o código.

Seu trabalho é uma forma de "honrar" a família que você perdeu nesse horror?
Minha mãe sempre me ensinou a falar, e toda vez que faço um discurso ou encontro um político, penso nela. Lembro-me do estigma que ela enfrentou como mãe solteira divorciada e da força que encontrou para criar 11 filhos.

Recentemente, me formei e espero que ela esteja orgulhosa de ver a menina que trabalhou tanto para educar se formar. Mas minha família foi apenas uma das centenas de milhares afetadas pelo genocídio.

Minha história é trágica e dolorosa, mas também são as histórias de todos os outros sobreviventes Yazidi. Quero honrar aqueles que foram mortos criando um futuro mais brilhante para Sinjar.

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