'Estupro é arma de guerra': ela foi escrava sexual do Estado Islâmico

Nadia Murad tinha 21 anos quando terroristas do Estado Islâmico invadiram sua aldeia yazidi em Sinjar, ao norte do Iraque. Neste dia, em 2014, mataram homens e mulheres velhas demais para serem escravas sexuais. Além de se transformar em uma escrava sexual, ela perdeu seis irmãos e sua mãe, que foram brutalmente assassinados.

Ela não fala dos detalhes da época em que ficou mantida em cativeiro, sendo espancada e estuprada, mas conta que só está viva hoje porque conseguiu fugir em Mossul, também no Iraque, e recebeu abrigo. Dez anos depois, ela tem um Prêmio Nobel da Paz e escreveu um livro sobre os horrores que viveu chamado "Que eu seja a última" (Novo Século). O problema é que não foi.

Hoje, Nadia luta ativamente para que os direitos das mulheres sejam preservados e que o ciclo de violência sexual - principalmente em áreas de guerra - seja interrompido. "Países como o Brasil, que fazem parte do G20, também têm a responsabilidade de trazer essas questões para a frente nos fóruns globais e de se comprometerem a apoiar a justiça e a responsabilização", diz em entrevista para Universa.

Esse é um dos grandes objetivos de Nadia: que grupos terroristas sejam responsabilizados e arquem com as consequências de seus atos de violência.

Para garantir a segurança das mulheres durante os conflitos, o mundo deve tomar ações decisivas em várias frentes. No curto prazo, as sobreviventes precisam de reparação e justiça para reconstruir suas vidas e se recuperar de seus traumas, Nadia Murad

Neste mês, Murad veio ao Brasil para uma palestra na Rio Innovation Week e conversou com Universa. Leia a entrevista a seguir:

UNIVERSA: Você escreveu um livro na esperança de ser a última mulher a sofrer o que ela passou - o que está longe de acontecer. Isso te frustra?
Nadia Murad:
Escrevi esperando que eu pudesse ser a última mulher a sofrer tais atrocidades, mas ver que outras pessoas ainda estão passando por horrores semelhantes é profundamente desanimador. Isso me motiva a continuar lutando por justiça e conscientização, mas é doloroso saber que a violência sexual em áreas de conflitos está aumentando. Mulheres do Sudão, Ucrânia e Mianmar - só para citar algumas - foram submetidas à pior violência que alguém pode suportar. O ano passado foi o pior registrado para esse tipo de atrocidade.

O estupro em tempos de guerra não é apenas um ataque realizado na confusão e no caos do conflito. É um ato intencional de barbárie, com o objetivo de destruir uma comunidade, fazendo com que mulheres vivam com a vergonha e o estigma pelo resto de suas vidas. O trauma que a violência sexual cria não é um acidente, é premeditado.

Escrever sua história foi uma forma de buscar cura para o que você passou?
Quando sobrevivi ao cativeiro, senti que tinha a responsabilidade de compartilhar minha história e a de tantas mulheres que ainda estavam lá. Também escrevi com a esperança de ser a última. Pensei que, se o mundo ouvisse agiria e garantiria que nenhuma garota jovem jamais tivesse que ser vendida, mantida como escrava e submetida a abuso sexual. Queria compartilhar minha própria história, contar ao mundo as barbaridades do Estado Islâmico e os crimes horríveis que eles cometeram contra minha família, comunidade e outros sobreviventes.

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Acredito que justiça e responsabilidade são essenciais para a prevenção, e é por isso que tenho lutado para responsabilizá-los e enviar uma mensagem a grupos semelhantes.

Você é a prova de que é possível sobreviver a esses traumas. Mas a que custo?
Conheço muitas mulheres e meninas da minha comunidade que foram levadas para o cativeiro e nunca sobreviveram, incluindo minhas próprias sobrinhas. Milhares continuam desaparecidas. Me considero uma das sortudas por ter sobrevivido e ter a oportunidade de não apenas compartilhar minha história, mas também de dar voz àquelas que ainda estão suportando violência horrível.

Temos uma responsabilidade coletiva de reconhecer que a violência sexual em conflitos é uma arma de guerra, frequentemente usada por grupos radicais em regiões de instabilidade.

É imperativo que pressionemos nossos governos e representantes eleitos a tomarem ações mais fortes para proteger mulheres e meninas da violência de gênero.

Você faz parte de um movimento que busca proteger as mulheres. Houve melhorias na última década? O que ainda é necessário para nos sentirmos seguras?
Ao longo da última década, houve avanços notáveis, embora pequenos, nesse campo. Um desenvolvimento importante é o reconhecimento crescente de que a violência sexual relacionada a conflitos é uma tática deliberada de guerra, não apenas um subproduto.

Por exemplo, o governo do Reino Unido lançou a Iniciativa de Prevenção de Violência Sexual em Conflitos em 2022 e, como parte desse esforço, introduziu o Código Murad - um projeto ao qual tenho a honra de ter emprestado meu nome.

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O Código Murad é um código de conduta para jornalistas e investigadores que interagem com sobreviventes. Seu propósito é garantir que elas sejam tratadas com dignidade e protegidas de novos traumas durante essas interações. Tenho muito orgulho de estar envolvida nesta iniciativa e de ver mulheres na Ucrânia usando ativamente o código.

Seu trabalho é uma forma de "honrar" a família que você perdeu nesse horror?
Minha mãe sempre me ensinou a falar, e toda vez que faço um discurso ou encontro um político, penso nela. Lembro-me do estigma que ela enfrentou como mãe solteira divorciada e da força que encontrou para criar 11 filhos.

Recentemente, me formei e espero que ela esteja orgulhosa de ver a menina que trabalhou tanto para educar se formar. Mas minha família foi apenas uma das centenas de milhares afetadas pelo genocídio.

Minha história é trágica e dolorosa, mas também são as histórias de todos os outros sobreviventes Yazidi. Quero honrar aqueles que foram mortos criando um futuro mais brilhante para Sinjar.

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