Em 'Renascer', ela leva candomblé ao horário nobre: 'Inácia é marco da TV'
Mariana Gonzalez Régio
Colaboração para Universa
06/09/2024 12h00
Aos 56 anos de idade e 30 de carreira, a atriz e poetisa Edvana Carvalho vive o maior papel de sua carreira - pelo menos em termos de visibilidade e alcance de público. Inácia, de "Renascer", é uma mulher negra, empregada doméstica, por volta de seus 70 anos.
Mas, mais do que isso: uma liderança religiosa que fala sobre fé, uma das primeiras personagens a abordar o candomblé com profundidade, no horário nobre.
Das cenas mais marcantes em seis meses de trama, há diálogos profundos sobre fé, travados entre a ialorixá e um padre (Chico Díaz), e entre ela e um pastor (Breno da Matta) - cenas bonitas, mas sobretudo didáticas, que deveriam ser passadas em sala de aula, acredita a atriz, que também é professora há mais de 20 anos em escolas públicas e também no Bando de Teatro Olodum, que ajudou a fundar na década de 1990, "um espaço onde o preto e a preta poderiam atuar sem estar atrelados a papéis baseados na cor de sua pele".
A docência veio por estratégia de sua mãe, que teve medo ao ver a filha se tornar artista, "uma profissão que não era para nós", e insistiu que Edvana concluísse o magistério.
Mas a atriz só foi para as salas de aula mais tarde, depois de ocupar os palcos: "No Bando de Teatro Olodum, conheci muitos atores que também eram educadores e entendi que a gente precisa ocupar estes espaços para transformar a cultura no Brasil, levar para os adolescentes as mesmas oportunidades que eu tive lá atrás", fala.
Hoje, ao atuar em uma novela de horário nobre com pelo menos metade do elenco formado por atores negros, inclusive a família protagonista, reconhece avanços, mas percebe os efeitos do racismo em sua própria carreira:
Fico feliz que meninas negras sejam chamadas para papéis importantes porque, na minha época, era muito mais difícil. Se eu tivesse crescido com mais oportunidades para ser atriz, não estaria despontando aos 50 e poucos anos.
A Universa, ela fala sobre "Renascer", religião, independência, educação envelhecimento: "A idade é um lugar muito bom, não fossem as dores no joelho", brinca. "Os 50 são o melhor momento da vida. Pique de jovem, mas com sabedoria e experiência".
Universa: Não me lembro de outra novela que tenha retratado as religiões de matriz africana com tanta profundidade e respeito como "Renascer". Na sua visão, qual é a importância desta trama e desta personagem?
Edvana: A Inácia é realmente um marco na teledramaturgia. Ela é uma mulher preta, com mais de 60 anos, uma griô que detém sabedorias ancestrais, e sendo respeitada como alguém que conduz a sua religião. E isso é muito importante.
Respeitam os pastores, os padres, os monges, mas não respeitam a ialorixá e o babalorixá, porque são de matriz africana. Estamos em 2024, não há mais tempo pra não respeitar toda a contribuição que os africanos trouxeram, inclusive a religiosidade.
Além disso, ela é a mulher mais empoderada da novela. Ela se basta, é completamente independente de filho, marido e até do patrão, com quem ela tem uma relação muito mais espiritual, de amizade, do que de trabalho.
E essa relação mostra a importância que o mais velho tem na vida dos mais novos e como as pessoas mais velhas devem ser ouvidas e ter as suas histórias respeitadas.
Além da religião, o que você tem em comum com a inácia? O que emprestou da Edvana para construir a personagem?
Tirando o fato de que ela é uma mulher rural e eu gosto muito da cidade, jamais poderia viver numa fazenda, temos muitas coisas em comum, especialmente essa independência. Eu viajo para fazer meu trabalho e fico um ano fora de casa se for preciso. Tchau, já fui.
Quem estiver se relacionando comigo, tem que entender. Isso não significa só homem, só filho, eu largo o que for preciso.
E tentei emprestar para a Inácia um pouco da minha palhaça. Por mais que ela tenha muitas cenas dramáticas, tensas, eu tento aliviar esse peso com um humor, construindo uma personagem que é birrenta, ranheta, mas também é engraçada, como eram as minhas tias. Ainda que fossem tão austeras, tinham alguma graça.
O riso dela é bem mais contido que o meu, escancarado, que mostra todos os dentes, mas tem humor.
E, até agora, qual foi a cena mais importante de gravar para você?
Eu gosto muito das cenas do primeiro capítulo, quando a Inácia dá de cara com o que será toda a história dela: ela encontra aquele homem [José Inocêncio, interpretado por Marcos Palmeira] à beira da morte e, para salvar a vida dele, tem que recorrer à religião que ela tinha abandonado.
Acho essa cena muito forte porque, depois de salvar a vida dele, ela entrega a fé de volta para as águas, entende que aquele não é o momento.
Apesar de ser uma negação à fé, eu acho de uma maturidade da zorra poder dizer não a alguma coisa quando a gente sente que não é o momento. Ela não tinha maturidade suficiente para servir aos outros através de sua fé e lidar com o racismo estrutural do país que faz tantas pessoas terem vergonha e esconderem a própria religiosidade.
Quando ela retoma sua fé, na segunda fase da novela, ela é uma mulher muito mais madura e muito mais forte. As cenas em que ela conversa com o padre Santo e com o pastor Lívio sobre seu destino, seu odú, são lindas.
Ela fala sobre o candomblé enquanto filosofia, e são cenas muito bonitas e também didáticas, para passar em sala de aula e discutir tolerância, respeito.
Como essas cenas têm sido recebidas num Brasil tão dividido e tão intolerante?
Para você ter uma ideia, recebi a mensagem de uma senhora dizendo que, embora fosse evangélica a vida inteira, sabia que era filha de Iemanjá e se emocionou vendo cenas da Inácia. "Estou em lágrimas", ela disse, porque nunca tinha visto as religiões de matriz africana retratadas desse jeito.
Outro dia, eu estava em São Paulo, fui a um restaurante e um rapaz que trabalhava na cozinha estava me olhando de longe.
Fui até ele para conversar, porque entendi que ele não poderia sair do lugar, e ele me disse: "Você salvou a minha vida". Levei um susto. Ele me contou que tinha vergonha da religião, porque as pessoas falavam muito mal. Mas quando ele viu a Inácia resgatando a fé dela na cachoeira, decidiu voltar à sua religião.
É lindo como a arte toca o coração das pessoas. E não é sobre catequizar ninguém, converter ninguém, mas mostrar a beleza do que é diferente. Nós, seres humanos, temos essa coisa que temer o desconhecido, e aí está o papel da arte.
Diferente da primeira versão de "Renascer", em 1993, que tinha meia dúzia de atores negros, a versão atual tem boa parte do elenco formada por atores negros, inclusive a família protagonista. Como vê essa mudança?
Eu acho que estamos fazendo o dever de casa que a gente deveria ter feito anos atrás. No Brasil, chega a ser chocante ver um monte de gente preta, que faz parte da população brasileira, na televisão.
Mas vai chegar um momento em que as pessoas não serão escaladas para cumprir um número, mas porque serão necessárias naquele momento e naquele trabalho.
Estamos avançando, mas tem lugares da sociedade que, por mais que tenha 3, 4 ou 5 negros, ainda são minoria, não têm os mesmos acessos e os salários não são equiparados.
Fico feliz que meninas negras hoje sejam chamadas para papéis importantes porque, na minha época, era muito mais difícil. Se eu tivesse crescido com mais oportunidades para ser atriz, não estaria despontando aos 50 e poucos anos.
Se eu tivesse surgido agora, como muitas meninas jovens, com certeza aos 30 e poucos eu já estaria brocando por aí como uma atriz conhecida.
Sua formação como atriz começou no Bando de Teatro Olodum, que ajudou a fundar, na década de 1990. Qual é o papel do Bando na sua trajetória?
O Bando de Teatro Olodum é a minha escola, o lugar onde estou na luta como artista. Eu cresci na cidade de Salvador, o lugar com mais pessoas pretas fora da África, e não via montagens que nos abraçassem. O Bando foi um divisor de águas.
Na década de 1990, o teatro estava bombando, reunimos atores de vários lugares da cidade e fundamos o Bando, um espaço onde o preto e a preta poderiam atuar sem estar atrelados a papéis baseados na cor de sua pele.
Foi uma revolução artística. E, naquela época, muita gente daquela época nem acreditava que nós éramos atores.
Não era preciso só brigar por espaço enquanto atores, enfrentar os desafios que a profissão apresenta, mas tivemos que brigar para que nos aceitassem enquanto artistas e não só como ascensoristas de elevador, manobristas de carro. Ou seja, tivemos que brigar com as dificuldades inerentes à profissão, mas também contra todo um sistema racista.