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Ele fez destransição de gênero por violência: 'Desrespeitado por todos'

André Dourado Imagem: Arquivo pessoal

André Aram

Colaboração para Universa

11/09/2024 05h30

Deixar de ser trans no Brasil está, em muitos casos, associado a uma conversão religiosa. Contudo, o brasiliense André Dourado, 39, decidiu fazer a destransição de gênero por vontade própria. Hoje, ele se identifica como homossexual, e sente-se à vontade para compartilhar o seu passado como uma ex-mulher trans.

"Sempre fui uma 'criança gay'. Lembro que aos quatro anos na escolinha, eu e um coleguinha dávamos selinho escondido, mas a professora viu e nos repreendeu dizendo que menino não podia beijar menino, somente menina e quando crescesse. Foi quando entendi que aquilo era errado, talvez já soubesse porque fazíamos escondido, é uma das minhas primeiras memórias de infância.

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Por volta dessa idade, meus pais se separaram. Restaram apenas minha mãe, eu e quatro irmãs, ou seja, um menino em um lar de cinco mulheres.

Como era afeminado, sofri muito preconceito na escola, sempre ouvia dos tios: 'para de rebolar ao andar e engrossa essa voz que tá muito delicado'. Hoje, quando olhos para trás, vejo como consegui me livrar de algumas violências da vida.

Quando se é pobre, periférico e afeminado, sempre tem alguém, um vizinho ou um conhecido que tenta algo [abuso sexual]. Aos cinco anos quase fui estuprado por um rapaz de 18, ele foi flagrado e preso.

Minha família não era religiosa, não íamos à igreja, mas tínhamos aqueles dogmas católicos como rezar antes de dormir, mas não seguíamos nenhuma. Na adolescência veio o interesse [religião], e frequentei algumas igrejas evangélicas, mas não me sentia acolhido ali.

Em uma ocasião, estava na casa de um pastor que morava anexo à igreja, estávamos separando panfletos para um evento e isso já era de noite, quando notei que ele saiu do banheiro apenas de cueca e excitado; ele se aproximou de mim, notei a situação e muito assustado, fui embora. Ali abandonei a igreja e depois passei por quase todas as doutrinas, até me encontrar anos depois no candomblé, pela afinidade e também aceitação.

Interrompi os estudos aos 16 anos, não por bullying, mas porque precisava trabalhar; fui morar com um namorado da mesma idade e algumas amigas. Passamos por muitas dificuldades e várias experiências também, incluindo as drogas.

Masculino demais para ser mulher e feminino demais para ser homem

A primeira vez que tentei a transição de gênero foi aos 19 anos, por meio de hormônios. Sempre convivi muito com mulheres trans, e acabei achando que poderia ser uma. Nós que somos mais afeminados, com trejeitos, somos vistos como masculino demais para ser uma mulher e feminino demais para ser um homem.

André Dourado no início da transição, durante a faculdade Imagem: Arquivo pessoal

Logo depois repensei e desisti, por entender o peso que existia na vida delas, e enxergar sua vivência apenas ali na prostituição, algo que não queria e muito menos a violência.

Mas em 2014, aos 29 anos, ou seja, uma década depois, após refletir muito sobre o assunto, tomei a decisão de me tornar uma mulher trans, e dessa vez seria pra valer. Durante um longo período fiz acompanhamento com psicólogo, iniciei o processo hormonal e me planejei financeiramente. Iniciei a transição enquanto trabalhava como cabeleireiro em um salão de beleza e iniciava o curso de enfermagem.

No primeiro semestre da faculdade, ainda estava com o cabelo curto e saradinho, mas no decorrer dos meses, as mudanças físicas foram acontecendo gradualmente. No retorno das férias, voltei transformada, inclusive com a prótese, aí houve um choque mesmo, muitas perguntas sobre a transição, entretanto alguns docentes me ignoraram, e até insistiam em me chamar pelo nome masculino.

Andrea Dourado Imagem: Arquivo pessoal

Me tornei Andrea Dourado, uma mulher trans de fato. Além da prótese, havia colocado também silicone industrial nas nádegas e quadril, sou de uma geração que ser transexual era ter isso para ter a configuração do corpo feminino. Se não tivesse [silicone e prótese], você era visto apenas como um homem vestido de mulher.

Quando desisti de ser trans

Durante dois anos e meio vivi como transexual 24 horas, mas em meados de 2016 dei inicio à destransição.

Várias razões me levaram a isso, a principal delas foi a minha anulação como pessoa, porque você deixa de existir enquanto ser; você passa a ser desrespeitado de todas as formas, tanto pelos homens quanto pelas mulheres. Eles te olham como um objeto sexual enquanto elas como concorrência.

Como amiga em Brasília, quando ainda era uma mulher trans Imagem: Arquivo pessoal

Certa vez no salão que trabalhava, ouvi incrédula de uma cliente: 'você não [ser atendida], a maioria tá na prostituição, passa a noite com homens, não sei se tomou banho, se está limpa, não se sinta ofendida, mas você sabe que a maioria é assim', disse ela.

Notei que a minha vida social também mudou, você não é mais convidado para os eventos de família e de amigos. Ninguém te chama mais praquele churrasco ou almoço de família. Suas amigas cis se afastam de você porque elas acham que você pegará o namorado delas; os homens héteros se afastam também, eles não querem ser visto com uma trans, se não vão achar que são gays ou estão ficando comigo.

A minha transição e destransição ocorreu no mesmo emprego, mas, de modo geral, não existem vagas para trans, e quando concluí a faculdade eu já sabia que não teria opção de emprego.

É muito preconceito para enfrentar no dia a dia.

Convites para testemunhos em igrejas

André Dourado logo após a destransição Imagem: Arquivo pessoal

Fui convidado inúmeras vezes para dar testemunhos em igrejas, inclusive algumas irmãs minhas e mãe são protestantes hoje, mas sempre recusei, deixando claro que foi uma decisão minha e que não havia um cunho religioso.

Fui muito forte, porque fiz isso sozinho e consegui ter essa compreensão de separar as coisas; porque foi muito difícil a aceitação das pessoas, inclusive do universo LGBTQI+ quando fiz a destransição.

Fui feliz em um corpo masculino e em um dado momento quis experimentar algo novo, e talvez não fosse aquela altura uma pessoa trans de fato, que tivesse a necessidade vital de uma mudança física, como é para muitas transexuais.

O preconceito com a transexual é muito mais pesado, as portas estão mais fechadas, e em tese a vida em si era a mesma, porém carregada de muito mais discriminação, e aquilo era um preço que eu não estava disposto a pagar naquele momento.

Após refletir sobre várias coisas pensei 'acho que posso voltar, posso ter uma vida mais tranquila com a minha sexualidade'. Busquei novamente apoio psicológico e depois a cirurgia para remoção da prótese no peito.

Após a minha destransição, muitas mulheres trans vieram me procurar na época pelas redes sociais. Elas diziam que não suportaria o preconceito da própria comunidade; como iriam se recolocar no mercado de trabalho sendo ex-trans; o corpo já modificado pelo silicone industrial, plásticas no rosto; e muitas não tinham mais dinheiro. Então percebi que não era o único.

Um novo homem gay

André Dourado atualmente Imagem: Arquivo pessoal

Faz oito anos que fiz a destransição, talvez não fosse uma pessoa de mente transexual, entendo isso hoje. Me senti confortável em fazer a transição, era um direito meu, se realmente fosse [trans] estaria pleno, se não fosse, sempre tive consciência que poderia deixar de ser e nada me impediria disso.

Já me relacionei após a destransição e a relação vai fluindo até o momento em que ele descobre ou quando decido contar o passado; aí alguns terminam e se afastam, outros não compreendem, e alguns te acham uma pessoa forte, enquanto outros como alguém instável emocionalmente.

Mas me sinto bem hoje com o meu corpo e como homem gay afeminado.

O maior desafio de uma pessoa trans é existir, é manter-se viva. Estou inserido no meio LGBTQI+ desde os 13 anos, e já perdi muitas amigas [trans], algo que uma pessoa hétero não passa. No universo trans essas perdas são diárias, e sempre de forma trágica.

Sonho viver em um mundo sem julgamentos, onde as pessoas possam viver livremente a sua identidade de gênero e orientação sexual. Viver sem ter medo de existir, sendo realmente quem somos.

André Dourado, 39 anos, cabeleireiro e com formação em enfermagem
Brasília (DF)

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