'Não estaria viva sem a cirurgia': Mandy Candy levou temas trans ao pop
O vídeo no Instagram começa com uma mulher loira de sorriso largo lendo uma pergunta sobre sua vida íntima. E continua: "Caso você não me conheça, eu sou uma mulher trans que fez aquela cirurgia de transformar o jubileu na xibiua, ou seja, pah!". Em seguida, vem a imagem de uma explosão.
É com animação, irreverência e naturalidade que Mandy Candy, nome artístico de Amanda Guimarães, 36, conduz sua produção de conteúdo na internet há mais de dez anos. Seu impacto é tamanho que já foi objeto de pesquisa acadêmica (leia aqui e neste link).
O foco é sua transição de gênero, a cirurgia de redesignação sexual e o relacionamento com o noivo, mas também viagem, moda e beleza. Muito antes, era streamer de jogos e, se pudesse, passaria o dia inteiro jogando Final Fantasy 14.
Mas é preciso trabalhar e se reinventar depois de tantos anos na internet. É sobre esse processo, com toques de passado, visão de presente e futuro, que Mandy conversou com Universa.
Você é uma das pioneiras na produção de conteúdo sobre pessoas trans. Você vê mudanças em como o assunto é tratado e no perfil do público?
Quando comecei a criar conteúdo sobre minha vida foi em 2013, 2014. Eu tinha começado com gameplay e na época não tinha ninguém que falava sobre isso. Como eu morava na China, não tinha com quem conversar. O pessoal começou a falar sobre minha aparência, que eu parecia travesti, e fiquei muito sentida com aquilo, porque nunca tinha me aberto para o público.
Decidi que ia falar, e quem gostava de mim ia continuar me seguindo, quem não gostasse ia embora. Achei que ia perder todos os meus seguidores.
Então, contei toda minha história para os seguidores e alguns amigos que ainda não sabiam que eu era trans, e meu canal começou a lotar de gente querendo saber o que é trans, diferença entre trans e travesti, e comecei a fazer vídeos sobre isso.
Antes, metade dos comentários era hate, tipo "você vai pro inferno", "volta a ser homem". Hoje em dia, posto um vídeo sobre o que a pessoa tem curiosidade e sou recebida com muito carinho. Não chego a ficar chateada quando falam "você era homem e agora é mulher", sendo que sempre fui mulher, mas entendo que a pessoa não tem conhecimento sobre pessoas trans.
E você consegue identificar quando são perguntas genuínas ou quando tem alguma malícia?
Normalmente acho que são perguntas genuínas. Quando é alguém querendo me trollar, eu nem respondo, porque hoje em dia tento focar nas coisas boas.
Você foi alvo de ataques lá atrás e hoje parece ter criado uma comunidade acolhedora. Como se deu esse processo?
Acho que foi um processo demorado. Mas eu recebo mensagens de pessoas que me seguiam, tinham preconceito e por causa dos meus vídeos mudaram o ponto de vista.
Acho que isso se deu pelo meu conteúdo em si. Quando fiquei conhecida, era muito no mundo do kpop, conteúdos sobre Coreia, tinha menos de um milhão de seguidores. Depois fui para 2 milhões sem as pessoas saberem que eu era trans.
E como foi sua vivência em países da Ásia, que têm fama de não serem amigáveis para a comunidade LGBT?
Foi muito melhor que no Brasil. As pessoas não sabem que sou uma mulher trans. Nunca cheguei a sofrer nenhum tipo de preconceito, porque lá é mais velado. As pessoas não vão olhar na sua cara e falar coisas ruins como no Brasil.
Elas podem até pensar e não gostar, mas não falam nem vão atacar.
No Brasil, um dia, eu estava indo trabalhar, passou um carro e a pessoa gritou "travesti" e jogou uma lata de cerveja na minha cabeça. Fiquei transtornada. Nunca passei por isso na Ásia. Foi bom porque eu consegui ser eu mesma. No Brasil, as pessoas sempre me conheciam por ser trans e senti que isso não aconteceu lá.
E era tranquilo também na vida amorosa?
O preconceito nunca era por ser trans, mas por ser estrangeira. Quando voltei para o Brasil, vim com um namorado coreano, mas durou três meses.
Como é para você falar abertamente sobre assuntos tão íntimos, como sua cirurgia?
É natural falar sobre a cirurgia porque foi algo que mudou minha vida e a vida de muitas mulheres trans.
Acho que não ia estar viva hoje se não tivesse feito a cirurgia, se não me visse do jeito que eu me sentia completa.
Tem muita polêmica em volta dela, de que eu ia ser mutilada, que não ia sentir prazer, que ia me arrepender e isso nunca aconteceu. Claro que pode acontecer de dar problema se fizer com médico não capacitado. Mas nunca foi um problema falar sobre isso.
Você lançou recentemente o podcast Hora do Date com seu noivo. O que busca trazer de diferente dos conteúdos que já produziu?
O Marcelo escuta muito podcast e veio com essa ideia. É algo para reinventar minhas redes, até o canal do YouTube, revendo coisas que falei há mais de dez anos que voltaram à tona. Quando faço vídeo de um minuto, não consigo abordar tudo sobre um assunto, mas no podcast consigo trazer um ponto de vista mais amplo.
A gente quer quebrar tabus. Eu gosto de ter essa conversa e minhas seguidoras também. Já falei sobre game, roupa, viagem, mas o que mais conecta é conversando e o podcast é uma conversa.
Ao longo dos anos como criadora de conteúdo, você percebe uma abertura maior para entrar em outros espaços, furar a bolha?
Já tive várias fases. A primeira fazendo conteúdo trans, depois sobre morar na Ásia. Comecei a puxar marcas e pessoas que não estavam ligadas ao assunto LGBT, aí furei a bolha. Quando a pessoa não sabia que sou trans, me seguia e mesmo tendo preconceito, depois via os conteúdos que gostava e ficava. Mas eu adoro falar sobre outras coisas. Passo o dia jogando Final Fantasy 14, adoro viajar, mas não tenho problema com a pessoa me conhecer por ser uma pessoa trans.
O que você gostaria que as pessoas soubessem, então, sobre você além desse universo?
Acho que já contei tudo (risos). Tudo que faço, eu falo, antigamente até mais, quando postava vlog no YouTube. O que eu quero é que as pessoas continuem me assistindo. Quando comecei a produzir conteúdo, eu estava muito triste morando fora do Brasil, passava o dia vendo vídeo no YouTube e criar conteúdo foi uma forma de colocar o que eu pensava para fora.
Conversar com outras pessoas me ajudou muito. Isso virou minha profissão e hoje é gostoso trabalhar com diversas pessoas e saber que estou fazendo a diferença.
Muitas criadoras de conteúdo trans dizem que me viam antes da transição delas, que fui inspiração para elas e hoje elas estão ajudando outras pessoas.
Pesquisando sobre você, encontrei dois artigos acadêmicos que têm o seu canal no YouTube como objeto de estudo. Você sabia? O que acha disso?
Não sabia! Acho que daí consigo sentir que estou no caminho certo criando conteúdo, porque se foi motivo de estudo... Nossa, fiquei muito honrada!