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Ela esperava quatro cirurgias e médico fez 12: 'Só meu queixo não necrosou'

De Universa, em São Paulo

18/10/2024 05h30

A neuropsicopedagoga Letícia Mello, 41, procurou o cirurgião plástico Marcelo Evandro dos Santos, em Florianópolis, para refazer a cirurgia de prótese mamária. No consultório, perguntou sobre um tipo de lipoaspiração e recebeu sugestões de outros procedimentos, que foram aceitos. Mas ao invés das quatro cirurgia esperadas, ele fez 12 procedimentos sem consultá-la.

Todo o processo demorou quase dez horas. De volta ao quarto, ela começou a se sentir mal e, levada para a UTI, viu seu corpo deformar. "Começou a queimar, a necrosar, as bolhas começaram a aparecer", conta a Universa.

Letícia não recebeu explicações do porquê o corpo estava reagindo daquela forma. Outro médico que cuidou dela sugeriu que o tempo de cirurgia, as 11 horas anestesiada, os muitos procedimentos simultâneos e a demora para buscar uma solução efetiva teriam levado ao quadro.

Ao todo, Letícia ficou dois meses internada; na foto, ela aparece logo após as 12 cirurgias Imagem: Arquivo pessoal

Ela denunciou o médico que fez as cirurgias plásticas. Em nota, a Polícia Civil de Santa Catarina informou que o inquérito policial sobre o caso foi concluído na segunda-feira (14) e encaminhado ao Poder Judiciário. Santos foi indiciado por lesão corporal gravíssima.

Vanessa Fioreze, advogada de Letícia, explica que um médico foi contratado como assistente técnico no caso para avaliar as documentações. A conclusão é de que houve erro médico. Além da ação criminal, elas buscam uma ação cível indenizatória por danos morais e materiais. "Ele assumiu resultado de morte", diz a advogada.

Segundo a investigação, Santos descumpriu resoluções do Conselho Federal de Medicina e da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica quanto ao tempo do procedimento, que foi excedido, e o porcentual de gordura retirada, superior a 7%. "Ele poderia responder por dolo eventual ou culpa consciente", sugere Fioreze.

A reportagem ainda não conseguiu contato com a defesa do médico, e o espaço segue aberto para manifestação.

Leia relato de Letícia

"Eu fazia massagens semanais e sempre que me deitava de bruços, meu seio doía. Coincidentemente, uma amiga me ligou dizendo que estava com câncer de mama, então fui fazer um ultrassom e lá apareceu que minha prótese estava mastigada.

Comecei a procurar na internet e apareceu o doutor Marcelo. A página dele é muito bonita, ele se porta muito bem. O consultório dele é num lugar rico da cidade, muito bem centralizado. Paguei R$ 500 e fomos na consulta, eu e meu marido.

Ele foi muito atencioso, me mostrou todas as próteses e fotos que ele diz que são pacientes dele —muitas que pareciam antigas. Eu acreditei nele. Fomos para a frente do espelho, tirei minha roupa, e ele tocou no seio, levantou, disse que ia ficar 'um peitinho bem lindo e duro'.

Letícia acompanha pessoas com autismo, escreveu livro sobre o tema e promove palestras Imagem: Arquivo pessoal

Perguntei sobre a lipo LAD, que tinha visto no perfil dele. Ele tocou minha barriga e disse que toda a flacidez podia sair com o procedimento BodyTite. Disse que tiraria a gordurinha das minhas pernas, olhou minha bunda e disse que tinha uma depressão do lado que, tirando as gorduras das costas, poderia enxertar ali para melhorar.

Depois disso, a gente saiu convencido de fazer com ele, mas ainda sem saber o preço. Uma funcionária dele veio com um espumante para a gente brindar e depois veio a moça para passar o valor: foram R$ 83 mil ou 85 mil pagos à vista para ele.

Eu não fui avisada do que aconteceria na cirurgia. As nossas conversas foram para mostrar as fotos, falar que eu iria ficar bonita e mostrar o tamanho da prótese. Não me passou os riscos. Para mim, era seio, barriga, bunda e costas, quatro procedimentos. Se ele falasse que seriam 12... mas não fui avisada.

'Ele assumiu o risco'

Ele pediu diversos exames e um deles deu alteração. O laboratório me ligou pra avisar e perguntou se eu queria refazer ou conversar com o médico. Fui conversar com ele, que viu todos os exames e disse que estava tudo bem, só com uma vitamina baixa que era para repor.

Hoje, ele está dizendo que a culpa é do meu corpo. Que eu, por ser negra, por ser afrodescendente, tenho uma síndrome muito rara, a anemia falciforme (que seria um complicador), mas tenho todos os exames e já buscamos hematologistas. E se isso fosse verdade, nas minhas cesáreas e nas outras cirurgias eu já teria tido complicação.

Ele assumiu o risco de me levar para a cirurgia. Se ele alega isso, é mais uma coisa contra ele, porque ele viu o exame. Na consulta pré-operatória, eu perguntei pra ele se o BodyTite ia queimar a barriga, porque uma amiga tinha falado de outro procedimento que queimava, e ele falou que jamais isso poderia acontecer.

Foram 9 horas e 56 minutos de cirurgia no dia 29 de fevereiro, mais de 11 horas anestesiada. Quando voltei para o quarto, senti meu rosto mole, o lado direito paralisado, com baixíssima resistência no falar, no respirar e muitas dores. Eu estava praticamente desmaiando.

Como ele tirou mais de 7% de gordura permitida do meu corpo —ele disse que tirou sete litros—, eu perdi todas as minhas forças. Recebi seis bolsas de sangue, que quase me levaram a óbito.

Eu fiquei toda inchada, sem respirar e o hospital onde eu estava não tinha uma UTI equipada. Me transferiram para outro hospital e vi que eles estavam apavorados, mas não falaram em nenhum momento o que era.

Fizeram ressonância e viram que meu pulmão e meu coração estavam cheios de água. Fiquei oito dias na UTI, onde meu corpo começou a queimar, a necrosar, as bolhas começaram a aparecer em quase todos os locais em que ele me tocou.

O único lugar que ele mexeu e não necrosou foi o meu queixo. Quando eu me deitei para fazer as cirurgias, a instrumentadora ou a enfermeira perguntou para ele se ia ter papada. E ele disse que sim. Eu deitei e ali eu não lembro de mais nada. Não foi combinado antes, foi uma decisão dele.

'Gritei por dois dias inteiros'

Foram 20 dias aos cuidados dele, ou não cuidados. Foi muito sofrimento. Nenhuma explicação foi dada durante todo o tempo de internação.

Minha família perguntou se não seria bom chamar dermatologista, e ele falou que não, que estava tudo sob controle. Ele indicou oito sessões em câmara hiperbárica, que segundo ele faria minhas células se regenerarem.

Perguntei se ele ia nos ajudar a pagar, mas disse que não, que aquilo era uma responsabilidade minha, era como meu corpo estava reagindo. Ali tive mais um gasto de R$ 8.000.

Primeiro dia que Letícia saiu sozinha depois de todo o processo no hospital e retorno para casa Imagem: Arquivo pessoal

No dia 20 de março, minha família encontrou outro médico cirurgião que passou a cuidar de mim. Fui transferida de hospital, onde foi feito um desbridamento, a tirada de toda a parte necrosada do meu corpo. Fiquei uma semana na UTI esperando o corpo responder.

Sobrevivi a isso e começaram outros procedimentos. Ao todo, foram seis, tirando enxerto da perna para colocar na extensão da barriga. Foi algo tão doloroso quanto queimar, eu gritei por dois dias inteiros e mesmo com doses cavalares de morfina e metadona, a dor não ia embora.

E foi tudo particular, porque eu não tinha plano de saúde. Foi feito um empréstimo de R$ 600 mil para que eu estivesse viva hoje. Sei que esse dinheiro não vai voltar e não estou nem aí para o dinheiro, vou trabalhar o que for para pagar. Mas ele nunca mais vai fazer isso e outras mulheres vão se libertar das dores, das depressões, das sequelas que elas têm.

Durante a minha internação, a gente fez o boletim de ocorrência e foi solicitada uma perícia no hospital, mas acabaram não indo. Quando saí do hospital, fomos ao Instituto de Perícia para fazer o exame de corpo de delito. Acredito que ele não esperava que isso acontecesse, que eu pudesse fazer isso.

'Peço justiça'

Em acompanhamento psicológico, Letícia se reencontrou no novo corpo Imagem: Sheronh Keily

Recebi alta no dia 1º de maio. Perdi os dois mamilos, o seio, não posso mais amamentar. As minhas costas ficaram abertas e fecharam completamente no último domingo (13).

Vim pra casa com muitas dificuldades para andar e respirar, toda inchada, sem os movimentos do meu corpo. Fazia oito meses que a gente tinha realizado o sonho da casa própria depois de 18 anos trabalhando. Nosso quarto tem um espelho de cima a baixo, na sala também, e quando pude me ver no espelho, a vontade era de me matar.

Mas eu pensei rapidamente na minha família. Entrei numa depressão profunda, acompanhada por psiquiatra, psicólogo, fisioterapeuta, fazendo pilates para recuperar os movimentos.

A cada dia 29 eu ficava cada vez pior. Nesse meio tempo, conheci outras mulheres que foram vítimas dele, que entraram em contato comigo. Então, decidi abrir minha voz, falar sobre isso, para que ele não fique impune e para que as vítimas dele tenham coragem, porque eu fui a única que fiz um boletim criminal.

Eu já perdoei ele, porque tenho certeza que ele não entrou na cirurgia para me matar, mas, a partir do momento que ele me deixou para morrer e foi negligente, ele assume esse risco. Então, por isso eu peço justiça.

Hoje, eu, meu marido e meus dois filhos fazemos acompanhamento psicológico. Eu saí do hospital tomando 30 gotas de clonazepam para dormir e mais um zolpidem, porque eu tinha terror noturno. Estou bem feliz que hoje reduzi a dose, o que para mim é uma vitória muito grande.

Psicologicamente, posso dizer que estou uns 60% curada e espero tão logo estar 100%. Hoje eu falo forte e corajosa, mas ainda dói, a minha mão ainda fica suada, ainda dá vontade de chorar, mas sei que vivi por um propósito, não é à toa que estou aqui."

Procure ajuda

Se você está emocional ou psicologicamente instável, procure ajuda no CVV (Centro de Valorização da Vida), que funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente.

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