'Nossa vida acabou': médico fazia 'cirurgia X-tudo' com plástica de brinde
O cirurgião plástico Marcelo Evandro dos Santos se vendia muito bem pelas redes sociais. Nas primeiras consultas, era atencioso e gentil. Mas depois que as cirurgias resultavam em consequências graves, se mostrava negligente.
Quando as pacientes pediam ajuda e respostas sobre o que estava acontecendo com seus corpos —necrose, infecção, abertura dos cortes—, ele dizia para aguardar a próxima consulta, que ia melhorar. Argumentava que elas estavam ansiosas e receitava zolpidem.
É assim que mais duas mulheres atendidas por ele e ouvidas por Universa descrevem o modus operandi do médico. Indiciado por lesão corporal gravíssima após o caso de Letícia Mello, agora ele acumula pelo menos 20 denúncias no Procon de Santa Catarina, que abriu processo administrativo contra ele.
Na última semana, a Polícia Civil do estado registrou seis novas denúncias. O MPSC (Ministério Público de Santa Catarina) investiga a regularidade da atuação dele. A apuração quer verificar se cirurgias conhecidas como "X-Tudo" —feitas em várias partes do corpo ao mesmo tempo— são permitidas e têm fiscalização.
Pacote de cirurgias e brinde
"Fiquei encantada, ouvi tudo o que queria", lembra a empresária Diana Antunes, 37, sobre a primeira consulta com Marcelo Evandro em 2020. Ela tinha o sonho de se sentir mais bonita com prótese nas mamas e lipoaspiração na barriga.
O médico sugeriu outros procedimentos: mastopexia para levantar os seios e abdominoplastia. Se ela fizesse o combo, ganharia enxerto no glúteo "para ficar mais bonito". No fim, a lipo seria feita nos joelhos, coxas, barriga, costas, braços e papada.
Diana já tinha consultado outros cirurgiões, que preferiam fazer os dois procedimentos que ela queria em cirurgias separadas. Marcelo foi o único que aceitou juntar tudo e fazer mais.
"Ele disse para não se preocupar, porque tinha médico auxiliar e em dois conseguiria fazer. Me programei e marcamos a cirurgia", conta. Todo o procedimento durou mais de dez horas, lembra o esposo dela, que ficou "apavorado" com a demora.
Já no quarto, quando uma enfermeira foi até ela para passar um óleo nos seios, a empresária viu a pele em carne viva. "Quando o Marcelo passou, acho que no dia seguinte de manhã, perguntei sobre a queimadura no seio, ele disse que era só reação alérgica."
Em casa, ela sentia dores na região ao tomar banho. Em consulta na semana seguinte, os mamilos estavam desalinhados, um mais alto que o outro, os cortes estavam tortos e nos pontos do peito e da barriga havia se formado uma bolha roxa.
Com o passar dos dias, a bolha virou uma casca dura e escura. Estava sempre mandando fotos, consultando ele, e ele falava que era só inchaço, que ia melhorar. Eu ficava inquieta, só ouvia e tinha esperança de ficar com peito bom, porque sempre tive um sonho de mama bonita. Diana Antunes
Depois, ela notou um buraco no seio e novamente pediu ajuda, mas o médico disse para esperar. Com piora do quadro, ele a atendeu para avaliação e constatou necrose da pele.
No consultório, ela relata ter ficado "deitada na mesa como se fosse maca de dentista". "Ele me deu remédio para ficar sonolenta, anestesia local e orientou o auxiliar dele a fazer meu peito (tirar a necrose) e refazer os pontos."
Um tempo depois, a pele do seio começou a descolar, e novas fotos e mensagens foram enviadas ao médico, que pedia paciência. "Ele tinha me dado zolpidem para dormir, disse que eu estava muito ansiosa e tinha que esperar a próxima consulta."
Teve um dia que mandei mensagem, e ele perguntou o que eu queria que fizesse numa sexta à noite. Também falou que, na próxima consulta, se meu marido pudesse não ir, era melhor, porque ele não queria olhar pra cara dele de reprovação
Diana fez procedimento de reconstrução, mas ainda fará outros. "Fiquei com mama pequena e cicatriz, meu marido não toca no meu seio. Agora, busco especialista pra ver se consigo reverter."
Segundo o promotor de justiça Wilson Paulo Mendonça Neto, do MPSC, esse tipo de combo cirúrgico teria potencial para induzir a pessoa ao erro e ao risco de saúde.
"Além da insatisfação com o resultado, verifica-se que as pacientes teriam sido induzidas a erro pela falsa promessa de que após os procedimentos cirúrgicos oferecidos teriam a garantia de resultados satisfatórios, o que não restou demonstrado pelos indícios prévios angariados", disse.
Sonho em pesadelo
A sanitarista Andréa Coelho Pieper, 52, também confiou em Marcelo Evandro para trocar a prótese de silicone, retirar uma lesão benigna do seio e fazer lipoaspiração. Igualmente, foi taxada de ansiosa enquanto passava por um processo de infecção generalizada.
Ela conta que o primeiro contato com ele foi em 2021 para tirar dúvidas sobre a possibilidade de cirurgia, porque já tinha tido dois episódios de tromboflebite (coagulação do sangue). Com orientação do médico vascular dela, realizou os procedimentos em setembro de 2022.
"Iniciei o ato cirúrgico por volta de 8h30, 8h40. Me recordo de voltar para o quarto cerca de 22h, já sem condições de respirar com tranquilidade", relata.
Me sentia muito mal, muito impotente, o corpo muito enfraquecido. Achei estranho, porque já tinha passado por outras cirurgias e nunca havia me sentido daquela forma. Como trabalho na área da saúde, fico mais ligada. Andréa Coelho Pieper
No dia seguinte, uma fisioterapeuta avaliou o seio esquerdo dela, onde uma necrose já se formava. Tratamentos com ozônio e laser tentaram recuperar a pele, mas o quadro piorou.
Marcelo e um anestesista que acompanhou a cirurgia foram vê-la em seguida e liberaram a alta dela, mesmo sob reclamação de que não se sentia bem. De casa, foi enviando fotos para o médico da necrose tomando conta do seio.
Acabei tendo uma infecção generalizada porque não tive acompanhamento efetivo. Descobri isso porque durante 13 dias fiquei em sofrimento, indo e vindo da clínica dele. Eu já tinha desmaiado três vezes, a terceira foi na frente dele, e ele falava que eu estava ansiosa e precisava me alimentar melhor. Andréa Coelho Pieper
Internada na UTI após 14 dias da cirurgia, Andréa teve a prótese e o seio esquerdo removidos.
"Continuei hospitalizada por mais dez dias em UTI e, durante esse período, ele apareceu uma única vez, depois de tanto os intensivistas pedirem para ele ir até lá para tirar o dreno. Ele não respondia, não dava retorno, foi uma total negligência."
Depois que o médico atendeu ao chamado e ela recebeu alta, foi a vez do seio direito infeccionar. A prótese foi contaminada pela bactéria que tinha atingido o lado esquerdo e precisou ser retirada também.
No lado esquerdo, a infecção chegou às três camadas de pele, e Andréa perdeu músculos da região. Em 2023 e neste ano, passou por três cirurgias para reconstruir as mamas e deve fazer mais uma em 2025 "para tentar chegar próximo do meu normal".
Além das consequências físicas, as mulheres falam em danos emocionais. "A gente sabe que as feridas deixadas na gente, na nossa história, não serão recuperadas. São marcas que ficam", diz Andréa, que faz acompanhamento psicoterapêutico com medicação.
"Até hoje tomo remédio para ansiedade, antidepressivo e faço terapia", diz Diana. "Ele não é humano. Além de acabar com a vida da gente, com a autoestima, faz com que nos sintamos culpadas."
Denúncias e processos
No início deste ano, Andréa entrou com processo cível contra Marcelo e o denunciou junto ao CRM-SC (Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina) no começo de setembro. Na semana passada, registrou boletim de ocorrência.
Cada um tem seu tempo. Fui buscar justiça de maneira silenciosa esse ano, porque já tinha começado o processo de reconstrução e comecei a me sentir preparada para enfrentar isso. Agora preciso reviver, me reinventar. Andréa Coelho Pieper
Em nota, o CRM-SC disse que "está apurando a conduta profissional do médico citado pela reportagem, através da instauração de sindicância". A entidade disse que não se manifesta publicamente sobre processos em tramitação, em conformidade com a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2.306/2022, "que exige que a investigação pelos CRMs, de qualquer caso envolvendo a atuação médica, ocorra de forma sigilosa".
No CRM de Santa Catarina e do Paraná, há três registros de sanções disciplinares contra o cirurgião —de 2017, 2019 e 2020—, uma de suspensão do exercício profissional por 30 dias e duas de censura pública.
Segundo os documentos, ele infringiu o Código de Ética Médica quanto a causar danos a paciente por imperícia, imprudência e negligência, delegar a outros profissionais ações exclusivas da profissão médica e anunciar títulos que não possam ser comprovados ou especialidade para a qual não esteja qualificado.
Diana também processou o médico em 2020, mas perdeu a causa que se encerrou em 2023. Ainda no ano passado, Marcelo a procurou por mensagem: "Você me esquece antes que eu faça seu bolso nunca mais me esquecer", escreveu ele.
A empresária explica que o contato ocorreu depois de ela conversar com outra paciente dele sobre os danos das cirurgias. Ele ainda argumentou que faria uma nova cirurgia de reparação em Diana, que devia ter esperado, mas ela afirma que não foi informada sobre a necessidade do procedimento.
Consultada, a SBCP (Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica), a qual Marcelo Evandro é associado, informou que não tem poder de julgar, fiscalizar ou comentar publicamente o caso, o que cabe apenas ao CRM ou CFM. Questionado, o CFM não retornou o contato.
Universa tentou contato com Marcelo por e-mail, mas não teve retorno. Também não encontrou a defesa do médico. O espaço segue aberto para manifestação. A reportagem não teve acesso ao perfil do médico no Instagram, que está privado, mas recebeu uma nota de esclarecimento compartilhada por ele na rede social.
Nela, Marcelo Evandro diz que todas as cirurgias são previamente explicadas e aceitas pelas pacientes. Afirma que "jamais foram realizadas cirurgias em número excessivo (...) e sim quando muito 2 a 3 procedimentos". O prontuário médico de Diana inclui quatro: lipoaspiração, enxertia glútea, abdominoplastia e mastopexia com prótese.
Risco mínimo deve ser informado
Toda e qualquer cirurgia é passível de risco, que pode ser minimizado ou aumentado conforme as condutas adotadas e materiais utilizados. A resposta do organismo de cada pessoa também deve ser considerada.
"Em uma lipoaspiração grande, o risco de necrose existe. Esse risco é calculado, tem estatística, e o médico tem de informar o paciente que tem risco pequeno, mas pode acontecer", diz o cirurgião plástico Alexandre Kataoka, perito concursado no Instituto de Medicina Social e Criminologia do Estado de São Paulo.
Segundo ele, fazer a lipo em região mais superficial, deixando a pele mais fina, usar mais aparelhos que fornecem calor e infecções estão entre os fatores que aumentam o risco de complicações. "E estatisticamente, quanto maior o tempo de cirurgia, maior o risco."
Não há uma norma sobre quanto tempo uma cirurgia pode durar, mas um score de risco sugere que de quatro a seis horas é mais seguro. "Isso cabe ao médico e ao paciente quanto ao risco cirúrgico de cada um. Uma pessoa jovem sem doença nem comorbidade pode aguentar uma cirurgia maior", comenta.
O que se deve respeitar são os parâmetros de segurança da resolução 1.711/2003 do CFM, que estabelece de 5% a 7% o volume de gordura a ser retirado. Também não se deve realizar lipo numa superfície corpórea acima de 40% —comparando, uma palma da mão equivale, aproximadamente, a 1% de superfície corporal. Violações ao artigo caracterizam imperícia e imprudência médica.
Sobre o número de procedimentos que podem ser feitos ao mesmo tempo, não há norma. A indicação do médico é baseada no perfil e condição clínica do paciente, extensão da cirurgia, avaliação pré-operatória e eventuais riscos.
"Isoladamente, o número não é fator de risco. O risco depende da extensão dos procedimentos realizados. Mas uma lipo de dez horas que opera mamoplastia com abdome é mais perigosa do que uma que demora cinco horas, em média, localizada e controlada", diz Marcelo Sampaio, cirurgião plástico e vice-presidente da SBCP.
Erro médico ou complicação possível?
Apenas uma perícia pode avaliar e apontar o que realmente pode ter acontecido. Kataoka explica que complicação é um evento adverso que pode acontecer devido a cuidados errados —por parte do médico ou do hospital— ou por algo do próprio corpo do paciente.
O laudo pericial vai mostrar se houve nexo de causalidade entre os problemas e as ações do profissional, que pode incorrer em imperícia, imprudência ou negligência. Além de seguir normas e parâmetros, o acompanhamento médico também é avaliado.
Constatada ausência do médico e de cuidados que poderiam minimizar complicações, a conduta é caracterizada como negligência. "Se tem avaliação mais de perto, o tempo de tratamento diminui e reduz o risco de morbimortalidade, infecções e cicatrizes maiores", diz o perito, que é diretor adjunto do DEPRO, órgão fiscalizador da SBCP.
"É importante salientar que uma cirurgia plástica é como qualquer outra. Às vezes, no imaginário das pessoas, não tem risco, mas tem anestesia, incisão, cicatrização e está sujeita às mesmas condições de outra cirurgia", alerta o porta-voz da SBCP.
Na hora de buscar profissional, ele destaca que as redes sociais são importantes, mas não podem ser determinantes na escolha. "Tem cara com milhares de seguidores e você acha que é muito requisitado, mas de repente são seguidores comprados. Ele pode expor um currículo absurdo, com muitas coisas em inglês que impressionam, mas do ponto de vista médico, isso muitas vezes não tem valor nenhum."
O médico que só fala o que você quer ouvir, que vai ficar linda e maravilhosa, e não te fala nada de eventuais resultados indesejados e complicações é um profissional que só está olhando um lado. Marcelo Sampaio, vice-presidente da SBCP