'Subi morro com fuzil na mão': mulheres contam como é vida no Exército
Mais de 7 mil mulheres se inscreveram nos primeiros dias do inédito alistamento militar feminino, segundo o Ministério da Defesa. A ideia é aumentar número de mulheres recrutadas, progressivamente —atualmente, as Forças Armadas têm 37.000 mulheres, cerca de 10% de todo o efetivo.
Antes disso, elas só podiam ingressar como militares de carreira, ou seja, via concurso público, ou como militares temporárias, por até oito anos, a partir da seleção conduzida pelas regiões militares.
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Universa procurou mulheres que já tiveram passagem pelo Exército brasileiro para saber como era a rotina delas nas Forças Armadas. Relatos envolvem desafios constantes na carreira, além da abdicação de parte da vida pessoal. Leia abaixo:
'Subi Complexo do Alemão com fuzil'
Gabriela Borges, 30, resolveu fazer o concurso assim que se formou em administração, quando tinha 22 anos. Sem familiares na área militar, resolveu tentar mesmo assim, e deu certo. Ela passou seis anos como soldado no Quartel de Itu, no interior de São Paulo, por já ter uma graduação.
Apesar de ter ingressado para atuar na área administrativa, cuidando de contas, entre outras funções, Gabriela participou de missões em comunidades no Rio, em 2018.
Ele teve de entrar no Complexo do Alemão e na Praça Seca, na época em que o estado passava por uma intervenção federal na segurança.
Subíamos os morros [das comunidades] armados, com fuzil e pistola. Alguns dias fazíamos rondas e, em outras, isolamos algumas áreas, além de organizar a escolta de caminhões que queriam retornar da greve. As coisas mudaram muito porque cada dia era uma missão.
Gabriela Borges
Segundo Gabriela, a ideia de levar mulheres era para fazer a revista em outras. "Elas não poderiam ser revistadas por homens, caso fosse necessário. Isso eu realmente fiz, mas utilizar armamento, não precisei", conta, aliviada.
Foi muito tenso e uma experiência completamente diferente de tudo o que já vivi na vida. Era muito nova e sou de Itu, uma cidade pequena. Imagina ir para o Rio, uma capital? Era totalmente diferente. Meu pai ficava preocupado e eu tentava compartilhar minha localização. Mas sinto muita falta.
Gabriela Borges
Entre as "descobertas" de Gabriela está a exigência de atividade física diária —mesmo em um cargo administrativo, caso dela.
"Mesmo sendo formada em administração, eu tinha de fazer duas horas de atividade física diárias. Às vezes, corríamos —sozinha ou com a tropa— ou, então, era musculação, e é obrigatório, exceto sexta-feira, que é meio expediente", lembra ela, que hoje é analista tributário fora das Forças Armadas.
Gabriela lembra que todos os que entravam para o quartel deveriam fazer período de adaptação, o que envolvia desde entender como funciona a hierarquia até aprender como usar uma bússola.
"Nunca tinha usado nada disso, nem mapa, nem o rádio deles", diz. Depois disso, é necessário fazer reciclagem o ano todo —envolvendo os treinos de tiro e testes de aptidão física.
Tem de estar apto para tudo. Nosso regime de contratação é ficar à disposição de forma permanente. Com exceção quando você está de férias que só volta se o presidente, por exemplo, exigir algo. Gabriela Borges
Para Gabriela, atuar no Exército é também "perder um pouco da identidade" devido à forte hierarquia. "Você é sargento, soldado e por aí vai", conta.
No entanto, ela conta que teve grandes aprendizados com a experiência. "O que notei durante o tempo que servi é que o Exército é um ótimo lugar para crescer e amadurecer. Muitos meninos entram e saem completamente diferentes", fala.
Treinamento na selva
Viviane Vivaz Milhomem Spieldenner, 34, serviu por sete anos como sargento em Marabá, no Pará. Engenheira civil e contadora, entrou no Exército em 2017 como técnica de contabilidade, função em que atuou por cinco anos e, depois, seguiu para a área de engenharia.
Como atuava na 23ª Brigada de Infantaria de Selva, algumas atividades eram, até então, inusitadas para Viviane. Entre elas, a mais marcante: um estágio de adaptação diretamente na selva.
Passei seis dias imersa na selva, em um ambiente desafiador. Durante esse período, participei de atividades como construção de abrigos, orientação e navegação, busca e coleta de alimentos, obtenção de água potável, caminhadas e marchas de resistência, entre outras. Essas práticas exigiram preparo físico, equilíbrio emocional e a capacidade de se adaptar a condições extremas, proporcionando aprendizado único. Viviane Vivaz
A engenheira conta que, devido ao treinamento na selva, teve muito contato com animais silvestres, como cobras, jacarés e onças. Para ela, isso ajudou a desenvolver habilidades de adaptação e resiliência em ambientes hostis.
No entanto, Viviane também era responsável por atividades "mais burocráticas" —como reuniões de alinhamento e planejamento.
A vida militar vai muito além das atividades administrativas. É uma realidade completamente diferente das demais instituições, envolvendo tarefas específicas da profissão.
Viviane Vivaz
Apesar de saber que o Exército é um ambiente predominantemente masculino, a engenheira vê com bons olhos a abertura do alistamento militar para mulheres.
"É um avanço significativo, pois reforça a igualdade de oportunidades e reconhece o papel fundamental das mulheres em todos os setores, incluindo as Forças Armadas", afirma.
Recentemente, ela se mudou para Califórnia, nos Estados Unidos, onde conheceu o então marido, e continua estudando para validar o diploma no país —que tem requisitos específicos para estrangeiros.
'Era patricinha paulista e sinto que furei minha bolha'
Maria Clara Traldi, 30, se formou em medicina e, logo depois, resolveu prestar o concurso no estado de São Paulo. Se sentia muito "crua" e queria uma experiência que a amadurecesse. Assim que foi aprovada, escolheu o Quartel de Itu, embora morasse em São Paulo. Lá, era responsável pelo auditoria do convênio médico que é oferecido aos militares.
"Já que era para servir, não queria que fosse em um hospital, mas, sim, algo diferente. Optei pelo quartel super tradicional, que é esse de Itu, um dos mais antigos do país."
Da experiência, Maria Clara ressalta que foi só assim que "saiu da bolha".
Fiz escola e faculdade particulares. Uma patricinha paulista. Furei a bolha e sinto que cresci muito. Mudei minha visão de muitas coisas. Vi muitos meninos jovens que entraram pela obrigatoriedade, como soldados, e que não faziam três refeições por dia. Eles estudaram e fizeram faculdade, então foi um ambiente diferente do que conhecia. Militares são pessoas 'normais', com seus empregos e que trabalham. Maria Clara Traldi
A médica não chegou a ir a grandes missões, mas, normalmente, costumava acompanhar os treinamentos, oferecendo auxílio médico sempre que necessário.
"Em um dos cursos de formação, por exemplo, uma parte era mexer em canhões, então tínhamos de estar lá", diz a médica, hoje especializada em cirurgias do aparelho digestivo.
Maria Clara cita ainda os próprios desafios do treinamento e a necessidade de "aprender a ser militar", mesmo atuando como médica. "Aprendi o que é o Exército, a hierarquia e sua organização. Foi uma experiência muito diferente, de rodar em lugares diferentes e conhecer pessoas diferentes. Aprendi até a atirar."
Sobre o novo alistamento para mulheres, a médica comenta que passou alguns "perrengues" quando atuava no quartel.
Em um campo de treinamento, era a única mulher em um raio de 200 km. E era um baita perrengue tomar banho nesses lugares, então tiveram de montar um banheiro só para mim. Era culpa dos tenentes? Não, mas são coisas estruturais. O ambiente só vai mudar quando colocarem mulheres ali. Maria Clara
Maria Clara fica feliz com a novidade do alistamento e vê um futuro com mais mulheres dentro de ambientes até então dominados por homens.
"Tem machismo estrutural no Exército. A partir do momento que as mulheres entram, as coisas mudam, mesmo que só daqui a algum tempo."