Topo

'Assumi dívidas do meu ex para me livrar de um relacionamento abusivo'

Tatiana Faria, 47, passou 25 anos em um relacionamento abusivo - Arquivo pessoal Tatiana Faria, 47, passou 25 anos em um relacionamento abusivo - Arquivo pessoal
Tatiana Faria, 47, passou 25 anos em um relacionamento abusivo Imagem: Arquivo pessoal

De Universa, em São Paulo

27/01/2025 05h30

A comerciante e estudante Tatiana Faria, 47, conta que viveu durante 25 anos um relacionamento abusivo com um homem. Ela começou a perceber que a relação não era saudável nos últimos anos do casamento, que durou até 2020.

Para se "livrar" o quanto antes do parceiro, a comerciante resolveu assumir as dívidas do ex-marido no acordo estabelecido pelo divórcio. A Universa, Tatiana conta sua história.

  • Essa história foi enviada por Tatiana ao UOL. Envie também a sua! Acha que a sua história de vida merece uma reportagem? Mande um resumo para o email enviesuahistoria@uol.com.br. Se possível, já envie fotos e os detalhes que nos ajudarão a avaliá-la. A redação do UOL pode entrar em contato e combinar uma entrevista.

'Descobri que ele mentia sobre tudo'

Nos conhecemos quando eu tinha 18 anos e ele, 29. Achei tudo incrível no começo.

Três meses depois, engravidei. Quando fomos morar juntos, descobri que ele mentia sobre tudo: dizia que o carro era dele e que tinha uma renda, mas não era verdade.

Comecei a fazer marmita, ainda grávida, para vender. Trabalhei como costureira também. Topava qualquer coisa que pudesse fazer de casa mesmo.

Tatiana conheceu o ex-marido quando tinha 18 anos Imagem: Arquivo pessoal

'Demorei 5 anos para conseguir baixar o WhatsApp'

Ele começou a se mostrar totalmente possessivo. Preferia ficar em casa, sem fazer nada, só para ficar me vigiando. Mas eu sou de uma geração que falava que era feio ser mãe solo. Por isso, tentei ficar com ele.
Tatiana Faria

A família dele é do ramo da sorveteria, então abrimos uma loja pequena. Compramos as coisas aos poucos e, assim que aprendi a usar as máquinas e fazer sorvete, ele parou de trabalhar. Eu assumi uma jornada de 12h a 14h de trabalho por dia.

Quando estava com ele, não podia nem ter contato com os vizinhos. Não sabia quem morava na casa ao lado.

Em eventos de família, sempre tinha briga. Ou era um primo que me olhava diferente, ou era uma prima que vinha falar comigo e ele não conseguia ouvir nossa conversa. Sempre acontecia algo.

Fui demorar mais de cinco anos para conseguir baixar o WhatsApp no celular. Sempre fui monitorada por ele.
Tatiana Faria

Inclusive, quando engravidei e disse que queria fazer faculdade depois, ele falou que 'mulher mãe de filho meu não iria ficar na faculdade no meio de homem'. Tudo vinha com tom de ameaças. E a gente vai ficando.

Passei por muitas coisas ao lado dos meus filhos, uma de 28 anos, que hoje é médica, e um adolescente de 16 anos.

Meus sonhos foram ficando para trás. Eu ia aceitando porque era o que tinha. Tentei sair várias vezes do relacionamento, mas ele me ameaçava. Em um relacionamento abusivo, você fica sem nada, sem apoio, nem raciocina direito.

'Assumi dívidas em divórcio só para me livrar dele'

Já tinha passado por tantas traições, promessas de perdão, de que ele ia mudar.

Trabalhávamos juntos e tinha medo de não ter emprego depois, mas não dava mais: a situação estava me machucando muito. Comecei a juntar provas para me divorciar dele, entre outubro de 2019 e março de 2020, no início da pandemia.

Ele estava sempre com uma mulher, andando para cima e para baixo em Mogi das Cruzes. Todo mundo via os dois juntos.

Comentei, então, que queria me separar. Ele fez de tudo para me convencer a não fazer isso, até sugeriu que eu arrumasse um homem para deixar 'elas por elas'. Mas eu tenho caráter, jamais faria isso.

Ele demorou para entender que realmente tinha acabado e se afundou na bebida.

Chegamos a um acordo do divórcio que meu advogado não concordava --eu contratei outro depois. Assumi todas as dívidas de empréstimos do banco porque queria me livrar dele, queria que ele saísse da minha vida logo.
Tatiana Faria

Nosso divórcio saiu em novembro de 2020. Tínhamos uma sorveteria juntos, então montamos uma outra loja para ele poder ter a renda.

É muito doído, mas consegui me separar. Já escutei pessoas dizendo: 'Mas, nossa, 25 anos [de relacionamento] ruim? E ficou com ele tanto tempo assim?'. Por fora, ele é sempre legal, está sempre sorrindo, então ninguém acredita quando você conta.
Tatiana Faria

Ela começou a cursar medicina em 2022 Imagem: Arquivo pessoal

'Resolvi estudar para passar em medicina'

Em 2021, fui para a terapia e foi muito bom. Comecei a pensar o que iria fazer da minha vida: não sabia se ia viajar, se ia fazer direito ou estudar medicina.

Mas, toda vez que falava sobre medicina, minhas células vibravam porque era um sonho de uma vida inteira.

Resolvi estudar no tempo livre que tinha do trabalho, principalmente enquanto ficava no caixa. Em 2022, prestei vestibular em uma faculdade particular de Mogi e fui aprovada, mas precisava trabalhar para pagar.

Foi desesperador, não sabia como ia pagar porque minha filha estava terminando medicina. Eu estava totalmente endividada, mas me matriculei mesmo assim e até hoje dou um jeito.

Fico das 8h às 17h estudando e trabalho antes ou depois na sorveteria. Hoje, sou aluna do terceiro ano, enfrentando problemas financeiros, mas mantenho a fé de que irei conseguir --garra não me falta.
Tatiana Faria

Resolvi fazer um perfil no Instagram sobre medicina. Quero mostrar que os sonhos nunca morrem. Quero ser uma inspiração.

Apesar de toda violência, eu não me perdi nessa relação. Quero mostrar que, apesar das dificuldades, é possível sobreviver à violência e realizar o sonho de infância.
Tatiana Faria

Tatiana está no 3º ano de Medicina de uma faculdade particular de Mogi das Cruzes (SP) Imagem: Arquivo pessoal

Relacionamento abusivo: o que é e como denunciar

Ciúme excessivo, violência psicológica, verbal e até mesmo física podem ser alguns dos sinais de um relacionamento abusivo. Nem sempre ele é fácil de ser identificado pela vítima —o abuso pode vir disfarçado de "excesso de carinho e amor", com uma boa dose de manipulação e controle sobre o outro. Leia mais aqui.

Pessoas que vivem em um relacionamento abusivo podem ligar para a Central de Atendimento à Mulher, no número 180. O serviço recebe denúncias, dá orientação e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico à vítima de relacionamento abusivo. Também é possível realizar denúncias na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos (ONDH).


Violência contra a mulher