Ex-moradora de rua é 1ª brasileira a ganhar medalha de ouro no Gay Games
Com duas medalhas de ouro no Gay Games de Paris e em busca de uma terceira na meia maratona deste sábado (11), a ex-moradora de rua Ana Luiza dos Anjos Garcez já fez história no atletismo brasileiro. Aos 55 anos, ela se tornou a primeira atleta do Brasil a subir no lugar mais alto do pódio da competição.
Recém-nascida, ela foi abandonada numa caixa de sapatos, ao lado da irmã gêmea. Recuperada por desconhecidos, cresceu num convento em São Paulo, antes de ser encaminhada para trabalhar como doméstica. Aos 16 anos, e ainda sem receber salário, fugiu levando três malas com pertences da patroa, que distribuiu a desconhecidos na Praça da República, com medo de ser descoberta. Na rua, passou 20 anos, onde roubou e experimentou quase todas as drogas. Mas, acima de tudo, Ana Luiza dos Anjos Garcez correu. Correu tanto, que descobriu, ao correr da polícia, que poderia correr para sempre, em melhores condições.
A revelação veio assistindo ao filme Carruagens de Fogo, cheirando cola, com um cobertor, no chão de uma galeria, em São Paulo. “Vendo aquelas pessoas correndo vestidas de branco na praia, com aquela música, fiquei pensando que eu também poderia correr”, lembra Ana Luiza dos Anjos Garcez, também conhecida como “Animal”. “Eu morava no [viaduto do] Minhocão. Estava deitada, e de repente essa música começou a vir na minha cabeça”, lembra. Nesta época, a “Tia Punk”, como era conhecida dos mendigos, viciados e moradores de rua do Centro de São Paulo, nem sonhava que seria uma atleta respeitada. “A gente ia comprar saquinho de cola no Brás, não havia pedra [de crack] nessa época”, relata.
"Tia Punk, você não vai conseguir nunca"
“Eu estava com o Dracolino, um outro morador de rua que era meu amigo e já morreu, e disse que ia começar a correr. Ele disse, ‘imagina Tia Punk, você nunca vai conseguir’. Dracolino morreu, como todos os daquela época. Eu continuo correndo”, afirma a atleta. Se ela já se considera uma vencedora? “Sim, mas não por ganhar medalhas, mas por ter saído das drogas, da rua. Tem que ter muita disciplina”, diz Garcez. Para realizar seu sonho, a antiga Tia Punk distribuiu na época uma “missão” aos colegas da rua: “você vai roubar shorts, você camisa, você meias, vou provar para vocês que consigo”, lembra. “Corri, levei seis horas, era uma maratona, eu não sabia, quase morri, mas fui até o fim, ganhei a medalha”, conta.
“Cheirei cocaína, heroína, benzina, tudo que tem ‘ina’. Fumei maconha, me piquei na veia. Éter. Quase que fui para o buraco, já não estava aguentando mais. Depois de uma paralisia parcial do lado esquerdo, que aconteceu durante uma crise de abstinência, decidi que não queria mais saber disso”, relata Garcez, sentada na varanda de seu quarto de hotel, no 12° distrito de Paris. “A assistente social me levou para o hospital, em São Paulo. Eu não queria sair de lá, porque dormia, tomava banho, comia. Vi muita morte na minha frente, dívidas de droga. Corria muito da polícia”, lembra “Animal”.
Em Paris, no entanto, o passado triste e tumultuado não parece ter pesado sobre os ombros de Ana Luiza: ela foi a primeira atleta brasileira a conquistar a medalha de ouro em duas provas do Gay Games 2018: a de 5km e a de 10km. Falta a meia maratona neste sábado (11), de 21 km, prova que ela “gosta mais do que todas”.
E a maratona, de 42 km? “Não gosto de jeito nenhum, é um desgaste, nunca gostei”, diz Ana, que mora no Ginásio do Ibirapuera, depois de um convite feito pelo secretário de Esportes do estado de São Paulo, Fausto Camunha. A atleta brasileira conta que participa da 10ª edição dos Gay Games de Paris, embora não seja lésbica. “Sou simpatizante. Alguns de meus melhores amigos com quem morei na rua são gays, e vejo bastante a discriminação contra eles”, diz. “Trabalhava na [casa noturna gay] Nostro Mundo, em São Paulo, eu amo esse mundo”, afirma Ana Luiza. “Quem fala mal dos gays é pior do que eles, é enrustido”, pontua.
“Duas tentativas de estupro, a gente pega medo de andar de saia”
Correndo, ela já esteve na Inglaterra, no Japão, Estados Unidos, Argentina, Cuba, Chile, Colômbia e Uruguai. “Sempre competindo, nunca para passear”, lembra. Mas o aprendizado da corrida como fundista ainda era desconhecido de Ana Luiza, que afirma que “para mim, correr era correr rápido, e só. Não sabia que existia essa coisa de maratonista”. Ao assistir uma entrevista com Ana Luiza no Fantástico, Fausto Camunha decidiu tirá-la da rua. “Eu tinha muito medo na hora de dormir. Andava com cabelo longo, trançado, usava minissaia, depois de duas tentativas de estupro a gente pega medo. Resolvi raspar meu cabelo, não queria mais andar como mulher. Eu decidi andar como homem para não ser molestada por ninguém”, revela.
Quando desembarcou na Praça da República, no centro de São Paulo, Ana lembra que já foi “chorando”. “Eu sabia que ia passar fome, que eu ia sofrer”, conta. “Morei 20 anos na rua e a primeira droga que usei foi cola”, afirma a ex-moradora de rua, que conta que passava os dias entre a Sé, o Anhangabaú, o Pátio do Colégio. “Tinha muita rixa. Roubando, assaltando. E não me arrependo do que fiz, não dava para voltar atrás”, diz. “Se não fosse o esporte, eu não estaria aqui conversando com você. A corrida me salvou”, diz Ana Luiza, fundista que hoje acorda diariamente às 4h da manhã para treinar com o técnico Wanderley de Oliveira, da equipe Pão de Açúcar.
Respeitada por moradores de rua que a conheceram do centro de São Paulo, Ana Luiza Garcez conta que gostaria de “poder ajudar mais”, mas que “com pedra [de crack] não dá”. Campeã dos 800m, 1500m, 5km e 10km no Grand Prix Mercosur - Master de Atletismo, disputado no Paraguai; 1ª colocada na Nat Geo Run; campeã dos 10km do Graacc, Campeã categoria 52-60 anos New Balance Mile Challenge; campeã dos 5km e 10km do Gay Games de Paris - os títulos se acumulam na carreira de Garcez.
“Por pouco não vinha para o Mundial do Gay Games. Fiz de tudo para vir, se não viesse ia me jogar do Viaduto do Chá”, diverte-se a atleta. “Era o que eu mais queria”, conta Ana Luiza, que não tem patrocínio de nenhuma marca ou órgão brasileiro, mas que recebeu o apoio institucional da Confederação Brasileira de Atletismo com uniformes da seleção brasileira para competir e uma mala.
Roqueira com tendências metaleiras, a ex-“Tia Punk” gosta de ouvir Black Sabbath, ACDC, Judas Priest, Motorhead, Janis Joplin e Raul Seixas. Ela conta que ouve sempre, mas nunca treinando: “atrapalha a concentração. Para a meia maratona deste sábado, onde pode conseguir a terceira medalha de ouro, Ana Luiza dos Anjos Garcez lavou o uniforme azul que ganhou da delegação brasileira. “Eu gosto de representar o Brasil. Gosto de correr com o uniforme brasileiro, senão não me sinto feliz”, diz a corredora brasileira, que se prepara agora para os 5km, uma das categorias da maratona de Nova York.
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