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Lutas feministas: Movimento de Libertação das Mulheres completa 50 anos

3.ago.1982 - Manifestação do MLF (Movimento de Libertação das Mulheres) em Paris, agosto de 1982. O MLF completa 50 anos de criação em 2020 - Gamma-Rapho via Getty Images
3.ago.1982 - Manifestação do MLF (Movimento de Libertação das Mulheres) em Paris, agosto de 1982. O MLF completa 50 anos de criação em 2020 Imagem: Gamma-Rapho via Getty Images

26/08/2020 11h24

Singular e independente, o MLF (Movimento de Libertação das Mulheres) é um marco histórico na luta pela melhora da condição feminina na França e completa hoje, 26 de agosto, seu 50º aniversário. Muitos foram os avanços desde sua criação, da legalização do aborto, em 1975, a novas formas de lutar pelos direitos das mulheres. A data será lembrada com uma manifestação a partir das 18h (horário local) desta quarta-feira no mesmo Arco do Triunfo, em Paris, onde tudo começou.

Paris, 26 de agosto de 1970. Sob o Arco do Triunfo, uma dúzia de mulheres colocou uma coroa de flores com os dizeres "para a esposa do soldado desconhecido". Em suas faixas, podia-se ler: "Há alguém mais desconhecido que o soldado desconhecido, sua esposa" ou "Um em cada dois homens é uma mulher". Essa primeira manifestação foi solidária à greve das mulheres norte-americanas — que comemoram o 50º aniversário do sufrágio feminino nos Estados Unidos — e marca o início do movimento que revolucionou a França.

Para Christine Bard, especialista em história da mulher e gênero e professora de História Contemporânea na Universidade de Angers, na França, o MLF se destaca por ser autônomo, mais radical e midiático que os movimentos feministas anteriores. "Há humor na frase que diz que há uma mulher desconhecida para cada soldado desconhecido. E o humor marca a atuação do movimento", explica

Em sua opinião, entre os maiores legados do movimento estariam a liberdade do corpo, em um sentido amplo, que inclui o controle sobre a própria fertilidade, o direito ao aborto e o direito ao próprio prazer, com a liberação sexual e a liberdade homossexual. Ela enfatiza a importância da denúncia à violência contra a mulher, que passaria por mudanças nos modelos de educação e da família patriarcal.

Para Bard, o viés provocador estaria entre os principais legados do MLF aos movimentos feministas da atualidade. Ela vê nas redes sociais um grande aliado para a disseminação e compartilhamento de informações e conceitos feministas, destacando inclusive a importância das redes como ferramenta de denúncia.

Ela destaca o movimento #MeToo, por dar às participantes a oportunidade de se colocarem em primeira pessoa e sem filtros. "Ali as pessoas se colocam como 'eu', as informações circulam rapidamente e não há controle, garantindo a espontaneidade de quem participa. O movimento inclusive se recusa a se tornar uma associação para que seu engajamento continue se diferenciando daquele de sindicatos, partidos ou outras associações"

Feminismo colado sobre os muros

Atuante há um ano e somando cerca de 3.000 ativistas na França, Les Colleuses (As coladoras, em tradução livre) estão entre os movimentos feministas que herdaram principalmente a vertente midiática do MLF. Suas frases coladas em simples papéis brancos sobre os muros públicos exibem mensagens nada simples: são denúncias sintéticas e agressivas sobre a violência contra as mulheres, levadas às ruas, ao alcance de todos que passam.

Lambe-lambes com dizeres como "Ela o deixou, ele a matou" ou "Nós somos a voz daquelas que não têm mais voz" ilustram o discurso do grupo. "É muito pedagógico. As colagens levam aos cidadãos e cidadãs informações sobre um assunto de grande importância. É um modo de atuação único, em que cada pessoa vai poder colar aquilo que acha importante e necessário sobre o muro", explica Camille Lextray, 24, uma das colleuses.

Mais do que acessível, Lextray acredita que a estratégia de comunicação, que ocupa o espaço público, acaba por questionar também alguns valores antifeministas, que se esforçam em designar um lugar específico - e redutor - para a mulher na sociedade. "Como mulher, somos ensinadas que devemos ser doces e não chamar a atenção. Com a colagem é o inverso, os homens param para nos olhar, mas nós não nos importamos", acrescenta Lextray.

Maio de 1968

Foi na esteira do movimento de maio de 1968 - e em oposição à invisibilidade das mulheres - que nasceu o Movimento de Libertação das Mulheres, fundado, entre outras, por Antoinette Fouque, Monique Wittig e Josiane Chanel. O MLF surge do reagrupamento de diferentes associações feministas, e logo pequenos grupos pertencentes a diferentes correntes se formam dentro do movimento. Antoinette Fouque cria, por exemplo, o coletivo "Psicanálise e política" pelo qual reivindica uma "libido uterina", em oposição à teoria freudiana, e tenta fazê-la existir no cenário político.

Os grupos também se formaram pelas divergências: a homossexualidade e a condição das mulheres lésbicas, por exemplo, não eram uma prioridade dentro do MLF, e tanto que em 1971 surge dentro do movimento a Frente Homossexual para Ação Revolucionária, na tentativa de conter a invisibilidade das mulheres lésbicas.

O movimento deu origem à primeira editora feminina da Europa, em 1973, e em seguida, em 1974, abria-se a primeira livraria feminina em Paris. As ativistas também se lançaram na distribuição de publicações coletivas para compartilhar suas ideias: Le Torchon Brûle, jornal do movimento, foi publicado entre 1971 e 1973.

Ações provocativas e personalidades da mídia

Os grupos que compõem o MLF divergem em questões estratégicas e políticas, mas todos se unem para ações comuns em torno do direito ao aborto, à libertação de corpos ou contra a violência doméstica. Batalhas lideradas por figuras públicas e políticas que fizeram e até hoje fazem história.

Uma das primeiras ações do MLF foi apoiar a greve de fome iniciada pelas moradoras do abrigo para adolescentes grávidas de Plessis-Robinson, nos subúrbios de Paris, em 1971. Simone de Beauvoir vai ao encontro das grevistas, acompanhada de jornalistas, para denunciar a condição de vida daquelas jovens entre 13 e 17 anos: evasão escolar, marginalização, maus-tratos.

Também em 1971, muitas ativistas do Movimento de Libertação das Mulheres assinaram o "Manifesto de 343". Escrito por Simone de Beauvoir, publicado no Le Nouvel Observateur, o manifesto reuniu assinaturas de 343 mulheres, entre elas personalidades como a atriz Catherine Deneuve, que afirmavam ter abortado e, assim, se expunham a processos criminais sob risco de pena de detenção.

Em 1972, o MLF fez campanha em apoio à advogada Gisèle Halimi, que defendia uma adolescente julgada por ter abortado após engravidar de um estupro. Foi finalmente em 1975 que a lei que descriminalizava o aborto, apresentada pela Ministra da Saúde, Simone Veil, é aprovada na Assembleia por um período provisório de cinco anos. Em 6 de outubro de 1979, o MLF contribuiu para a organização da marcha pelo direito à interrupção voluntária da gravidez, que reuniu milhares de manifestantes em Paris. Em sequência ao evento, a lei Veil tornou-se definitiva.

Divisões como legado

A influência do Movimento de Libertação das Mulheres foi de uma importância capital para levar a sociedade a transformar e revisar valores ao longo da segunda metade do século XX. Os avanços feministas pelos direitos das mulheres foram incentivados pelo movimento, como em 1974, quando foi criada na França a primeira Secretaria de Estado da Condição da Mulher, chefiada pela jornalista Françoise Giroud. O reembolso por parte da seguridade social das despesas médicas para a interrupção voluntária da gravidez foi autorizado em 1982, sob a liderança de Yvette Roudy, então Ministra dos Direitos da Mulher. A chamada lei Roudy, aprovada em 1983, também impõe igualdade entre homens e mulheres nas instituições políticas.

Em 1979, uma polêmica explode: Antoinette Fouque registra a sigla do movimento e cria uma associação com o mesmo nome. Muitas ativistas criticam o gesto, que descrevem como apropriação do movimento por um grupo de pessoas. Fouque, por outro lado, alega que sua intenção era evitar que o MLF caísse no esquecimento. A institucionalização das dinâmicas feministas com a chegada da esquerda ao poder na França em 1981, com a eleição de François Mitterrand, e a criação do ministério responsável pelos Direitos das Mulheres, assim como as crescentes divisões dentro do movimento, acabam por minar a influência do movimento.

Hoje, o legado do MLF nas lutas feministas existe, mas já não exibe a mesma importância do passado. As ações e a história do MLF não são ensinadas na escola, obrigando as novas gerações de ativistas a construírem seu feminismo sozinhas e a se educarem sobre as lutas atuais principalmente pelas redes sociais, por meio de contas no Instagram, Twitter e Facebook, ou por meio de podcasts e artigos.

Mesmo que slogans e hinos do MLF sejam repetidos durante as manifestações, as jovens feministas estão se distanciando do movimento, que muitas vezes é percebido como pouco sensível a outras formas de discriminação contra as mulheres, como racismo ou homofobia. É nos métodos que o legado do Movimento de Libertação das Mulheres fica mais evidente. As ações fortes e midiáticas do MLF continuam nas lutas feministas de hoje, por meio de movimentos como Les Colleuses, Femen e La Barbe. Os grupos atuais ostentam a mesma forma de ocupar o espaço público, de levar as demandas aos olhos de todos.