Argentina: Deputados aprovam legalização do aborto e texto segue para o Senado
A Câmara de Deputados, após 20 horas de debate, aprovou o projeto que legaliza o aborto, deixando a Argentina a um passo de tornar-se o primeiro país latino-americano de relevância regional a permitir a interrupção da gravidez. O texto segue agora para o Senado que pode se pronunciar até o final do ano.
Márcio Resende, correspondente em Buenos Aires
Com 131 votos a favor, 117 conta e 6 abstenções, a Câmara de Deputados aprovou a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação, encaminhando o projeto ao Senado, onde a paridade de forças entre prós e contras é acirrada, tornando o resultado imprevisível.
Os 131 votos a favor superam em dois votos os 129 necessários para a aprovação. A maioria dos legisladores exibiu as cores dos seus ideais (verde aos partidários do aborto e azul celeste para os denominados pró-vida, contrários ao aborto). Essa divisão refletiu-se desde as primeiras horas de quinta-feira (11) fora do Parlamento, onde milhares de pessoas reuniram-se sem distanciamento social.
As "verdes", geralmente militantes de organizações sociais e partidos de esquerda, ocuparam o setor à esquerda da Praça do Congresso enquanto as "celestes", geralmente associadas a grupos religiosos, ficaram com o setor à direita.
"A questão do aborto é de saúde pública porque centenas de gestantes, sem dinheiro para pagar um aborto ilegal numa clínica privada, morrem num lugar clandestino. É também uma questão de decidirmos sobre os nossos próprios corpos porque uma pessoa pode avaliar que não é o momento para ter um filho", explica à RFI Vanesa Gagliardi (40), professora de biologia e militante.
Do outro lado da praça, Santiago Capacete (49) cita um exemplo prático para mostrar como a vida deve prevalecer, apesar das dificuldades sociais.
"Imaginemos o contexto de uma favela, uma família com muitos irmãos, muita pobreza e sem perspectiva de futuro. São todos argumentos que o outro lado usa para justificar um aborto. Pois nesse contexto, Diego Maradona teria sido abortado", contra-argumenta Santiago à RFI.
"Há muitas famílias que querem adotar uma criança. Há, inclusive, projetos de adoção pré-natal", defende.
Quem ouve as palavras de Santiago e concorda com essa visão é Marcelo Silveira (33), morador de rua. Aos 11 anos, Marcelo foi abandonado pela mãe biológica num hospital. A enfermeira que o encontrou, adotou-o.
"Por isso, sou contra abortar. Sou a favor de dar para adoção. Aconteceu comigo. Se a minha mãe, em vez de me abandonar, tivesse abortado, eu não existiria. Essa é a importância da vida", testemunha Marcelo.
Uso político
Enquanto a Câmara de Deputados dava sinal verde para a legalização do aborto, o Senado aprovava um ajuste para baixo na fórmula usada para calcular os aumentos nas aposentadorias. A oposição acusa o Governo de promover uma reforma previdenciária disfarçada ao aumentar as aposentadorias abaixo da inflação.
"Enquanto debatiam o aborto, o Senado aprovou a reforma previdenciária, contrária ao interesse dos aposentados. A estratégia do governo é desviar a atenção enquanto, por trás, vemos desemprego, ajuste fiscal, nenhum aumento salarial", critica Vanesa Gagliardi.
O presidente argentino, Alberto Fernández, ao anunciar, em novembro, o envio do projeto ao Parlamento disse que "a criminalização do aborto não serviu de nada, a não ser que os abortos acontecessem clandestinamente em cifras preocupantes", citando que "a cada ano, são hospitalizadas cerca de 38 mil mulheres devido a abortos mal praticados" e que "três mil morreram desde 1983".
Na Argentina, a atual lei de 1921 só permite o aborto em caso de estupro ou em casos nos quais a mãe corre risco de vida.
Paridade no Senado
O próximo passo será o Senado, onde o equilíbrio de forças entre legisladores pró e contra é total. Em 2018, na primeira vez em que a legalização do aborto foi debatida, o projeto foi aprovado pelos deputados, mas rejeitado pelos senadores. Esse cenário pode repetir-se agora.
A presidente do Senado é a vice-presidente Cristina Kirchner, que exige a obediência de 39 dos 72 senadores que comanda. Cristina Kirchner é agora favor do aborto, embora tenha negado o debate durante os oito anos em que foi presidente (2007-2015). Do outro lado, estará o Papa Francisco a exercer pressão através de sacerdotes com forte penetração social no interior do país, de onde vêm os senadores.
Impacto na região
Na América Latina, apenas o Uruguai, a Guiana, Cuba e a Cidade do México permitem o aborto. São países pequenos com situações isoladas. Se a Argentina aprovar o aborto, será o primeiro com projeção regional, capaz de exercer uma influência sobre os vizinhos.
"Se a legalização do aborto virar lei, acho que será um elemento de pressão para o Brasil, embora eu veja mais união e melhor organização dos movimentos sociais e feministas na Argentina. No Brasil, ainda falta essa unificação dos coletivos", compara à RFI a paulista Patrícia Boníssima (33), quem chegou do Brasil há dois anos e meio, justamente quando a chamada "maré verde" do movimento feminista ganhou força na Argentina.
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