Elas fizeram
esse ano difícil
valer a pena
Giuliana Bergamo
Colaboração para Universa
Giuliana Bergamo
Colaboração para Universa
2020 está acabando. "Já vai tarde", você pode dizer. Mas, em um ano que muitos tentarão esquecer, algumas histórias merecem ser registradas e lembradas. São as das mulheres que não cederam às más notícias, arregaçaram as mangas e buscaram fazer a diferença.
Nos hospitais de todo o país, enfermeiras salvaram vidas e colocaram as próprias em risco. Cientistas correram uma maratona para rastrear o novo coronavírus. Empresárias, advogadas e ativistas foram à luta contra o racismo. Mulheres trans entraram com seus corpos e causas para a política e conquistaram espaços de poder nas eleições.
E ainda pudemos contar com as mentes brilhantes que se empenharam em tornar nossos dias um pouco mais leves com música, literatura, cinema, culinária, humor e criações surpreendentes. Universa selecionou 20 histórias de destaque. Confira a seguir.
Enquanto a maioria dos mortais fez o que pôde para ficar longe do novo coronavírus, elas foram para o front. Nos hospitais do país todo -dos mais equipados aos precários ou armados em caráter de urgência-, equipes de enfermagem trabalham horas a fio para acolher, tratar e salvar os doentes. "Quem fica 24 horas no leito, vê todo o sofrimento, a melhora, a piora, pega na mão e cuida do mais íntimo somos nós", disse Cristiane Guerra, diretora de enfermagem do Hospital Estadual do Ipiranga, em São Paulo, em entrevista a Universa.
Ela não veio a essa vida para fazer silêncio. E, em setembro passado, a empresária paulista deu um passo que fez um barulhão: a Magalu, gigante do varejo comandada por ela, abriu 18 vagas de trainee só para pessoas pretas. O anúncio causou polêmica. Um lado acusou a empresária de discriminação (oi?) contra brancos. O outro lembrou que o povo negro sofre preconceito há séculos e que já passou da hora de empresas adotarem medidas para reparar injustiças históricas. A iniciativa de Luiza é simbólica nessa missão.
Ela foi o antidepressivo, o abraço, o colinho de mãe e a conchinha para os "carenteners" da pandemia. Ora disposta e esperançosa, ora tristonha como nós, a cantora carioca Teresa Cristina abriu seu Instagram para lives memoráveis. Recebeu convidados notáveis e se emocionou. Muito. Um dos ápices aconteceu em 5 de junho, na noite dedicada a Gilberto Gil. Teresa alternou choro e gargalhada quando o músico entrou de surpresa cantando "Louvação". A anfitriã não estava bem naquele dia. "Pensei: o que pode apagar esse dia tão triste? Só Gilberto Gil", disse, de cara molhada, ao fim da canção.
Já faz tempo que a chef e apresentadora tira muita gente do sufoco com suas receitas deliciosas e descomplicadas. Mas, neste ano, ela merece muitas sobremesas. Pelas redes sociais, ensinou quem mal sabia fritar ovo a fazer refeições completas na quarentena. E ainda saiu em defesa do Guia Alimentar para a População Brasileira quando o Ministério da Agricultura divulgou uma nota desqualificando o documento. A publicação dá diretrizes sobre alimentação saudável, condena o consumo de comida industrializada e é elogiada internacionalmente.
Vencedora do Big Brother Brasil 2020, a médica Thelma Assis contou com uma torcida forte e merecida. Elza Soares, Preta Gil, Anitta, Iza, Ludmilla, Negra Li e Taís Araújo fizeram campanha por ela. Isso porque, dentro da casa, ela não deixou passar nenhum dos ataques racistas que sofreu, assim como atitudes machistas dos outros "brothers". Mas não foi só isso o que conquistou tanta gente. Thelminha representa negras e negros do Brasil. Em entrevista a Universa contou como se formou em medicina como a única preta em uma turma de cem alunos: "Quando você é negro, a sensação de entrar em um ambiente e perceber que é o único ali é recorrente".
Que a televisão e o jornalismo precisam ficar menos brancos e masculinos a gente já sabe. Mas cadê as pessoas de coragem para colocar a mudança em prática? A apresentadora Vera Magalhães foi uma delas. No comando do programa Roda Viva, da TV Cultura, ela fez questão de trazer diversidade tanto na escolha de entrevistados, quanto na de entrevistadores. Passaram pela sabatina, por exemplo, Silvio de Almeida e Djamila Ribeiro, dois dos maiores especialistas em racismo do Brasil.
E, falando em Djamila, a filósofa já nos ensinou o que é lugar de fala, o que é feminismo e o que é feminismo negro. Já disse muito sobre racismo também. Mas, neste ano, quebrou tudo explicando, tim-tim por tim-tim, o que é preciso fazer para descolonizar o pensamento. Seu livro, "Pequeno Manual Antirracista", publicado pela Companhia das Letras, passou o ano nas listas dos mais vendidos e venceu o Prêmio Jabuti. Ela é autora ainda de "Quem tem Medo do Feminismo Negro?", outra referência no assunto.
Apesar da avalanche de más notícias, 2020 vai ficar marcado por uma vitória: foi o ano em que as pessoas trans entraram com tudo na política dos municípios. De um total de 294 candidaturas, 26 foram eleitas. É pouco ainda, mas um avanço importante para uma das populações mais invisibilizadas do país. Entre as eleitas, destacam-se Erika Hilton (PSOL), a mulher mais votada na cidade de São Paulo, Duda Salabert (PDT), vereadora com mais votos em Belo Horizonte, e Myrella Soares (DEM), a única mulher na câmara de Bariri (SP) e a primeira trans eleita vereadora do centro-oeste paulista.
Em março, no início da pandemia, Jaqueline Goes e Ester Sabino ficaram conhecidas por sequenciar a amostra do vírus que infectou o primeiro paciente identificado com covid-19 no Brasil. Mas o trabalho da dupla de pesquisadoras não parou ali, é claro. Desde então continuam enfrentando uma "maratona", como definiram em entrevista a Universa, para rastrear o novo coronavírus. Elas estão na liderança do Centro de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus, uma parceria entre o Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo, e a Universidade Oxford, no Reino Unido.
Não é um recorde feminino. É um recorde e ponto. A surfista Maya Gabeira surfou a maior onda do ano — com 22,4 metros — entre homens e mulheres. "Não sei se já houve no surfe uma mulher ganhando de um homem em uma categoria profissional. É muito difícil no esporte em geral acontecer isso, ainda mais num ambiente tão associado a coragem, força, atributos que ainda são vistos como masculinos", disse em entrevista a Universa depois da vitória. O feito, realizado Nazaré (Portugal), entrou para o Guinness Book.
Prestes a receber a medalha de bronze no Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia, no dia 20 de setembro, a jogadora pegou o microfone e soltou um grito: "Fora, Bolsonaro!". Era um desabafo. "Apesar de toda a minha alegria, eu não poderia deixar de pensar em tudo o que está ocorrendo, no Brasil e no mundo, com tanta gente que morreu", disse, se referindo à pandemia, em entrevista ao UOL. Em qualquer democracia sólida, a atitude não passaria de expressão do livre pensamento. Mas a atleta acabou sendo denunciada ao Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e condenada em primeira instância. Recorreu e foi absolvida.
O racismo ainda permeia todas as camadas e instituições da nossa sociedade. Em boa parte delas, felizmente, grupos de pessoas pretas têm se manifestado para denunciar o comportamento —que é crime, sempre bom lembrar. É o caso do grupo Pretos na Moda, formado por modelos negras que decidiram levantar a voz e apontar o dedo para casos de racismo cometidos por estilistas. O grupo fez história ao assinar um tratado inédito com a São Paulo Fashion Week que exigiu que 50% dos modelos da última edição do evento fossem negros, afrodescendentes ou indígenas.
O filme "Babenco - Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou", da atriz e diretora Bárbara Paz, foi escolhido para representar o Brasil e concorrer a uma possível indicação ao Oscar 2021. No longa, ela conta os últimos anos de vida do marido e também diretor Hector Babenco, que morreu em 2016, vítima de câncer. Em cartaz nos cinemas e no streaming, a obra também recebeu um prêmio especial no Festival de Veneza, além de ter sido selecionada para outros 20 festivais internacionais.
Após criarem a primeira marca brasileira de calcinhas absorventes, em 2018, as fundadoras da Pantys continuam em franca expansão (foram 350% só nos dois primeiros anos e 30% só durante a pandemia). Mas não se trata apenas de crescimento do negócio. Elas seguem inovando no produto. Além de reterem a menstruação por horas e serem reutilizáveis, o que dispensa o lixo gerado pelos absorventes comuns, as calcinhas agora têm selo carbono zero, e a Pantys se tornou a primeira marca de produtos clinicamente testados do ramo.
Com o livro "Solo para Vialejo" (Cepe Editora de Pernambuco), a poeta Cida Pedrosa venceu o 62º Prêmio Jabuti. Nascida em Bodocó, no Sertão do Araripe pernambucano, a escritora fez carreira também como advogada e, nas últimas eleições municipais, conquistou um cargo de vereadora em Recife pelo PCdoB. Cida, que fez parte do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco e do grupo Vozes Femininas, é autora também de "As Filhas de Lilith" (Caliban), "Claranã" (Confraria do Vento) e "Gris" (Cepe Editora).
A médica e diretora da Anistia Internacional é uma das principais vozes contra a impunidade em casos de assassinatos de negros, principalmente no Brasil. Neste ano, infelizmente, Jurema teve mais motivos para continuar na luta. Além das mortes do menino João Pedro (a tiros, dentro de casa, no Rio), de João Alberto Silveira Freitas (espancado dentro do Carrefour) e das primas Emily e Rebecca (em Duque de Caxias, durante uma ação policial), ela aponta o dedo para o elevado número de negros vitimados pela covid-19. "Queremos despertar a Justiça para quebrar esse ciclo de silêncio que já dura tempo demais", disse.
Usar o humor inteligente para fazer crítica social é uma fórmula excelente, mas praticada há tempos. Agora, apontar o dedo para o presidente, o machismo, o racismo e afins durante um tutorial de beleza sarcástico é algo que só a internet de 2020 viu. Bonita e inteligente, a atriz e roteirista Maria Bopp poderia usar seu talento para produzir qualquer outro conteúdo em seu perfil do Instagram, que tem mais de 600 mil seguidores. Mas ela está aí, com sua "blogueirinha do fim do mundo", fazendo sua contribuição por um Brasil com influencers que vale a pena seguir.
No dia 2 de junho, a trabalhadora doméstica Mirtes Souza saiu para passear um cachorro e deixou seu filho, Miguel, 5, sob os cuidados da patroa e dona do animal, Sari Côrte Real. Quando voltou, encontrou o menino morto, depois de cair do nono andar. Mas ela não sucumbiu à tragédia. Pelo contrário. Decidiu estudar direito para amparar gente que, como ela, é vítima de injustiça. "Muitas pessoas vêm me pedir ajuda e isso acendeu essa vontade de ser advogada. Por isso, é importante eu cursar direito para ajudar outras mães", disse em entrevista ao UOL.
Fazer sexo seguro é um dos desafios e grandes desejos do mundo contemporâneo que ficou ainda mais forte na pandemia. Não é fácil, mas pode ser possível graças a uma invenção da arquiteta, designer e pesquisadora Rita Wu. Ela criou o Neurodildo, um vibrador que funciona obedecendo a estímulos feitos à distância. Para isso, ele combina duas das tecnologias mais promissoras na resolução dos problemas atuais e previstos para o futuro: interface cérebro-máquina e inteligência artificial.
A influencer de moda Camila Coutinho, do portal Garotas Estúpidas, cada vez mais expande, de maneira inteligente, seu universo de influência —que já não era pequeno: seu perfil é seguido por 2,6 milhões de pessoas. Aproveitando seu sucesso, uma empresa plagiou o nome do site e lançou uma linha de produtos de beleza. Em resposta, Camila recuperou os direitos da marca e, no melhor estilo "se a vida te der um limão, faça uma limonada", lançou a GE Beauty, que vende xampu, condicionador e rituais para o cabelo.
Reportagem: Giuliana Bergamo
Edição: Adriana Küchler
Arte: Yasmin Ayumi