A partida de Eva

No pré-natal, Luana descobriu que sua bebê tinha 5% de chance de sobreviver; ela fala sobre dar adeus no parto

Ana Bardella De Universa Iluminar/Clara Fernandes

A intuição sempre foi uma característica forte da personalidade de Luana Mafra, de 35 anos. Bastou que olhasse a expressão do médico que acompanhava o andamento da sua terceira gravidez enquanto fazia uma ultrassonografia para que pressentisse que uma notícia ruim estava a caminho. Naquele dia, só o que ouviu durante a consulta foi que o feto estava pequeno, mas que a situação poderia mudar em breve. Uma semana depois, recebeu a confirmação: Eva, fruto de seu casamento com o músico Bruno, não estava se desenvolvendo conforme o esperado.

Após mais exames, que se juntaram como "as peças de um quebra-cabeça", Eva foi diagnosticada com síndrome de Edwards, uma alteração genética que acontece quando a criança carrega três cópias do cromossomo 18 em vez de duas. A condição implica em más-formações que reduzem drasticamente as chances de sobrevivência: apenas 5% dos bebês resistem ao nascimento. Destes, poucos chegam ao primeiro ano de vida.

A lei brasileira permite o aborto se a gravidez se der por estupro, representar risco de vida à mulher ou em caso de anencefalia fetal, mas a Justiça tem dado o direito à interrupção em situações como a de Luana. Ela, no entanto, preferiu seguir com a gestação até quando foi possível. Mesmo sentindo mais dores do que o esperado, escolheu passar por um parto normal: trabalhando como doula, sabia dos benefícios do processo. Ela ainda presenteou Eva com um ensaio fotográfico e planejou com antecedência os detalhes de sua despedida: dos cuidados paliativos que poderia receber na UTI ao cemitério onde ocorreria sua despedida. "Só queria que ela se sentisse amada", diz.

A seguir, Luana conta sua história.

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A primeira perda

"Conheci o Bruno, meu marido, em 2012: ele trabalha como músico e fui assistir a um de seus shows. Só ficamos pela primeira vez alguns dias depois, mas foi intenso e rápido. Mesmo sem combinar, paramos de sair com outras pessoas. Depois de apenas três meses juntos, decidimos comprar um apartamento. Moramos por um ano com a minha mãe até que nossa casa ficasse pronta. Quando finalmente nos mudamos, engravidei pela primeira vez.

Após oito semanas de gestação, sofri um aborto. A experiência me causou um impacto grande, pois sempre tive o sonho de ser mãe. Durante um ano preferi não tentar novamente — não achava que estava emocionalmente preparada para outra perda. Sem filhos, decidimos sair de Florianópolis, nossa cidade, para morar no Rio de Janeiro. Lá, haveria mais oportunidades de trabalho para ele. Eu, que ocupava um cargo na área administrativa, não estava feliz com a profissão. Fiz um curso de doula e pedi demissão.

Quando já estava tudo pronto para nossa mudança, senti algo diferente. Mesmo sem que a minha menstruação tivesse atrasado, fiz um teste de gravidez. Minha intuição estava certa: desistimos da mudança a fim de ficarmos mais próximos de nossas famílias e nos preparamos para a chegada da Liz.

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Uma maninha para Liz

Liz chegou bem: é uma menina esperta, falante, ativa e de personalidade forte, que me realiza como mãe. Quatro meses após o seu nascimento, voltei a trabalhar, desta vez como doula. Algumas vezes dava de mamar para ela na sala de espera dos hospitais em que os partos estavam acontecendo. Mas as gestantes que acompanhei sempre foram compreensivas e conseguimos nos virar bem.

Tinha planos de engravidar novamente quando a Liz estivesse com 2 anos. Porém, a data chegou e eu sentia que ela ainda precisava muito de mim: só fizemos seu desmame, por exemplo, quando ela estava com quase 3. Por isso decidimos esperar, até para que pudesse sentir novamente meu corpo. Quando achei que estava pronta, eu e o Bruno tentamos a gravidez por alguns meses. Mas foi em vão.

Como não conseguia engravidar, resolvi então me matricular na faculdade e realizar o sonho de me tornar uma enfermeira obstétrica. No terceiro dia de aula, descobri que estava grávida da Eva.

Luana Mafra

Iluminar/Clara Fernandes Iluminar/Clara Fernandes

Como poderia amá-la?

Foi uma felicidade imensa. Continuei a vida acadêmica com ela no ventre. Até que, em uma das ultrassonografias, percebi que o médico estava diferente, mais quieto. Ele disse que o tamanho estava pequeno, mas percebi ali que algo não ia bem. Ao longo do tempo, descobrimos que Eva tinha algumas anomalias: coluna aberta, ausência de cerebelo, problemas nos dois hemisférios do cérebro, queixo para dentro, problemas no coração, mãozinhas atrofiadas e o calcanhar para fora.

Cada descoberta era uma peça a mais de um quebra-cabeça — até que chegamos ao diagnóstico da síndrome de Edwards.

Quando recebemos essa notícia, a primeira coisa que escutamos é que esta é uma condição "incompatível com a vida", uma expressão com a qual eu não concordo. Tive a chance de fazer um aborto, mas recusei. No entanto, a condição dos médicos era uma só: caso a gravidez colocasse a minha vida em risco, eles precisariam intervir. Isso me deixou muito mexida.

Nos primeiros meses, nem conseguia me conectar com o bebê. Ficava naquele impasse: como vou me entregar e amar sabendo que em algum momento posso ter que optar pela vida dela ou pela minha? Então comecei a conversar com muitas pessoas. Encontrei na religião um alívio, algo que fez com que enxergasse a situação de forma diferente. No espiritismo, acreditamos que somos nós quem escolhemos nossos pais antes de vir ao mundo. Eva tinha me escolhido — e vice-versa.

A partir de então minha gravidez ficou muito mais leve.

Entendi o meu propósito de dar amor e proteger. Conversava muito com ela e pensava no que poderia sentir se viesse ao mundo. Por quantas dores ela passaria se precisasse lutar pela vida em uma UTI? Eu e Bruno realmente desejaríamos que ela passasse por algum tipo de cirurgia logo depois de sair do meu ventre? Então começamos a nos planejar.

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Um lugar de paz

Aos poucos fomos nos conscientizando de que ela estava ali para nos ensinar, para nos mudar enquanto pessoas. Começamos dialogando com a Liz: ela, que por causa do meu trabalho sabia tanto de nascimento, aprendeu que a morte é um desdobramento da vida. De forma lúdica, explicamos que sua irmã em breve viraria uma estrelinha.

Cuidei também do enterro. Queria que ela tivesse um enterro digno. Escolhi um cemitério mais afastado, em meio à natureza, bonito, que me traz paz. Vi tudo antes com meu esposo e meu pai, mas foi um dos dias mais doloridos da vida. Levei uma filha viva no ventre para ver o local onde ela seria enterrada. Perder um filho não é algo natural. Mas queria estar com tudo alinhado para que eu e meu marido não precisássemos nos preocupar. Sabia que passaríamos por um momento de dor e de luto.

Ainda me emociono muito quando falo sobre isso.

Iluminar / Clara Fernandes

"Precisei deixá-la ir"

Segui meus instintos e optamos pelo parto normal. Quando estava com 36 semanas, no primeiro dia de abril, precisamos induzir o parto. Eva tinha problemas para deglutir, o que gerou um grande acúmulo de líquido amniótico, equivalente a uma gravidez de 41 semanas. Ela pesava apenas um quilo, mas eu sentia ardência muscular, estiramento. Sabendo que isso poderia me gerar uma hemorragia, a equipe preferiu interromper a gestação ali.

Pedi para que não escutássemos o batimento cardíaco dela durante o processo. Por mais que, no meu íntimo, eu soubesse que ela já estava partindo, seria muito difícil dar à luz um bebê sabendo que ele estava sem vida. O processo todo foi complicado: sem peso ajudando na expulsão, sentia dores agudas. Além disso, pelo excesso de líquido, a Eva não encaixava da maneira certa para sair. Pedi analgesia e, aproveitando que estava sem sensibilidade, foi feito o rompimento da bolsa.

Nunca terei essa certeza, mas acredito que tenha sido este o momento em que ela se foi. Minha barriga ficou bem pequena. Então fomos para a sala de parto. Mesmo com as médicas e as doulas me pedindo força para empurrar, eu tinha medo de dizer adeus, por isso meu corpo não reagia da maneira certa.

Precisei entender que a minha missão como mãe da Eva tinha acabado ali. Eu tinha feito tudo o que podia por ela. Só assim coordenei mente, coração e corpo e fiz a força necessária para que ela nascesse. Pude sentir sua cabeça saindo, a toquei. Depois de sair, veio direto para o meu ventre. Busquei vida nela: já havíamos preparado seu lugar na UTI, com soro e oxigênio, mas não havia mais pulsação.

Iluminar/Clara Fernandes Iluminar/Clara Fernandes

Obrigada, Eva

Fiquei com ela por bastante tempo no meu colo, explorando seu corpo, seu rosto. Depois foi a vez de o Bruno pegá-la. Ele tirou a camisa e a colocou pele com pele. Para mim, foi muito emocionante. Senti que, naquele momento, ele se tornou pai pela segunda vez. Por último, Liz veio conhecer sua maninha: cortou seu cordão umbilical, ajudou a colocar uma roupa. Acredito que isso teve um impacto positivo para ela e vai ajudá-la a encarar a morte de uma forma natural no futuro.

Passei a noite ali. Queria que Eva sentisse que foi e continua sendo muito amada. Quando o rapaz da funerária chegou pela manhã, foi muito difícil. Por causa do coronavírus, sua despedida foi discreta e rápida. Velamos seu corpo por duas horas. O dia estava nublado. Mas, assim que o padre que convidamos começou a falar, um sol se abriu e a luz ficou exatamente sobre o seu caixão, até o momento em que foi enterrada. Encarei como uma aceitação da sua passagem e deixei o cemitério com o coração cheio de pureza.

Ainda estamos vivendo nosso processo de luto. O primeiro dia foi o mais pesado. Nos outros, fomos melhorando. Hoje me sinto mais próxima de Deus e oro todos os dias. Peço perdão se em algum momento não fui a mãe que ela merecia. Hoje, sou extremamente grata pela forma como ela chegou até nós."

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