A receita de Pía

Eleita melhor chef do mundo, a peruana fala de desafios da carreira e equilíbrio entre família e trabalho

Maria Angélica Oliveira Colaboração para Universa, em Lima Jessica Alva/UOL

Pía León tinha só 21 anos quando bateu na porta do local onde seria inaugurado o Central, restaurante que nos anos seguintes consolidaria o Peru no universo da alta gastronomia com experiências inovadoras e premiadas. Ela teve que batalhar para conseguir a vaga. À frente do novo projeto, o chef Virgilio Martínez teve receio de que ela não levasse o trabalho a sério ou que engravidasse e saísse de licença.

"Ele ficou em dúvida e levou um tempo para me ligar dando resposta sobre a entrevista, mas eu fui muito insistente. Liguei, liguei, liguei. Era muito nova e ele, claro, tinha medo ou pensava que eu ia pedir folga para ir a festas, para coisas que uma menina de 21 anos geralmente faz", conta a peruana.

Hoje aos 34 anos, ela é proprietária do Kjolle e foi eleita, no início do mês, como a melhor chef na categoria feminina pela World's 50 Best Restaurants.

Era a única mulher na equipe quando foi contratada como assistente da área de frios. As longas jornadas fizeram daquela época um período de crescimento. Pía conta que trabalhar com Virgilio ampliou sua visão da gastronomia, não só para a valorização de ingredientes locais e diversos, mas também com uma filosofia sobre o trabalho. Enquanto isso, a vida profissional misturou-se definitivamente com a pessoal. Depois de um ano, em 2009, o chefe virou namorado. Em 2013, se casaram.

Comer é um ato político

Ao longo de quatro anos no Central, Pía passou por várias funções até chegar a comandar a cozinha. Persistente, candidatou-se mais de uma vez até ser escolhida chef. Foram seis anos comandando a equipe que colocou o Central na posição de melhor restaurante da América Latina por três anos consecutivos pela World's 50 Best, e como o quarto melhor do mundo pela revista "Restaurant". As conquistas chamaram a atenção do mundo para a comida peruana e ajudaram a tornar Lima um destino gastronômico mundial.

Não era para menos. Se em 2021 é comum ouvir que comer é um ato político, o conceito já estava presente no Central anos atrás. O restaurante iniciou um caminho inédito quando Virgilio abriu a Mater, centro de pesquisa de ingredientes em risco de extinção e técnicas ancestrais de preparo. Um time de cozinheiros (com o casal incluído), geógrafos, biólogos e antropólogos passou a se aventurar em expedições por comunidades tradicionais em regiões remotas do Peru. Aos poucos, as descobertas foram incorporadas a um menu baseado nas diferentes altitudes do país, em que cada prato reflete um ecossistema diferente.

Como braço direito de Virgilio, Pía contribuiu ativamente para essas conquistas, mas seguia trabalhando nos bastidores por vontade própria. Nesse período, era comum que a tratassem como a esposa de Virgilio, mas ela não se incomodava.

"No começo, estive mais escondida e questionavam por que eu não aparecia mais. Virgilio tem quase 15 anos a mais de cozinha do que eu. Então, naquele momento, considerei que a mim me cabia aprender a ser líder e a comandar uma cozinha. Além disso, sou tímida e não tinha muita vontade", reconhece.

Jessica Alva/UOL Jessica Alva/UOL

"É preciso escutar as críticas positivas e negativas"

Mesmo escondida, foi eleita a melhor chef mulher da América Latina em 2018. Também aí surgiu a vontade de mudar. O Central estava prestes a deixar o bairro de Miraflores, reduto da classe alta limenha. Pía e Virgilio encontraram um antigo centro cultural em Barranco, um bairro charmoso e boêmio à beira mar, para ser a nova sede. E ela resolveu que o lugar também abrigaria seu próprio restaurante. O menu seria igualmente dedicado à biodiversidade peruana, mas livre do conceito de altura criado pelo marido.

Só que abrir um projeto próprio implicaria "mostrar um pouco mais a cara", como ela lembra. A chef encarou o frio na barriga e lembrou de uma árvore que havia conhecido nos Andes, com flores que a encantaram, resistente à altitude e ao frio implacável. Decidiu que esse seria o símbolo e nome de seu projeto solo.

Precisava de uma mudança, um giro, fazer as coisas mais do meu jeito, com meu estilo. Pensei que tinha que enfrentar meus medos internos e lutar comigo mesma e me lancei. A equipe me ajudou muito, e Virgílio me aconselhou muito bem

Kjolle nasceu com o propósito de percorrer as diferentes regiões do Peru sem regras rígidas, com pratos coloridos e ingredientes identificados nas expedições da Mater. Alguns, desconhecidos até pelos peruanos. Outros, preparados de maneiras nunca imaginadas.

Pía conta que o cacau foi uma das revelações mais interessantes das viagens a campo. Visitando comunidades tradicionais, ela conheceu técnicas para aproveitar várias partes da fruta e transcendeu a visão que a associava apenas ao chocolate. A camada branca que cobre as sementes, o mucílago, passou a ser usada em pratos salgados como o leite de tigre, um acompanhamento do famoso ceviche. A mashua negra, uma raiz andina, virou espuma pink. E, no país que possui 3.500 variedades de batata, a colorida torta de tubérculos se tornou um sucesso.

Quinze meses depois, o Kjolle entrou no ranking dos 50 melhores restaurantes da América Latina, em 21º lugar. Hoje, está no 18º.

E pensar que, no começo, houve quem se referisse ao restaurante como um irmão menor do Central. Para ela, não era uma manifestação de machismo. "É preciso escutar as críticas positivas e negativas. Observei, escutei... Acredito que nessa carreira é preciso ser muito paciente. Estive muito confiante e tranquila. Claro que vai haver detalhes do Central porque eu gosto, porque venho de lá e sigo sendo parte de lá."

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Pandemia fechou restaurante por três meses

Questionada sobre os ambientes ainda masculinos da gastronomia, a chef afirma que a situação vem mudando, com percentuais maiores de mulheres empregadas.

"Sempre digo que é difícil tirar a paixão de alguém que nasceu com ela. Mas algumas coisas são mais complicadas para as mulheres. Quando pensam em ter uma família e filhos, podem surgir dúvidas. É preciso ser muito honesta consigo mesma: o que você quer, o que está disposta a fazer. E, além disso, não é impossível [conciliar carreira e família]."

Como em qualquer outra profissão, é preciso fazer sacrifícios

Com a pandemia, o Kjolle ficou fechado três meses e reabriu com uma carta para delivery. Quando foi possível voltar a receber clientes, Pía criou propostas com receitas de amigos de outros países, inclusive do Brasil. No menu, entrou o peixe com tucupi, pera e mostarda do Maní, de Helena Rizzo, um dos primeiros restaurantes brasileiros que ela conheceu, oito anos atrás.

Pía é apaixonada pela biodiversidade brasileira, onde identifica similaridades com o Peru. Esteve no Rio de Janeiro, São Paulo e Tiradentes. "As frutas são alucinantes e os pratos tradicionais também, com a farinha [de mandioca], o feijão preto e o porco. Cada vez que vamos curtimos muito", conta.

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Síndrome de impostora?

Dias antes do anúncio do prêmio, no início do mês, a chef recebeu a notícia enquanto tomava café da manhã com Virgilio e o filho dos dois, Cristóbal, de cinco anos. Primeiro, veio a surpresa. Depois, um sentimento de gratidão. Ela tinha certeza de que o reconhecimento viria, só não sabia quando nem como.

"Quando alguém tem um trabalho constante, é muito perseverante, trabalha bem e está tranquila com si mesma e com o que faz, os resultados chegam em algum momento. Pode ser rápido ou não, mas chegam", diz, confortável na cadeira número um dentre as mulheres na cozinha.

Síndrome da impostora? Ela nunca tinha ouvido a expressão até ser questionada pela reportagem de Universa. "Sou uma boa líder para minha equipe. Sou segura e digo isso humildemente. Sim, tenho coisas para aprender e há coisas nas quais não sou boa. Há coisas em que sou melhor, definitivamente", avalia.

A adrenalina da cozinha é um combustível para ela, que gosta de encarar situações complicadas que exigem reações rápidas, mas equilibra essa tensão com um estilo de liderança participativo e alegre.

"A ideia na Casa Tupac [complexo que abriga o Kjolle, o Central, o bar Mayo e uma das sedes do laboratório Mater] é que você venha trabalhar contente e feliz. Não é um mar de rosas, não vou mentir, mas queremos que as pessoas venham contentes, com vontade. Sou muito amigável, escuto muito. Mas, quando tenho que ficar com raiva, eu fico. É necessário ser um pouco rígida na medida certa."

Outro traço da melhor chef do mundo é a determinação. Aos sete anos, começou a bisbilhotar a cozinha de casa para ajudar. Tempos depois, preparava sobremesas como tortas de cenoura e de chirimoya (fruta peruana da mesma família da fruta-do-conde e da pinha).

A mãe tinha uma empresa de catering e cozinhava muito bem. Assim, o gosto por comer rico, como se diz no Peru, passou para todos os filhos. "Ela foi um exemplo pra mim de trabalho árduo, de ser muito perseverante e responsável", conta. Quando terminou o colégio, já estava claro que iria estudar gastronomia. Foi quando se inscreveu na Le Cordon Bleu de Lima.

Se de um lado Pía sempre foi determinada e confiante, a melhor chef do mundo teve que travar uma batalha interna contra uma forte timidez que as pessoas confundiam com antipatia. Fez muita "terapia interna" e contou com a ajuda do marido e da cunhada Malena, que dirige o centro de pesquisas Mater. "Converso muito com eles. Isso foi minha terapia. Passou um tempo, fui melhorando e agora já consigo curtir conversar com alguém que não conheço", revela.

Prova disso são as entrevistas que passou a dar com mais frequência e a participação na série de culinária infantil Waffles e Mochi, da Netflix, produzida por Michelle Obama. A cada episódio, os dois fantoches que dão nome à série apresentam frutas e verduras de forma lúdica ao lado de chefs convidados. Pía gravou em Cusco e levou o filho, que entrou em algumas cenas.

Jessica Alva/UOL Jessica Alva/UOL

"Primeiro vem minha família"

Superar a timidez não se comparou com o maior desafio que enfrentou, o de ser mãe e chef de cozinha. Depois de seis anos à frente do Central, ela engravidou.

"Tive a sorte de ter três chefs de cozinha que fizeram um trabalho incrível enquanto estive fora. Trabalhei até os oito meses e meio de gravidez, muitas horas por dia. Morava ao lado do Central, então ia e vinha. Pegava um banquinho e cantava as comandas sentadas na cozinha. Fiz isso porque tinha a responsabilidade e a pressão de deixar uma equipe bem sólida. Dei à luz e voltei depois de dois meses", lembra.

A saída foi organizar a vida de forma que trabalho e família estivessem sempre próximos. Desde o início, Cristóbal formou parte desse universo, frequentando o restaurante e viajando com os pais.

"O momento mais difícil foi quando dei à luz porque as horas e o cansaço são gigantes. Não sabia se ia conseguir. Mas a equipe respondeu super bem e fizemos um bom trabalho."

Cinco anos depois, com prêmios, restaurante próprio e outros por abrir —o próximo será em Tóquio, passou a refletir mais sobre família e trabalho. A pandemia, claro, catalisou esse processo. Pia agora busca a quantidade certa de cada coisa na vida, uma receita difícil de equilibrar, ela sabe.

"Primeiro vem minha família. Isso não significa que vou trabalhar menos. Estou concentrada no Kjolle, quero seguir crescendo. Também sou muito envolvida nas coisas do meu filho. Tento me dividir ainda mais agora que as classes são virtuais. Ele tem cinco anos, é pequenininho, não quero perder isso. Não quero ter o ritmo de vida de Virgilio, nem estar só focada na minha carreira. Tenho isso claro. Sou mãe, adoro ser mãe, e vou ser as duas coisas até onde possa."

Quatro conselhos para quem quer ser chef

  • 1

    Ser sincera

    Consigo mesma, se perguntar, ser honesta sobre o que você quer da vida. Qual é seu propósito, que caminho quer escolher.

  • 2

    Trabalhar duro

    Mas mantendo a calma e sendo muito perseverante.

  • 3

    Não desanimar

    Saber que é um caminho longo e difícil, mas, se você tem paixão e não tem dúvidas, é possível desfrutar.

  • 4

    Encarar como um estilo de vida

    Isso ajuda porque você não toma a rotina apenas como trabalho. Trata-se da sua filosofia, de uma parte de você.

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