Velha roupa do meu pai

Elas buscaram no armário e na memória o look do dia e o sentido do privilégio de ter um figura paterna

Natália Eiras da Universa, em São Paulo Naira Mattia/UOL

No Brasil, ter um pai presente pode ser considerado uma sorte, uma vez que o abandono é comum. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2015, o país ganhou, em um intervalo de dez anos, mais de 1 milhão de famílias compostas por mães-solo. Só no estado de São Paulo, no registro de 750 mil pessoas com até 30 anos não consta o nome do pai. Neste dia 11 de agosto, nem todas as casas brasileiras devem comemorar o Dia dos Pais. Vai sobrar um lugar à mesa.

Apesar de a figura do pai ausente ser uma realidade brasileira, o guarda-roupa deles é tendência. Com a popularização da moda agênero, não é preciso procurar muito para ver, nas vitrines dos shopping centers, itens como daddy sneakers -- tênis volumosos, a cara dos anos 1990 -- e pochetes. E a conscientização sobre consumo sustentável tem feito as pessoas buscarem novos usos para as peças largadas no fundo do armário de família, uma fonte de roupas com história.

Isabella usa a capa de chuva do pai, desejada desde a infância. Uma camisa listrada verde tem ajudado Ligia a lidar com o luto. Barbara ficou com o alfinete de gravata e o sobrenome do pai que a criou. Giuliana usa uma corrente de cruz para dar sorte ao pai, que se recupera de um acidente. Daniela lembra da lealdade familiar ao vestir a jaqueta jeans de seu pai. Elas buscaram looks do dia dentro do armário de seus familiares. E usam essas peças para contar a Universa um pouco sobre o privilégio de terem um pai de quem roubar as roupas.

Capa de chuva

"Desde pequena, lembro que via essa capa de chuva no armário de meu pai. Sempre fui ligada em moda, ele também. Gostava muito de vê-lo com ela. Assim, quando ele se suicidou, há 10 anos, decidi que ficaria com essa capa e com a camiseta que ele usava para dormir.

Meu pai comprou a capa em uma viagem que fizemos para a Disney, quando eu tinha seis anos. Ele amava a Ralph Lauren. Além da capa, as camisas sociais e o perfume que ele usava, um que vinha em um vasilhame verde, eram dessa marca.

Meus pais se separaram quando eu tinha oito anos. Lembro que já não via mais a capa no armário que antes era dele. Mas nós sempre nos víamos, ele estava sempre por perto. Mesmo adulta, nos víamos pelo menos três vezes por semana. Nosso programa favorito era ir ao cinema, ver algum filme francês e, depois, sair para jantar.

Depois do segundo divórcio dele, meu pai ficou deprimido, teve ansiedade. Ele tomava remédio, ia e voltava para a terapia. Perto do fim, ele me ligou algumas vezes chorando, o que me preocupava. Mas, na semana em que foi encontrado morto, ele disse que estava tudo bem. Até que, em uma terça-feira, não atendeu mais ao telefone. A gota d'água foram problemas financeiros.

Pouco após a morte dele, eu usava bastante a capa de chuva. Para ir à academia e até para sair. Não porque ela combinava com tudo, mas por causa do luto. Até que, quando já estava melhor, eu a deixei um pouco de lado. Há três meses, no entanto, decidi que a levaria comigo para um festival de música.

Ao vestir a capa de chuva, lembro do meu pai. Eu o sinto por perto, mas também fico um pouco melancólica. Estou tentando mudar minha impressão sobre ela, não quero que ela signifique tristeza. Quando me mudei para São Paulo (SP), fiz questão de trazer a capa de chuva e a camiseta que ele usava para dormir. Quis trazer um pouco da energia dele comigo."

Isabella de Castro, 30, stylist, do Rio de Janeiro (RJ). Filha de Marcelo Lopes de Castro, 52 (falecido).

O alfinete de gravata

"Meu pai guarda muitas coisas. Ele tem um baú em que, desde pequenininho, junta itens que são importantes para ele. Este alfinete saiu do baú e foi dado a mim quando eu tinha 22 anos. Quem o presenteou foi o padrinho ele, acho que na formatura de colégio, aos 17 anos.

Lá em casa, a gente fala muito sobre o privilégio de ter um pai. Mais bonito do que ter um progenitor é ser criado por alguém que escolheu ser pai. Quando o meu se casou com minha mãe, ela já tinha três filhos, entre eles eu mesma, com um ano e meio. Ele tomou a decisão de cuidar dessa família.

Tive oportunidade de manter contato com o meu pai biológico, mas não preciso disso. Tenho pai e mãe em casa. Fui uma adolescente complicada, dava trabalho, e quem estava lá era ele. Quem viveu tudo isso comigo e me conhece é ele. A escolha do meu pai fez com que eu deixasse claro para o meu marido a importância de ele presenciar o desenvolvimento do nosso filho, o Joaquim.

Por isso, quando completei 18 anos, adotei socialmente o sobrenome dele e estou fazendo o processo para incluí-lo no meu registro. E, ao usar esse alfinete, tenho a lembrança, o sentimento de que não estou sozinha."

Bárbara Paiva, 30, psicóloga, de São Paulo (SP). Filha de Murilo Togni Paiva, 64.

A corrente

"Em dezembro de 2017, estava no trabalho quando recebi uma mensagem de minha mãe dizendo que meu pai havia sofrido uma queda. Ele sempre gostou de correr de moto em estradas do interior de São Paulo e já havia caído em 2010, então achei que superaríamos essa facilmente. Logo que o encontrei, coloquei no meu pescoço os colares que ele costumava usar quando andava de moto. Um deles era essa cruz. Nunca mais a tirei, desde aquele dia.

Descobrimos que ele havia fraturado a perna em cinco lugares, se bem que isso era o de menos. Por conta de uma série de complicações decorrentes da fratura, meu pai ficou seis meses no hospital, três deles em coma. Ele teve infecção, inchaço no cérebro e perdeu os movimentos da perna. Às vezes acordava confuso, não sabendo onde estava. Foi doloroso vê-lo daquela forma.

Pensava em mudar de país, mas o medo de não estar por aqui para ele me fez mudar de ideia. Sempre fomos eu, meu pai e minha mãe. Por um tempo, eu e ela discutimos muito, porque ela insistia em trazê-lo para casa. Acabou ganhando a briga e ele deixou o hospital para continuar o tratamento no quarto dele. Ainda bem. Ele está muitíssimo melhor, anda com a ajuda de um andador, mas está mais forte, lúcido. Está melhorando.

Uso a cruz todos os dias, por baixo da minha roupa ou à mostra. Meu pai vê, dá risada, diz que eu tenho que devolver a corrente dele. A ideia é, sim, devolvê-la, mas só quando ele estiver 100% recuperado. E acredito que isso vá acontecer logo."

Giuliana Mesquita, 28, jornalista, de São Paulo (SP). Filha de Armando Mesquita, 59.

A camisa

"Verde era a cor favorita do meu pai, que era palmeirense. Como ele trabalhou por muitos anos em um banco, ele tinha muitas camisas. Nenhuma delas era preta ou vermelha, cores dos times rivais. Essa camisa eu peguei em seu armário quando ele faleceu, em 17 de maio de 2019.

Meu pai descobriu que estava doente aos 68 anos. Em uma tomografia para tirar uma hérnia da barriga, apareceu um tumor no pâncreas. Fez uma operação para retirá-lo, mas havia metástase. Ele ficou dois meses internado.

Após a morte, passei uma semana na casa da minha mãe, mexendo nas coisas dele. Lembrei que ele usou essa camisa no meu aniversário de 2017 e tínhamos uma foto juntos daquele dia. Sempre vesti roupas dele e da minha mãe, além de garimpar coisas em brechós. Resolvi pegar a camisa para mim.

Costumo montar looks para o meu Instagram usando essas peças vintage. Enquanto meu pai esteve no hospital, parei de fazer as publicações na rede social. Não estava muito criativa para me vestir. Reencontrar essa camisa fez eu voltar a ter vontade de montar looks. Ela está ajudando na elaboração do luto.

Tenho muito apego sentimental às roupas, porque gosto de peças com trajetória. Roupa é que nem gente: quanto mais velha, mais história. E eu gosto da possibilidade de, se alguém puder perguntar para mim sobre essa camisa, poder falar do meu pai."

Ligia Romão, 35, tradutora, de São Paulo (SP). Filha de Elcio Romão, 68 (falecido).

A jaqueta

"Aos 12 anos, eu e meu pai compramos duas jaquetas iguais, ambas do Hard Rock Café. A minha era de Los Angeles e a dele de Orlando. Usar a jaqueta combinando com o meu pai era sempre um evento. Conforme fui crescendo, minha jaqueta ficou pequena e eu queria usar outras coisas. Ele enjoou da dele e a encostou. Meu pai veio da Argentina quando era pequeno e sempre viajou muito a trabalho, então ele acostumou a não juntar muitas coisas.

Na contramão, minha mãe tem mania de guardar tudo; pegou para ela a jaqueta e também a usou por um tempo. No entanto, mais uma vez, ela foi para o fundo do armário. Um dia, estava na casa dos meus avós maternos e a reencontrei. Eu já queria uma jaquetinha mais básica e a trouxe para mim.

Essa jaqueta representa algo que admiro muito no meu pai: lealdade. Esse companheirismo e o drama típico dos argentinos são as duas coisas dele que levo comigo. Ele sempre esteve ao meu lado, respeitou minha liberdade de ser quem eu sou, de me vestir e viver a vida como quero.

Era o pai cuidadoso que, às 4h da manhã, ia me buscar na balada e levava cada uma das minhas amigas para suas respectivas casas. Como perdeu a mãe aos 18, sinto que ele possui um profundo respeito pelas mulheres da casa, o posicionamento político e de vida que cada uma possui. Eu, ele e minha família estamos sempre juntos, um privilégio que reconheço. Se vamos resolver algo, podemos contar com ele e com a nossa união. Somos um time."

Danila Bustamante, 33, filmmaker, de São Paulo (SP). Filha de Nestor Bustamante, 63.

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