Aviso: este texto contém linguagem forte e relatos de abuso sexual, que podem servir de gatilho.
Adolescentes que saíram da seita A Família sofrem para superar traumas e se adaptar ao mundo de fora
De Universa, em São PauloAviso: este texto contém linguagem forte e relatos de abuso sexual, que podem servir de gatilho.
Tinha pesadelo revivendo tudo. Acordava gritando, chorando e sempre ficava imaginando muitas cenas que eu tinha passado."
Andressa Zgoda
Alyssa Veiga e as irmãs Andressa e Priscila Zgoda cresceram em locais diferentes, mas possuem uma história em comum. Viviam em "lares" da seita A Família, divididos por dezenas de pessoas, com pouquíssimo acesso ao mundo além dos muros, e não sabiam que faziam parte de uma seita quando o grupo se desintegrou. Seguiam uma doutrina religiosa que pregava o sexo, inclusive com crianças, como forma de aproximação com Deus diante do iminente apocalipse.
Tratava-se de uma misteriosa organização religiosa que chegou ao Brasil em meio à ditadura militar. Uma reportagem do Diário de Pernambuco, em 1975, noticiava a chegada do grupo. O texto da época dizia que o movimento, iniciado com David Berg nos Estados Unidos, começava a se espalhar por cidades do Nordeste depois que um casal de brasileiros aderiu.
"[Seita] era uma palavra completamente proibida. Comecei a usá-la nos últimos anos", conta Alyssa, hoje com 28 anos. "Tínhamos na ponta da língua a justificativa de que éramos um grupo missionário, sem igreja física, que acreditava no evangelho. Era tudo muito engrenado para que a gente se defendesse de acusações e tínhamos muitas explicações para desviar das perguntas."
Apesar de denúncias graves ao longo de décadas, o fim aconteceu apenas nos anos 2000. E foi neste momento que muitos jovens se viram desorientados e soltos em meio a uma sociedade que pouco conheciam.
Alyssa, Andressa e Priscila tinham entre 14 e 15 anos quando as regras começaram a ser flexibilizadas e um novo mundo se abriu.
"Já não era uma comunidade fechada, tínhamos um pouquinho mais de contato com o mundo. Então eu pedi para sair [da seita], porque não tínhamos direito ao estudo. Nossos livros sempre vinham de doações, sem sequência material. Era o que tinha disponível, nunca tinha estudado de forma correta até então", lembra Priscila, hoje com 29 anos.
Nos últimos anos do grupo, a mãe delas conseguiu que as filhas deixassem de fazer parte da congregação —Priscila, para estudar, e Andressa para morar com o pai, no Rio.
"Ele sempre batia de frente com muitas informações e queria sair. Chegou um momento em que não conseguia mais aceitar", conta Andressa, hoje com 32 anos.
Foi quando perceberam que teriam de "começar do zero". Ou seja, cursar supletivo para ter um diploma da educação básica, depois entrar no colégio para ter o ensino médio e assim ter algum conhecimento para conseguir um emprego e se sustentar.
Lembro que ia muitas vezes ao shopping só para sentar e ver como as pessoas agiam, como interagiam, o que faziam. Me sentia completamente fora da casinha. Não tinha as mesmas referências e, até hoje, quando falam que algo é da minha época, não sei do que estão falando."
Priscila
Alyssa também diz que precisou "reaprender tudo". Quando entrou finalmente no colégio, após anos estudando em casa, percebeu que era diferente das outras pessoas em muitas coisas —e não só no que aprendia de conteúdo escolar.
Foi bem pesado e confuso chegar ao ensino médio, um choque cultural. Era uma completa estranha e tinha de inventar respostas para algumas perguntas: 'De que escola você veio? Por que você fala tão bem inglês?'. Tive colegas da seita que me acompanharam nisso e todo mundo sofreu, ninguém queria ser esquisito. Não sabíamos fazer amizade e tínhamos de guardar muitos segredos."
Mas então veio a grande descoberta:
Descobri que famílias não se machucavam. Eu achava que todo mundo já havia sido estuprado."
Alyssa
Ao UOL, a Família Internacional disse que a estrutura organizacional foi desmantelada em 2010 e funciona hoje como uma rede online com cerca de 1.300 pessoas, com uma política de tolerância zero com a violência desde 1986. Diz que se opõe ao abuso de menores "de qualquer forma, seja físico, sexual, educacional ou emocional".
Quando tiveram acesso à internet, também puderam encontrar outras informações que, até então, eram escondidas.
"Comecei a aprender sobre seitas, vendo documentários, e foi aí que percebi que tinham mentido para mim. Não podíamos fazer esse tipo de pesquisas [antes], porque era contra o grupo, e nunca senti segurança para abrir a conversa com a minha família biológica", lembra Alyssa.
Fora do confinamento, também não foi fácil entender os limites e processar o que havia acontecido. Um ano depois de sair do grupo, ela teve depressão. E, aos 16, tentou se matar —o suicídio entre jovens vítimas de Os Meninos de Deus, como se chamava A Família antes, foi documentado no filme "Children of God: Lost and Found", da HBO, do diretor Noah Thomson, que também cresceu na seita no Brasil.
Passei por muitos assédios depois de sair do grupo, baixei a cabeça e normalizei coisas absurdas. Na terapia, consegui ter confiança para estudar, conversar sobre o que vivi e falar que fui estuprada. Está sendo um processo longo para tirar essa lavagem cerebral, minha mente não funcionava. Aprendi a falar não, a reagir e a me permitir ter emoções negativas. E foi nascendo uma força para saber o que tinha acontecido." Alyssa
Hoje, ela é professora e cantora e acredita que achou na arte sua cura. Apesar de ter circulado por diversos campos da espiritualidade, evita lugares que peçam restrições, "porque é um gatilho". "É o início de uma independência, de uma vida que não fique na sombra da seita. Tive a sorte de procurar ajuda, de sobreviver. E estou lutando pela minha vida."
"A cultura do estupro e da pedofilia e a manipulação religiosa existem dentro e fora da seita, e precisamos combater, falar e nos unir."
Já Priscila tinha 15 anos quando começou a pesquisar mais sobre as condutas d'A Família. A revolta que sentiu, diz ela, ainda causa desconforto aos pais. Sua mãe tem dificuldades de aceitar o que a seita fazia como criminoso e ainda tenta ver o lado positivo do grupo, enquanto seu pai sente vergonha.
Fiquei horrorizada e muito revoltada, porque entramos nisso sem poder escolher. É um dos maiores arrependimentos do meu pai, que pede desculpas constantemente e diz que tinha esperança de que tudo fosse um projeto de Deus, que salvaria vidas. Tinha de perdoá-los e enxergá-los com outros olhos, mas não foi fácil. Não tem nada que justifique tudo o que era feito, foi um processo muito doloroso para todos." Priscila
Ela também explica os impactos que os abusos tiveram na sua fé.
"Quando entrei em uma igreja, quase tive crise de pânico. Só queria sair dali com vontade de vomitar e desesperada. Já tentei ir a outros lugares de religiosidade, mas sempre há uma desconfiança de que alguém está se beneficiando com aquilo", afirma.
"Vemos João de Deus e outros líderes acusados de crimes, então é muito difícil falar que só aconteceu na Família. Acontece em todos os lugares. Vi tanta coisa ruim sendo feita em nome de Deus que ainda sou muito bloqueada."
Já Andressa carrega a dor de não ter conseguido amparar a irmã das violências e da lavagem cerebral na infância, mas hoje, mãe de uma menina, tenta ao máximo protegê-la. "Tenho muito medo do que pode acontecer com ela. Sei que não consegui fazer isso com minha irmã. Mas se eu tivesse falado na época, não sei se acreditariam."
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Leia maisComo procurar ajuda: Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia.
Caso você esteja pensando em cometer suicídio, procure ajuda especializada como o CVV (Centro de Valorização da Vida) e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.