Mães do cárcere

Parto em cela, leite descartado na pia: a vida na ala materna de uma penitenciária

Rute Pina De Universa Julia Rodrigues/UOL

Era madrugada de 28 de setembro quando Bruna*, 29, sentiu as primeiras contrações do que seria o parto de seu terceiro filho. A alegria pela chegada de mais uma criança misturava-se ao medo e à angústia por não saber se chegaria ao hospital a tempo: Bruna estava presa na Penitenciária Feminina da Capital, no bairro do Carandiru, em São Paulo, onde cumpre pena por tráfico de drogas.

Cerca de uma hora e meia depois, às 4h45, ela deu à luz um menino. Como não havia escolta policial disponível para acompanhá-la, uma exigência para deslocar pessoas sob custódia, o bebê acabou nascendo na cela mesmo, com ajuda de outras presas: elas deitaram a mulher num colchão e retiraram o bebê da bolsa com a unha. "Meu filho já estava roxinho."

Universa passou uma tarde na nova ala materna da Penitenciária Feminina Sant'Ana, na zona norte de São Paulo, acompanhando a rotina de quatro mulheres que acabaram de dar à luz ou despediram-se recentemente de seus bebês.

Atualmente, nove mulheres estão na ala materno-infantil da Penitenciária Feminina Sant'Ana

Atualmente, nove mulheres estão na ala materno-infantil da Penitenciária Feminina Sant'Ana

Brasil é o 3º país com mais mulheres presas no mundo

Para entrar na unidade prisional, primeiro é necessário passar por um esquema de segurança: revista, detectores de metais e scanner. Na visita, a reportagem só pôde entrar com o imprescindível: caneta, bloquinho, gravador e equipamento fotográfico — todo o resto, inclusive celulares, fica em armários na entrada do presídio.

Diferentemente das demais presas, as mulheres que estão com filhos têm mais flexibilidade para transitar pelos espaços comuns da penitenciária, já que as celas onde ficam não são trancadas.

As mães acordam cedo, dão banho nas crianças em um espaço comum onde há chuveiros e banheiras e vão para o pátio tomar banho de sol. Há ainda uma brinquedoteca, onde desenhos animados podem ser vistos na televisão.

Os bebês são acompanhados por enfermeiras que atuam no local e, se necessário, são encaminhados a algum hospital ou Unidade Básica de Saúde.

A SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) informa que oferece itens de higiene pessoal necessários, além de alimentação e fórmula infantil.

Neste ano, o Brasil bateu a marca de 42 mil presas e é o 3º país com mais mulheres sob reclusão no mundo. Dessas, 74% são mães e 56% têm dois ou mais filhos, segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública de 2018.

Uma lei de 2018 estabelece a substituição da prisão preventiva por domiciliar da mulher gestante ou que for mãe de crianças até 12 anos. Mas essa concessão depende sempre da análise de cada caso — a Justiça costuma considerar questões como a gravidade do crime e a reincidência da mulher.

As celas das mulheres que estão com filhos não são trancadas: elas podem transitar pelos espaços comuns

As celas das mulheres que estão com filhos não são trancadas: elas podem transitar pelos espaços comuns

'Senhor, eu que errei. Me deixe ter meu filho'

Bruna foi presa em flagrante três meses antes de dar à luz, e hoje cumpre pena na recém-inaugurada ala materna na Penitenciária Feminina Sant'Ana, na zona norte de São Paulo.

O espaço foi inaugurado em outubro deste ano e tem, atualmente, nove mulheres grávidas e puérperas. Elas têm o direito de ficar com seus filhos até o sexto mês de vida do bebê.

Com o filho no colo, Bruna relembra os momentos tensos do parto. "Fiquei com muito medo e só pensava: 'Senhor, eu que errei, já deixei meus outros filhos lá fora. Me deixe ter meu filho'".

O parto aconteceu e a escolta só chegaria uma hora e meia depois para levar mãe e filho ao Conjunto Hospitalar do Mandaqui, na zona norte da capital paulista, a cinco quilômetros do presídio. Segundo Bruna, agentes penitenciárias chegaram a falar para o médico que o parto ocorreu no caminho, dentro da ambulância.

Em nota, a SAP informou que a escolta estava a caminho quando Bruna deu à luz e deu toda assistência depois.

Por meio da Lei de Acesso à Informação, Universa levantou que nos últimos três anos, 497 mulheres tiveram filhos enquanto estavam encarceradas, em São Paulo.

A Penitenciária Feminina Sant'Ana possui uma brinquedoteca para os bebês

A Penitenciária Feminina Sant'Ana possui uma brinquedoteca para os bebês

'No parto, eu só chamava a minha mãe'

As grávidas que estão no sistema prisional não têm direito a acompanhantes durante o parto. O que elas fazem é pedir que uma das agentes penitenciárias acompanhe o momento.

Foi o que fez Márcia*, 28. Uma semana após ter sido presa por tráfico de drogas, em maio, ela foi internada na 36ª semana de gestação com pré-eclâmpsia, que é o aumento da pressão arterial durante a gravidez. O parto precisou ser antecipado.

Durante as contrações, ela chamava pela mãe e pediu que uma agente penitenciária segurasse sua mão. "Foi bem turbulento porque a gestação mexe muito com os hormônios e foi bem difícil estar longe da minha mãe, que sempre esteve ao meu lado para tudo. E acabei chamando o nome dela na hora do parto", lembra.

Apesar do encarceramento, foi a primeira vez que Márcia pôde viver a maternidade completa. Mãe de cinco — quatro crianças entre 10 e 1 ano estão sob os cuidados da avó—, ela fala que teve mais tempo para se dedicar ao bebê e amamentar pela primeira vez.

"Com os outros, eu até comecei a dar o peito, mas doía muito. E lá fora é mais fácil, porque você oferece uma mamadeira. Aqui eu insisti e ele mamou no peito até o último dia", diz ela, que se separou do filho em 11 de novembro. Assim como os irmãos, ele ficou sob os cuidados da avó materna. "Sinto falta de não poder estar com ele por um erro meu."

Ariane foi presa no quarto mês de gravidez; ela espera sair do presídio quando seu filho completar seis meses, em janeiro

Ariane foi presa no quarto mês de gravidez; ela espera sair do presídio quando seu filho completar seis meses, em janeiro

'Toda vez que tiro leite, choro'

Quando conversou com Universa, fazia três dias que Amanda*, 37, havia entregado seu filho aos cuidados do companheiro e trocado a ala materna pela comum no bloco ao lado, no mesmo presídio. Naquela manhã, ela acordou com a camiseta toda molhada de leite.

"Está horrível. O peito fica muito cheio e dolorido. Hoje me deram paracetamol e pediram para não estimular, porque naturalmente o leite vai secar", disse. Presa por roubo de celular, ela faz a ordenha a cada 15 minutos com uma seringa. "Estou triste de verdade. Toda vez que eu tiro o leite, choro."

Como não há geladeiras para conservar o alimento, Amanda descarta o leite na pia da cela em que dorme.

No presídio, mães relatam ter tempo para se dedicar à amamentação, o que pode ser feito até o sexto mês de vida do bebê

No presídio, mães relatam ter tempo para se dedicar à amamentação, o que pode ser feito até o sexto mês de vida do bebê

'Quando bate a tranca, vem a depressão'

Aos quatro meses de vida, o bebê de Amanda já havia começado a introdução alimentar, e o cardápio incluía fruta e papinha. Nos últimos meses, a mamadeira fez-se necessária para preparar a separação entre mãe e filho. Essa ainda está sendo difícil aceitar.

"Sem ele, minha rotina está bem diferente. Principalmente quando bate a tranca, e vem a depressão", conta.

Amanda pondera o período com o filho. "Nossa rotina era gostosa, mas, querendo ou não, aqui não é um ambiente para um bebê. Às vezes me sentia um pouco egoísta de fazer isso com ele. Meu filho não conhecia um parque, um animalzinho, um cachorro. Meu filho não conhecia nada, nem os irmãos dele. Não conhecia ninguém."

Agora, Amanda se dedica à leitura de autores como Augusto Cury, Nicholas Sparks e Sidney Sheldon, e pretende terminar os estudos do ensino fundamental para se formar em psicologia assim que sair da reclusão.

Ao todo, ela tem que cumprir 17 anos e 8 meses de prisão pelos crimes de furto e roubo, com agravamento da pena por não ter voltado de uma das saídas de feriado. Além do recém-nascido, ela é mãe de dois jovens, de 19 e 17 anos, que moram sozinhos, e de três crianças de idades entre 11 e 2 anos que foram para adoção quando ela foi presa outras vezes.

Ex-viciada em crack, sonha em ajudar as pessoas e mudar a história com seu filho mais novo. "Mas o principal objetivo é reencontrá-lo e cuidar dele lá fora."

Para as mulheres, o momento mais temido é o da separação: após completarem seis meses, os bebês são encaminhados para a família ou para adoção

Para as mulheres, o momento mais temido é o da separação: após completarem seis meses, os bebês são encaminhados para a família ou para adoção

'Quero a chance de ir embora com meu filho'

À direita de uma cela de seis metros quadrados fica a cama de Ariane Paula Rodrigues de Oliveira, 30. Na parede, fotos de familiares e de seus cinco filhos. À esquerda do quarto, um berço portátil azul agora é usado para guardar roupas, já que seu filho mais novo, de três meses, só dorme em seu colo.

Ariane foi presa no quarto mês de gestação. "Fiquei assustada, porque foi a primeira vez. E estava esperando o julgamento em casa havia cinco anos. A condenação saiu em 2020", detalha ela, sentenciada a seis anos de reclusão por tráfico de drogas. "A droga era do meu ex-marido. Não consegui chegar à última audiência e fui condenada sem o juiz me ouvir."

Ela conseguiu redução da pena para nove meses, mas, com a gravidez já avançada, passou as últimas semanas de gestação no sistema prisional. Todo o pré-natal foi feito no hospital penitenciário, com consultas agendadas a cada 15 dias. "Fui bem tratada", relata ela, que só recebe visita de sua mãe e se corresponde com seu atual companheiro por cartas.

Ariane foi a única que aceitou ser identificada na reportagem. Antes de dar o depoimento a Universa, se arrumou e alisou os cabelos. "Posso usar shorts, senhora?", perguntou a uma das agentes antes de ser fotografada.

Explicou que quer seu nome e rosto estampados para se lembrar futuramente dessa experiência. "Pretendo usar isso como uma lição de vida, um aprendizado. Quero olhar e lembrar que passei por uma coisa muito ruim na vida. Não vou ter vergonha de mostrar para meus filhos. Quero que eles saibam o que aconteceu para que eles não caiam na mesma cilada."

Seu filho completa seis meses em janeiro. "Quero a chance de ir embora com ele", diz ela, que tem enviado ofícios para o juiz pedindo redução de pena ou regime semiaberto. "Preciso ir embora para cuidar dos meus outros filhos. Um deles tem uma deficiência. Eu preciso ir embora. Se Deus quiser eu vou com ele já em janeiro", idealiza.

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