Amor de avó é tudo igual

No Dia dos Avós, celebramos aqueles que formaram família quando pessoas LGBTQIA+ não tinham direitos no Brasil

Mariana Gonzalez De Universa Lucas Seixas/UOL

Famílias formadas por casais homoafetivos têm seus direitos reconhecidos no Brasil pelo STF há apenas dez anos — mas existem muito antes disso, sem papel passado e sem direitos garantidos, como o casamento e a adoção

Jurema, de 67 anos, e Nicinha, de 60, juntas há mais de 40 anos, passaram anos escondendo o casamento enquanto criavam oito filhos; hoje são avós de 18 netos, além de 13 bisnetos. Dália, de 50 anos, a "vovó Bolo" de Pedro, de 2 anos, superou as barreiras da cor e da sexualidade para se tornar advogada e criar três filhas. Jordhan, 54, e Sara, 45, tiveram seus filhos tomados de seus convívios ainda pequenos e só conseguiram retomar a relação anos depois — e não sem barreiras, afinal, os filhos, já adultos e com filhos, ainda têm dificuldade de lidar com a transexualidade dos pais.

Apesar de terem trajetórias tortuosas e muito diferentes entre si, as quatro famílias têm em comum verdadeira paixão pelos netos e uma típica relação de avós corujas: "Ele é apaixonado por mim e eu por ele. Agarro ele, beijo, cheiro, aperto. Para mim, a memória dos avós é a coisa mais rica que um adulto pode ter", resume Dália.

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Dália é advogada e confeiteira; há dois anos, é também a "vovó Bolo" de Pedro, seu único neto

"Ele é apaixonado por mim e eu por ele. Seremos ótimos amigos"

"Eu sempre sonhei em ser mãe e pensava que ser avó seria uma consequência, mas, quando recebi a notícia de que o Pedro estava chegando, foi o dia mais feliz da minha vida. Eu gritava de felicidade, abraçava minha filha, Tatá, e meu genro, Igor. Parecia final de Copa do Mundo.

Sou casada com a Eva há quase 30 anos — não oficialmente, porque no papel só nos casamos em 2013, quando foi permitido.

Nunca escondi nossa relação. Hoje o pessoal chama de namorada, esposa, companheira, mas na época a gente dizia que tinha um caso com uma mulher. Quando me olhavam atravessado, eu ignorava. Pensava: 'Estou feliz, sua opinião que se dane'.

Claro que eu sofri preconceito por conta da sexualidade, mas eu sofri muito mais pela cor, porque a cor chega antes.

Temos três filhas, todas por adoção. A mais velha, que é a mãe do Pedro, na verdade é sobrinha da Eva, mas me escolheu para ser mãe dela quando tinha 7 anos e começou a me chamar de 'mãedrinha' [mistura de mãe com madrinha]. Ela cresceu comigo, me chama de mãe, tem uma tatuagem com meu nome e tudo. A gente não precisa de um papel para formalizar isso. Há dois anos, o Pedro chegou.

Ele é apaixonado por mim e eu por ele. Durante a pandemia, tive que me reinventar e comecei a trabalhar com confeitaria, fazendo bolos — por isso, ele me chama de vovó Bolo. Onde ele vê bolo, fala de mim. Por isso, eu faço ainda mais bolos para ele, para reforçar essa memória gostosa de infância.

O Pedro tem duas avós do lado da mãe e duas avós do lado do pai, porque o pai e a mãe do meu genro tiveram outros casamentos e ele chama tanto a mãe quanto a madrasta do pai dele de avós.

Meu neto é um garoto muito abençoado, está dentro de uma família completamente diferente, mas com muito amor. Imagina como ele é amado e paparicado pelas quatro avós.

Eu agarro ele, beijo, cheiro, aperto. Nossa relação tem muito contato físico. Acho que seremos ótimos amigos até eu ficar bem velhinha. Quando eu não estiver mais aqui, ele vai falar da vovó Bolo para os filhos."

Eu guardo com muito carinho as lembranças da minha avó e quero alimentar o Pedro com muitas memórias minhas também — para mim, a memória dos avós é a coisa mais rica que um adulto pode ter.

Dália Tayguara, de 50 anos, mora no Rio de Janeiro e é advogada e confeiteira. Ela é avó de Pedro, de 2 anos.

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Sara York vive no Rio e seu neto, Nicholas, em Goiânia. Eles se viram pela última vez há dois anos

"Faço questão de dizer que sou travesti e avó"

"Descobri que teria um neto poucos anos depois de reencontrar meu filho, que foi tomado do meu convívio ainda bebê e só reencontrei há dez anos, quando ele já era adulto.

Durante a vida toda, quando dizia que eu tinha um filho, as pessoas estranhavam ou ignoravam — afinal, travesti não tem filho, né. Para você ter uma ideia, as pessoas não me cumprimentam no Dia dos Pais, porque sou mulher, e nem no Dia das Mães. Agora que tenho um neto, é a mesma coisa, mas faço questão de dizer que sou travesti e avó.

Hoje, quando comparo a minha infância com a infância do meu neto, Nicholas, a diferença é enorme. A minha geração foi muito limitada, era 'não pode isso' e 'não pode aquilo'.

Quando eu era criança e dançava Gretchen, por exemplo, era um absurdo, eu era repreendida; quando ele dança Luisa Sonza em frente à TV, está tudo bem. É uma construção muito diferente — ainda bem!

Meu filho é evangélico neopentecostal. Em toda mensagem que me manda, diz que me ama, mas é um homem de 30 anos que não sabe dialogar, expor seus pensamentos, e que ainda tem muita dificuldade em lidar com a transexualidade. É doloroso observar.

Eu não sei dizer se os pais abordam o assunto [transexualidade] com o meu neto. Ele me chama de vovó Sassá e sabe que eu sou a avó dele, apesar de o meu filho às vezes se referir a mim no masculino. Da última vez que nos vimos, ele estava dançando e meu filho falou 'vai lá com o vovô', se referindo a mim, mas ele foi até o avô, pai da mãe dele. Por que ele sabe que eu sou a avó.

Quero que meu neto tenha essa referência da avó que abraça, que beija, que ama. Sempre termino minhas lives mandando um beijo para o meu neto

[Sara é pesquisadora de gênero e sexualidade e discute sobre o tema nas redes sociais] Sei que em algum momento ele vai ver aquilo e falar: 'Minha avó era muito doida mesmo'.

Quero que meu neto tenha essa liberdade que o pai dele não tem, que sinta orgulho das pessoas que vieram antes e trilharam um caminho melhor, que ele perceba as mudanças no mundo e pense: 'Minha avó era uma das pessoas que queria mudar o mundo'".

*Sara York, de 45 anos, mora em São Pedro da Aldeia (RJ) e é educadora e pesquisadora. Ela é avó de Nicholas, de 6 anos.

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Jurema e Nicinha estão casadas há 40 anos; juntas, elas têm oito filhos, 18 netos e 13 bisnetos

"Nossos filhos gostam muito de fazer criança. É uma fábrica"

Nicinha: "Sou nascida e criada da Rocinha e conheci a Jurema bem jovem, aos 14 anos, numa roda de samba. Ela tinha 20 anos e quatro filhos."

Jurema: "Primeiro a gente começou a conversar, depois viu que havia amor entre nós duas. Nisso, juntamos nossos panos e fomos morar juntas. Minha filha caçula era bem pequena, tinha 4 anos, e logo se agarrou na Nicinha — era Deus no céu e a Nicinha na terra. Depois, vieram outros filhos. Hoje, são oito. Assim formamos nossa família."

Nicinha: "Na década de 1980, numa noite de São João, fizemos uma jura de casamento e prometemos ficar juntas até que a morte nos separe. Nessa época, tinha muita crítica, as pessoas julgavam nosso modo de viver. Tinha aquele negócio de Maria Sapatão."

Quando a gente passava, cantavam: 'Maria Sapatão, de dia é Maria, de noite é João', mas a gente ignorava, não dava para medir forças. A gente tentava esconder nosso romance, mas todo mundo sabia. Até que um dia decidimos não esconder mais.

"Quando tivemos nosso primeiro neto, a Jurema ficou rouca, chegou a ficar sem voz de tanto que gritava: 'Meu neto nasceu, meu neto nasceu'. Quando nasceu o segundo, ela ficou mais rouca ainda. Veio o terceiro e ela perdeu a voz de vez.

Aí foi nascendo um atrás do outro, crescendo a família. A maioria mora aqui na Rocinha, perto da gente."

Jurema: "Nossos filhos gostam muito de fazer criança. É uma fábrica. A gente bate um no outro, tropeça, porque é muita gente mesmo. Quando tem festinha de aniversário das crianças, nem precisa chamar os amiguinhos, só os primos já enchem a casa."

"Agora, durante a pandemia, estamos morando parte do tempo no nosso terreno em Engenheiro Pedreira [bairro na cidade de Japeri, região metropolitana do Rio de Janeiro]. Neste final de semana, levei uma renca de neto e bisneto para ficar lá com a gente, porque a gente adora bagunça, barulho de criança. Espero que a gente fique velhinha assim: juntas, lá no terreno, cheio de neto e bisneto em volta, correndo, até Deus chamar."

*Jurema Gomes é aposentada e tem 67 anos, e Maria Eunice Dias Lacerda, a Nicinha, é trabalhadora doméstica e tem 60. Elas moram no Rio de Janeiro, estão juntas há 43 anos, têm oito filhos, dezoito netos e treze bisnetos.

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Jordhan mostra foto das tatuagens em homenagem ao filho, Rafael, e ao neto Matheus

"Meu neto veio para zerar uma história familiar conturbada"

"Meu filho e meu neto são os dois amores da minha vida — apesar de ter sido concebido durante uma violência sexual que sofri aos 16 anos, ele foi gerado com muito amor.

Claro que não foi fácil levar adiante uma gestação depois desse trauma, mas hoje, quando vejo meu filho casado e criando meu neto, que é um moleque lindo, cheio de vida, percebo que aquele sofrimento ficou guardado no passado.

Quando soube que estava esperando o Rafael, eu vivia em situação de rua. Comecei a perceber os sintomas e fui procurar minha mãe. Ela me deu a opção de interromper, mas eu disse que não, que queria manter a gestação — não sou contra o aborto, defendo que quem é dono do corpo possa decidir o que fazer com ele, e eu decidi ter meu filho.

Quando o Rafael tinha quatro meses, ela me colocou para fora de casa pela segunda vez. Disse: 'Você vai, mas meu neto fica', e me fez assinar um papel abrindo mão dele.

Deixar meu filho para trás foi desesperador, como se eu tivesse sido amputado. Voltamos a conviver alguns anos depois e ele só soube como foi concebido já adulto, aos 21 anos, quando escrevi meu primeiro livro. Eu tinha medo de contar antes e essa informação mexer com a cabeça dele, mas isso deixou a gente ainda mais próximo.

O que deu uma balançada na relação foi quando eu decidi passar pela transição de gênero, aos 48 anos, e fazer a cirurgia de retirada dos seios.

Meu filho passou nove meses sem falar comigo. Quando a gente decide fazer uma transição, tudo ao nosso redor balança. Até hoje ele tenta entender e me respeitar, mas vejo que ainda é difícil.

Fui a primeira pessoa a saber que o Matheus estava chegando. Meu filho não me chama mais de mãe, mas também não consegue me chamar de pai. Até meu neto nascer, ele me chamava de Jordhan, mas depois passou a me chamar de vovô. Acho que essa é uma solução que deixa nós dois confortáveis.

Tenho a sensação que meu neto veio para zerar uma história familiar muito conturbada. Ele é um divisor de águas na nossa família: os pais deles têm uma união bacana, ele recebe uma educação maravilhosa e muito amor. Isso é uma revolução.

Com a internet e com tudo que eu já fiz [Jordhan é autor de três livros e dá palestras contando sua história], o Matheus vai saber quem é o avô. Quando ele perguntar, vou explicar. E acho que será muito tranquilo, porque essa geração tem outra pegada, eles não estão preocupados se você usa azul ou rosa.

Agora, por conta da pandemia, estou há um tempão sem vê-lo — eu moro em Maricá e ele em Niterói [cerca de 35 quilômetros separam as duas cidades fluminenses]. Eu sou muito apaixonado por ele, sou um avô babão. Estou morrendo de saudades, mas recebo fotos e áudios dele pelo WhatsApp, às vezes falamos por vídeo. Graças a Deus existe a tecnologia.

Por ter feito a transição perto dos 50 anos, conheço os dois lados da moeda e sei o que é sofrer com a violência machista que é imposta às mulheres. Enquanto homem, eu me recuso a reproduzir essa violência e é isso que quero ensinar ao meu neto: que ele não precisa reproduzir o machismo para ser homem."

Jordhan Lessa tem 54 anos, mora em Maricá (RJ) e é guarda municipal, palestrante e escritor. Ele é avô de Matheus, de 4 anos.

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