"Meu filho e meu neto são os dois amores da minha vida — apesar de ter sido concebido durante uma violência sexual que sofri aos 16 anos, ele foi gerado com muito amor.
Claro que não foi fácil levar adiante uma gestação depois desse trauma, mas hoje, quando vejo meu filho casado e criando meu neto, que é um moleque lindo, cheio de vida, percebo que aquele sofrimento ficou guardado no passado.
Quando soube que estava esperando o Rafael, eu vivia em situação de rua. Comecei a perceber os sintomas e fui procurar minha mãe. Ela me deu a opção de interromper, mas eu disse que não, que queria manter a gestação — não sou contra o aborto, defendo que quem é dono do corpo possa decidir o que fazer com ele, e eu decidi ter meu filho.
Quando o Rafael tinha quatro meses, ela me colocou para fora de casa pela segunda vez. Disse: 'Você vai, mas meu neto fica', e me fez assinar um papel abrindo mão dele.
Deixar meu filho para trás foi desesperador, como se eu tivesse sido amputado. Voltamos a conviver alguns anos depois e ele só soube como foi concebido já adulto, aos 21 anos, quando escrevi meu primeiro livro. Eu tinha medo de contar antes e essa informação mexer com a cabeça dele, mas isso deixou a gente ainda mais próximo.
O que deu uma balançada na relação foi quando eu decidi passar pela transição de gênero, aos 48 anos, e fazer a cirurgia de retirada dos seios.
Meu filho passou nove meses sem falar comigo. Quando a gente decide fazer uma transição, tudo ao nosso redor balança. Até hoje ele tenta entender e me respeitar, mas vejo que ainda é difícil.
Fui a primeira pessoa a saber que o Matheus estava chegando. Meu filho não me chama mais de mãe, mas também não consegue me chamar de pai. Até meu neto nascer, ele me chamava de Jordhan, mas depois passou a me chamar de vovô. Acho que essa é uma solução que deixa nós dois confortáveis.
Tenho a sensação que meu neto veio para zerar uma história familiar muito conturbada. Ele é um divisor de águas na nossa família: os pais deles têm uma união bacana, ele recebe uma educação maravilhosa e muito amor. Isso é uma revolução.
Com a internet e com tudo que eu já fiz [Jordhan é autor de três livros e dá palestras contando sua história], o Matheus vai saber quem é o avô. Quando ele perguntar, vou explicar. E acho que será muito tranquilo, porque essa geração tem outra pegada, eles não estão preocupados se você usa azul ou rosa.
Agora, por conta da pandemia, estou há um tempão sem vê-lo — eu moro em Maricá e ele em Niterói [cerca de 35 quilômetros separam as duas cidades fluminenses]. Eu sou muito apaixonado por ele, sou um avô babão. Estou morrendo de saudades, mas recebo fotos e áudios dele pelo WhatsApp, às vezes falamos por vídeo. Graças a Deus existe a tecnologia.
Por ter feito a transição perto dos 50 anos, conheço os dois lados da moeda e sei o que é sofrer com a violência machista que é imposta às mulheres. Enquanto homem, eu me recuso a reproduzir essa violência e é isso que quero ensinar ao meu neto: que ele não precisa reproduzir o machismo para ser homem."
Jordhan Lessa tem 54 anos, mora em Maricá (RJ) e é guarda municipal, palestrante e escritor. Ele é avô de Matheus, de 4 anos.