Baronesas da Pisadinha

Empoderadas, modernas e "do piseiro": elas buscam espaço no novo forró eletrônico

Julia Flores De Universa

"Avisa pro Brasil que o piseiro estourou", entoa a cantora Márcia Fellipe ao lado de 6 homens (Barões da Pisadinha, Victor Meira, Zeca Bota Bom & Zé Vaqueiro), já dando a pista que a presença feminina ainda é rara na pisadinha. Caso você nunca tenha escutado o ritmo, está na hora de se atualizar. A nova variação do forró tem pegada eletrônica que dá evidência ao teclado e à batida de sintetizadores e traz uma combinação de sucesso: melodias alegres com letras de "sofrência".

O sucesso está registrado em números: de acordo com o levantamento do Deezer, no top 100 de músicas mais ouvidas do Brasil, entre as 10 primeiras, ao menos 5 são de forró. No Spotify, a mesma coisa. Nomes como Os Barões da Pisadinha, Jonas Esticado, Xand Avião e Tierry dominam a lista. O sucesso da pisadinha alavancou o forró - o estilo teve um aumento de 65% em número de streamings no Deezer nos últimos seis meses.

É, o piseiro estourou. Mas se a pisadinha é um estilo que fala de amor, de bebida, de farra e de tantos outros assuntos universais, os palcos não refletem essa diversidade. Falta oportunidade para as mulheres que buscam espaço no ritmo musical que domina o Brasil. Conversamos com três mulheres representantes do estilo musical para entender os desafios que elas estão superando para fazer sucesso em um meio, segundo elas, ainda muito machista.

Elas cantam pisadinha

Assista trechos das entrevistas com as cantoras

Muitos chegaram no começo da minha carreira solo e falaram: 'Não investe nela, porque mulher não estoura'. Sempre tinha isso de que só os homens iam virar sucesso, as mulheres não.

Márcia Felippe

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"Eu superei o machismo, tive garra e agora estou no meio". Dos seus 41 anos de Márcia Fellipe, mais de 20 deles foram dedicados aos palcos. Ela já fez parte do elenco de bandas como Companhia do Forró, Aviões do Forró e Garota Safada. Hoje segue carreira solo, depois de lutar contra preconceitos em busca da independência profissional.

"Muitos chegaram no começo da minha carreira solo e falaram: 'Não investe nela, porque mulher não estoura'. Sempre tinha isso de que só os homens iam virar sucesso, as mulheres não", conta a artista amazonense. Bom, quem falou isso para ela estava errado. Márcia foi a primeira a gravar um DVD ao vivo de pisadinha. "Piseiro,churrasco e paredão" que reuniu nomes importantes do circuito do forró, como Zé Vaqueiro, Os Barões da Pisadinha e Vitor Fernandes. Só no Spotify, as músicas do álbum já ultrapassam 20 milhões de reproduções.

É também de Márcia o sucesso "Deus me livre, mas quem me dera", uma parceria com o paulistano Jerry Smith que mistura forró eletrônico com funk meloso. A música, que fala sobre o começo de uma relação amorosa, tem mais de 120 milhões de reproduções.

O sucesso de Márcia faz dela referência para muitas mulheres que querem investir no estilo e na música. "Tem cantora, sim, mas faltam oportunidades". Não é fácil, mas dá para chegar lá. "Eu superei o machismo, tive garra e agora estou no meio", garante.

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O machismo afeta muito as mulheres na pisadinha. Parte do público acha que piseiro é ritmo de homem e só homem pode cantar. Além disso, também falta investimento nas vozes femininas.

Malu

Com 12 tatuagens, cabelo descolorido e visual alternativo, Malu é o oposto do estereótipo que temos de "mulher no forró". Filha de pastores evangélicos, uma das novas apostas do ritmo nasceu Natielle de Oliveira Santos, começou cantar profissionalmente aos 16 e, após ser agenciada foi rebatizada: hoje atende por "Malu, a nova voz romântica do Brasil".

Em 2019, quando a pandemia ainda não tinha alterado a agenda mensal de shows, os finais de semana da artista já eram lotados. Foi nesse ano que lançou o álbum "Atualiza , bb". Desse CD, veio o primeiro hit "Disco Arranhado", que tem mais de 7 milhões de reprodução só no Spotify.

O clipe da música é uma homenagem aos caminhoneiros do Brasil e a personagem principal é uma caminhoneira. "Eu tento mostrar o lado da mulher nas minhas músicas. No clipe, a gente mostra a mulher que sai, deixa a família e vai trabalhar. As pessoas têm muito essa idealização de que mulher é bancada por homem. Queríamos mostrar que nós não dependemos de ninguém". No Youtube, o vídeo oficial de "Disco arranhado" tem mais de 20 milhões de visualizações.

Apesar de ser de uma geração diferente da de Márcia Fellipe, a cantora de 18 anos também vê sexismo no meio musical. "O machismo afeta muito as mulheres na pisadinha. Parte do público acha que piseiro é ritmo de homem e só homem pode cantar. Além disso, também falta suporte para investir em você", desabafa.

Com discurso feminista afiado, critica a sexualização que as cantoras sofrem no palco: "Infelizmente as pessoas hipersexualizam as mulheres. Por me sentir desconfortável, eu me privo de usar roupa sensual. Eu me visto do jeito que eu sentir bem", afirma.

Pra mulher ocupar esse espaço é preciso muita garra. Somos poucas: mil homens pra 3 artistas mulheres.

Michele Andrade

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Márcia Fellipe é uma das inspirações de Michele Andrade, que depois de passagens por bandas como Limão com Mel e Companhia do Calypso, também optou pela carreira solo. Multi-instrumentista, a pernambucana de 26 anos é fã assumida de pisadinha, apesar de se identificar como cantora de xote. Na percepção de Michele, a pandemia e o isolamento ajudaram a alavancar o forró em um país até então dominado pelo sertanejo. "Todo mundo passando muita dificuldade. E o forró tem dessas, sabe? Tem uma energia, uma coisa que não dá para se explicar".

Do novo álbum de Michele, uma música sobre sororidade foi composta durante a pandemia. "Ei amiga" surgiu de um episódio real. Trancada em casa por causa do isolamento, ela passou a ouvir discussões dos vizinhos e reparou como o marido tratava a mulher, sempre em um tom agressivo e ofensivo. "Ela sofria muita pressão psicológica. Todos os dias. Aí eu fiquei: 'Caraca, como que pode? Quando acaba o respeito acaba o amor'. Pera aí... isso dá uma música".

"Ei amiga" fala sobre como o apoio de uma amiga pode ajudar mulheres a superar relacionamentos abusivos. A música faz parte do último DVD de Michele, que foi gravado durante a pandemia. Das três artistas, ela foi a única que já voltou a fazer eventos presenciais. A artista defende, porém, a importância das redes sociais para alavancar a carreira de mulheres nesse momento. "Temos uma arma na mão: o celular".

Assim como as outras artistas, Michele sente o machismo atingir sua carreira. "Pra mulher ocupar esse espaço é preciso muita garra. A gente sabe que é da cultura da música. Principalmente quando falamos do Nordeste, que tem uma cultura bem machista. A gente vê poucas mulheres. 1000 homens para 3 artistas mulheres. Você tem que se esforçar e ir pra cima mesmo", afirma.

Ele tá no piseiro e eu sendo pisada

Apesar do ritmo alegre e do nome divertido, grande parte das músicas da pisadinha falam sobre términos, desilusões e desaventuras amorosas. A canção "Rita", de Tierry, por exemplo, é sobre uma mulher "bandida" que bebe, fuma e trai o companheiro. Perdido, ele implora o retorno da amada: "Ô Rita, volta desgramada, volta Rita que eu perdoo a facada". Outra música que divide espaço com "Rita" no top 10 das mais ouvidas do Brasil é "Tá rocheda" na versão de Os Barões da Pisadinha. A letra também fala de traição: "Tá rocheda, tô nem vendo. Pode crê, você merece um prêmio de mulher mais bandida do mundo".

Para Michele, esse tom misógino das músicas da pisadinha é problemático. "Acontece muito essa 'brincadeira' na música de pisadinha, menosprezando e colocando a mulher para trás. Eu não costumo escrever letras para revidar esse machismo, até porque sabemos que músicas com esse tom de brincadeira têm pouco tempo de duração", diz a cantora.

Já Malu não vê problema em dar o troco: "Eu tento mostrar nas minhas músicas que a mulher é independente e que tem muito homem bandido também". Márcia Fellipe também procura trazer uma mensagem de empoderamento em suas músicas. "A gente acaba cantando o que muitas gostariam de estar falando", explica, "procuramos falar sobre o otimismo, a volta por cima, o 'se gostar'".

As três desejam para o futuro do forró o mesmo que aconteceu com o sertanejo: um movimento de "patroas" dominando as paradas musicais com canções sobre independência feminina e sororidade. Marília Mendonça, por falar nisso, é uma das inspirações de Márcia Fellipe. "Eu gosto muito da Marília porque ela é uma mulher empoderada que fala de sofrência com muita categoria".

Seja para falar de amor, seja para embalar o sofrer, voz feminina é o que não falta. Pelo contrário, o que falta é investimento. Mas Michele Andrade é otimista: "Já existe uma galera aí abrindo caminho. Eu vejo a Márcia, a Sol, cantoras que conseguiram se consagrar no forró, ajudando muita gente. Vejo também uma galera nova ganhando espaço aos poucos. Eu acho que o jogo vai virar. Basta querer e ir pra cima". Malu, que já está lutando pelo seu espaço, reforça o coro de Michele e também acredita que esta mudança virá das mulheres: "Eu espero que, a partir de agora, cada vez mais mulheres inspirem outras mulheres".

Elas tocam o piseiro sim

Uma playlist para você entrar de vez no ritmo da pisadinha

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