Furacão Cássia Eller

No Dia da Visibilidade Lésbica, uma homenagem à cantora que "pavimentou a estrada" para as que vieram depois

Mariana Gonzalez Divulgação

Uma mulher bissexual, que falou abertamente sobre seu relacionamento com outras mulheres, questionava a monogamia e a feminilidade, mostrando os seios em cima do palco, enquanto cantava para multidões músicas que faziam sucesso nas rádios, nas novelas e até em programa infantil. Se ainda essa seria uma figura transgressora nos dias de hoje, imagine como foi há quase duas décadas quando Cássia Eller - um "furacão", como se referem os amigos da cantora - dominava a música nacional.

"A Cássia era a própria bandeira: ela não precisava falar nada, mas só de estar ali passava uma mensagem muito forte" -- quem divide essa opinião são o amigo Nando Reis e a apresentadora Sarah Oliveira, que conviveu com ela durante as gravações do "Acústico MTV" e do "Luau MTV".

Para Lan Lanh, que amiga e percussionista de Cássia, a trajetória dela, interrompida de forma precoce - a cantora morreu de infarto, aos 39 anos em dezembro de 2001-, pavimentou a estrada para todas mulheres lésbicas que vieram depois. Como afirmam a seguir a cantora Maria Gadú, a atriz Bruna Linzmeyer e eu, a jornalista que escreve esta reportagem.

Por essas e (muitas) outras, neste Dia Nacional da Visibilidade Lésbica e no ano em que a morte de Cássia completa 20 anos, Universa homenageia a mulher por trás dos clássicos "Malandragem" e "O Segundo Sol".

"Cássia Eller era a própria bandeira"

A trajetória de Cássia Eller pode ter sido curta e interrompida há quase vinte anos, mas "tem muita gente das novas gerações redescobrindo o trabalho dela", conta Sarah Oliveira, apresentadora, ex-VJ da MTV e especialista em jornalismo cultural. "Para a geração Z, ela é cult", e vira e mexe tem gente falando dela no Tik Tok."

Sarah, que esteve com Cássia nas gravações do programa "Luau MTV", uma semana antes da morte dela, diz que "nem a própria Cássia esperava ser esse marco na música brasileira".

Mas, afinal, o que torna Cássia Eller uma referência mesmo duas décadas após sua morte? "No palco, ela se despia de tudo e era muito verdadeira. Quando se é genuína da forma como a Cássia era, todo mundo se identifica, independente da idade. Dentro da MTV, a sexualidade dela nunca foi uma questão, porque era tudo tão natural, tão óbvio: tinha a Eugênia, tinha o Chicão, ela mostrando o peito, pondo a mão 'no saco', cuspindo", diz Sarah, citando a mulher e o filho da cantora.

"A Cássia era a própria bandeira: ela não precisava falar nada, mas só de estar ali passava uma mensagem muito forte. Por isso ela é uma figura tão inspiradora, tanto para a minha geração quanto para as novas gerações", fala a apresentadora, de 42 anos.

Beatriz Helena Ramos do Amaral, autora do livro "Cássia Eller: canção na voz do fogo", lançado em 2002 sobre a trajetória musical da cantora, acrescenta: "Nunca houve ninguém como ela e nunca haverá depois. Se ela estivesse aqui continuaria a nos surpreender porque isso é da natureza de uma artista como ela".

"Cássia transpirava liberdade, isso é essencial em um artista. Tinha uma movimentação irreverente, sarcástica e uma capacidade brilhante de se comunicar com o público, especialmente os jovens. Por isso, ela continua viva, presente, mais do que uma referência, mas como parte da história do Brasil".

Fora do palco

A Cássia era uma mãe amorosa e brincalhona, me levava para andar de skate, jogava bola comigo, era moleca. Vivemos pouco juntos, mas lembro dela em reuniões de pais e também de assisti-la em shows -- até uma certa idade era cabível que eu matasse aulas para acompanhá-la. Apesar das viagens, ela era muito presente. Hoje, entendo que minha mãe é uma coisa muito grande, tanto na música quanto nas posturas pessoais: uma sapatona, casada com outra mulher, que teve um filho, cantava Itamar Assumpção, Luiz Melodia, acho tudo isso muito foda.

Chicão

O furacão que ela trazia no peito ventava na sua garganta - ninguém saía impune depois de ouvi-la e vê-la no palco. Fora dele, Cássia abriu um precedente fundamental para todes nós. Mesmo sendo tão tímida e de poucos discursos, suas atitudes nos renderam respeito e visibilidade. E isso vale mais do que qualquer palavra. Ela sempre foi uma revolução ambulante e continuaria sendo. Se estivesse aqui hoje, ia defender a vacina, o isolamento, e sofrer longe dos palcos. Sem dúvidas, seria uma voz a se ouvir e uma pessoa da qual teríamos, como temos, muito orgulho.

Zélia Duncan, cantora

A gente tinha muita afinidade, uma certa complementaridade. [Conviver com a Cássia] foi maravilhoso. Tivemos uma amizade curta, mas muito intensa e que certamente teria perdurado. Vinte anos depois, continua a ser uma memória deliciosa e ao mesmo tempo trágica, porque eu sinto muita falta dela. Ela era uma mulher livre e, quando estava à vontade, em cima do palco, cantando, tudo era dito, tudo era revelado, sem que ela precisasse precisar teorizar. Cássia mais fez do que disse, e o que ela disse estava em suas ações, não em suas declarações.

Nando Reis

Vi a Cássia cantar pela primeira vez quando eu ainda era uma menina, e ela tinha uma liberdade provocadora. Eu estava começando minha carreira, vindo da Bahia com a minha primeira banda, um power trio feminino, e quando a vi em cima do palco, pensei: 'Ainda vou tocar com ela'. O universo entendeu meu desejo [por quatro anos, Lan Lanh foi percussionista na banda de Cássia]. Eu tinha nela uma referência de mulher livre, que era de verdade e não tinha nada para esconder. De uma maneira muito natural, Cássia Eller pavimentou a estrada para todas nós.

Lan Lahn

Marco na Justiça

A família formada por Cássia, Eugênia e Chicão abriu portas para que o STF reconhecesse famílias homoafetivas

Poucos meses depois de perder Cássia Eller, Maria Eugênia Vieira Martins, esposa da cantora, enfrentou uma dura batalha na Justiça para garantir o direito de continuar criando o filho das duas, Chicão, então com 8 anos.

"Tenho memórias bem confusas, foi um período de muita correria, mas eu entendia que minha mãe [Cássia] tinha morrido e que eu queria continuar com a minha mãe [Eugênia]", conta Chicão.

Na época, ela disputava a guarda com o avô do menino, Altair Eller, pai de Cássia, que acabou desistindo da briga — assim, a Justiça brasileira reconheceu pela primeira vez a dupla maternidade ao conceder a tutela de Chico a Maria Eugênia. Universa tentou contato com Maria Eugênia, que preferiu não participar da reportagem.

"É um caso que acompanha muito a evolução da Justiça no sentido de reconhecer as 'novas' famílias — entre aspas, porque não são novas, existem há muito tempo, mas tiveram reconhecimento tardio", diz a advogada Luanda Pires, secretária da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP e presidente da Associação Brasileira de Mulheres Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Intersexo. "A disputa pela guarda do Chicão foi muito importante porque deixou claro para a sociedade que as leis deveriam mudar para resguardar os direitos dessas famílias, independente de orientação sexual e laços consanguíneos."

Tudo isso contribuiu para que, dez anos depois, em 2011, o STF finalmente reconhecesse a união homoafetiva e as famílias formadas a partir de duas mães ou dois pais.

Chicão completa: "Esse é um dos maiores legados da minha mãe. Foi um marco tão importante se não maior que a música dela, e olha que a música não foi pouco".

Lan Lanh: "Cássia pavimentou estrada para todas nós"

A amiga e colega de banda, que será mãe em poucos meses, lembra sua primeira referência de família homoafetiva

UNIVERSA: Cássia foi mãe quando famílias homoafetivas não tinham nenhum direito assegurado. Agora que você espera suas filhas, com a Nanda [Costa, atriz], diria que, de certa forma, ela abriu as portas para a sua família?
LAN LANH: Com certeza. Quando o Chicão era pequenininho, eu vi de perto tudo o que envolve a maternidade: os desafios, a logística, a preocupação com a educação e a diversão. Era tudo tão natural, Cássia e Eugênia criando o filho juntas. Depois que ela faleceu ainda protagonizou uma conquista muito importante, com a guarda do Chicão.

Agora eu vou ser mãe de duas meninas, com certeza o convívio com aquela família, a Cássia, a Eugênia e o Chicão, com seus desafios e preconceitos, vai ser uma enorme referência para a minha família.

Apesar de ser filho de uma mulher famosa, o Chicão enfrentou algumas questões na escola e a forma como ele lidava com isso é um ensinamento: os coleguinhas diziam 'sua mãe é sapatão' e ele respondia 'e daí?'. Fico pensando se minhas filhas dirão a mesma coisa — mas imagino que, hoje em dia, ninguém use 'sapatão' para xingar ninguém, porque nós ressignificamos essa palavra.

A sexualidade dela era uma questão nos anos 1990 e 2000?
Eu vi a Cássia viver desafios e muitos preconceitos. Hoje em dia é cada vez mais importante que a gente se coloque, se engaje, mas naquela época a gente não pensava muito sobre essas coisas. Antes, quando as pessoas me perguntavam se eu já tinha sofrido preconceito, eu dizia que não, porque realmente a gente não se dava conta. Hoje eu digo: 'Claro que sofri'. A Cássia teve um casamento longo, um filho, as coisas foram acontecendo. Mesmo sem levantar nenhuma bandeira, ela pavimentou uma estrada para todas nós, de uma maneira muito natural.

Vinte anos depois de sua morte, qual é o maior legado que Cássia deixou para o Brasil?
A liberdade de ser feliz -- ou melhor, a liberdade de buscar a própria felicidade. Quando você se sente livre para ser feliz, as barreiras, os preconceitos, ficam muito pequenos. A Cássia tinha fome de vida. Ela tinha essa coisa de família, liberdade e alegria. E música, claro, tudo era regado a muita música.

Referência para novas gerações

Me lembro de ver Cássia pela primeira vez no programa do Jô, nos anos 1990. Só havia escutado sua voz pelo rádio. Quando a vi, fiquei afônica: o cabelo num moicano azul, a risada sincera e expansiva. Cássia Eller não abriu portas, ela é um portal imenso. Poder olhar e se reconhecer de alguma forma em alguém, num tempo em que para existir tínhamos que ir a bares e lugares segmentados, isso era um mundo. Queria ter aquele moicano, pois carregava a possibilidade de ser lésbica aos olhos da sociedade. Sua trajetória -- a maternidade, o casamento -- colocou em nossas mãos a chave da possibilidade.

Maria Gadú, cantora

Quando eu comecei a namorar mulheres, foi algo muito tranquilo, mas a mídia fez um rebuliço. Se foi assim em 2015, imagina nos anos 1990? Cássia não só rompeu com a heterossexualidade compulsória, mas com a ideia do que uma mulher deve ser, do que uma mãe deve ser. Ela era sapatão, amava outras mulheres, era caminhão - o que significa ser uma mulher não feminilizada - era roqueira e poligâmica. E fazia sucesso! Eu agradeço a alegria com que ela viveu sua liberdade. Ela abriu caminho para que, anos depois, isso fosse mais fácil pra mim, para que, além da retaliação, eu pudesse ter acolhimento. E isso é muita coisa.

Bruna Linzmeyer, atriz

Cássia Eller toca na minha casa desde as minhas lembranças mais antigas, mas foi só quando me reconheci enquanto mulher lésbica, lá pelos 18 anos, que entendi quem era aquela mulher e tudo o que ela representa -- especialmente o casamento e a maternidade quando ainda não tínhamos direitos assegurados no Brasil. Adoraria tê-la entrevistado, mas vivi só cinco anos no mesmo mundo que ela. Quando minhas editoras pediram que eu sugerisse um nome para marcar este Dia da Visibilidade Lésbica, não pensei em ninguém além de Cássia Eller, que segue sendo referência para nós, mesmo vinte anos depois.

Mariana Gonzalez, repórter

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