O amor é preto

No afeto do dia a dia, casais negros mostram como experimentam o amor e acolhem dores e aprendizados juntos

Nathália Geraldo De Universa Georgia Niara/UOL

"Nós, negros, temos sido profundamente feridos. Como a gente diz, 'feridos até o coração'. E essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e, consequentemente, de amar."

A frase, que está no texto "Vivendo de amor", da escritora e ativista estadunidense bell hooks, fala muito da realidade de tantos casais afrocentrados —quando pessoas negras se relacionam afetivamente entre si.

Para casais negros, conhecer o amor pode significar revisitar dores, aprendizados e redescobertas, dentro da construção romântica. É o que se vê nas três histórias que integram esta terceira parte de uma série de reportagens de celebração da beleza e da vida negras de Universa, marcando o Dia da Consciência Negra.

1º de dezembro de 2019. Uma festa e uns beijos. A trancista e cabeleireira afro Valéria Borges de Matos, 32 anos, e a motorista de aplicativo Michelle Ministra, 29 anos, até já eram amigas no Facebook, mas foi só depois do encontro que deram início a uma conversa pela rede social.

Em janeiro de 2020, ainda estavam ficando, e veio o convite do aniversário de Michelle. O local era o Aparelha Luzia, centro cultural e quilombo urbano, no centro de São Paulo. Espaço frequentado por maioria negra.

"Prefiro estar em um relacionamento em que a pessoa está mais ligada nas minhas questões do que ter que discutir o básico com alguém que, às vezes, não percebe certas situações ligadas ao racismo", pontua Valéria.

Para ela, namorar uma mulher negra não é "mais difícil" do que estar ao lado de alguém branco. "Todo o mundo carrega suas questões na afetividade, só que a sociedade está mais acostumada a aguentar e a aceitar as questões das mulheres brancas."

Michelle diz que amar Valéria faz com que ela se sinta acolhida para lidar com o racismo e a lesbofobia que sofrem em seu cotidiano. "Facilita a compreensão dessas coisas"

Em poucos meses, estavam morando juntas. "Ela me salvou na pandemia. Não sei o que fez nossos caminhos se encontrarem naquele momento, mas, graças a Deus, aconteceu", diz a trancista. Para ela, se aproximar da amada foi um reencontro com a autoestima. "Estava em uma fase de não acreditar em mim. Ela me abriu a cabeça para rever tudo isso."

A rotina profissional acelerada de Valéria é pausada pelas propostas de fazer trilhas e acampamentos da parceira, que prefere encontrar brechas para se jogar no mundo como forma de se reenergizar. "Já a levei para acampar, para passear em Paraty. Digo que a gente precisa descansar, e ela sempre topa", comenta Michelle, enquanto tem os cabelos trançados por Valéria —outra demonstração de carinho entre o casal.

Como disse Guimarães Rosa em "Grande Sertão: Veredas": "Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura".

O amor entre a psicóloga Mariana Luz, 37 anos, e o personal chef Luiz Carlos Jacinto, 33 anos, é uma construção. Apaixonados há cinco anos, depois de um encontro por aplicativo de relacionamentos, os dois contam que não começaram a partir do "felizes para sempre". Mas, sim, escalando uma montanha juntos.

"Logo na primeira semana, falamos de coisas profundas, de quem éramos, de nossos segredos. Foi uma conexão imediata", diz a psicóloga. "Eu a agarrei", brinca Luiz.

Ativista feminista e antirracista, Mariana aprende com o companheiro a lutar pelas pautas em que acredita, mas também a comemorar aquilo que já foi conquistado. Já o namorado diz que estar numa relação com ela o ajuda a rever dores ligadas à vida de escassez durante a infância.

"Mariana me ajudou a superar alguns traumas e a entender que nossas vidas são uma batalha constante. Pode não acabar o racismo hoje, amanhã nem no ano que vem. O que faço, então, é ensinar meu filho, de 10 anos, e meus sobrinhos a amarem a cor que têm. E amar ao próximo, independentemente da cor. Mas, se puder ser o afeto entre nós, negros, que façam. Porque precisamos dele."

Os dois foram viver juntos na Vila Nivi, em São Paulo, tendo verdade, disposição e autocuidado como bases da relação. Para ela, a ideia de que "o amor preto cura" só faz sentido se as pessoas que se relacionam estiverem inteiras para amar.

"Não acredito muito nessa dinâmica, porque nossas dores podem ficar mais evidentes em um relacionamento. Levamos o racismo, além do machismo e da pobreza, para as relações. Mas, vejo que ter feito mil anos de terapia, e ainda fazer, me ajuda a estar inteira para me relacionar." Mesma percepção tem o personal chef. "A gente tem que se curar primeiro."

No convívio, há muito diálogo. "Não queremos uma relação de braço de ferro. E o Luiz tem uma coisa que deveria servir de inspiração para outros homens: ele fala. A gente senta e conversa. Nos escutamos, porque desejamos que dê certo."


Francisca da Costa Viana, 64 anos, dá uma olhadinha apaixonada para Rauzino de Paula Viana, 76 anos, quando ele diz que é feliz ao lado dela. O "velho" --é assim que chama o marido, com quem está há 46 anos-- fica mais calado e raramente se declara a ela.

Mas, o dia a dia é de dengo. Quando Francisca sai para trabalhar como técnica de enfermagem, é ele quem faz o café de manhã, o almoço e lava a louça.

Os dois dividem a tarefa de cuidar do jardim de suculentas em casa, em Ferraz de Vasconcelos, Grande São Paulo. E dividem também o cobertor. "Nosso relacionamento é bom, eu sempre amanheço debaixo da manta dele. Às vezes, até brinco que é bom eu sair para trabalhar. Duramos muito porque nunca estivemos tanto tempo sob o mesmo teto. Quando estamos juntos, aproveitamos", entrega Francisca.

O casal se conheceu quando ele era gerente de um supermercado, e ela, repositora. Enfrentaram o racismo dentro da família de Francisca, que tem a pele mais clara do que a de Rauzino, mas se apoiaram para viver o amor. "Ele foi meu primeiro namorado."

"Começamos a namorar escondido. Só que uma vez íamos pela rua e um cara assaltou a gente, levando nossos relógios. Um colega acabou contando para o delegado, e foi aí que a família dela descobriu que nós estávamos juntos", conta o aposentado.

Prestes a completar 18 anos, Francisca viu o pai, então, agilizar o casamento dos dois. A família Viana começaria a crescer. Francisca e Rauzino tiveram cinco filhos: Ivan, Cintia, Elias, Adriana e Isaías.

A cumplicidade amorosa não diminui por nada. "Quando a gente não concorda em algo, fica em silêncio por respeitar a opinião do outro. Meu filho mais velho pergunta: 'Qual é o motivo de você estar tanto tempo com o pai?'. Digo que ele me libertou para que eu tivesse, como mulher negra, oportunidade de estudar e trabalhar, coisas que meu pai não me deixava fazer."

"A vida é difícil e tem muitos casais que não ficam nem um ano juntos. Eu tenho uma parceira ao meu lado e, graças a Deus, sou feliz", celebra o aposentado.

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