A pele que habito
No mês da Consciência Negra, quatro mulheres exaltam a beleza de sua pele
No mês da Consciência Negra, quatro mulheres exaltam a beleza de sua pele
Texto Luiza Souto
Fotografia Georgia Niara
A cantora, compositora e poeta Kimani carrega tatuado em seu peito o verso bíblico "Sem amor eu nada seria". Mas, aos 28 anos, a moradora do Grajaú, zona sul de São Paulo, diz que encontrou rima em cada canto do seu corpo há apenas três anos.
"Esse processo de amor levou tempo. Passei a infância me odiando e perguntando por que Deus tinha me feito com a pele que nasci. Foram 25 anos me odiando e três recentes anos me amando."
Neste mês da Consciência Negra, Universa apresenta uma série de reportagens celebrando a beleza e o amor pretos. Na primeira, mulheres falam sobre a descoberta do cabelo crespo e do poder que ele carrega. Esta, sobre a pele, é a segunda. A terceira parte será uma declaração de amor aos relacionamentos afrocentrados.
Alta, de pele negra clara, sardas no rosto, nariz e boca largos, Kimani conta que não era vista como uma mulher negra. "É como se me colocassem num não-lugar, num espaço em que não era tão negra assim --e isso me daria certa vantagem perante outras pessoas."
Nesse limbo, tentou se adequar aos padrões que ouvia serem certos: alisou o cabelo crespo, usou filtro nas fotos para clareá-las, colocou um pregador de roupas no nariz para afiná-lo. Em 2017, quando Kimani chegou ao movimento Slam (batalha de poesia falada) e encontrou pessoas com a mesma cor e vivência que ela, finalmente entendeu o colorismo e se reconheceu mulher negra.
O Slam te convida para se olhar, te leva a um mergulho interno. Não tem como você falar do monstro que está aqui fora se você não lidar com o que está dentro. Encontrar essa majestade, esse orgulho de que eu também faço parte de algo, tem sido um processo de três anos para cá."
Dona da primeira marca brasileira a assinar coleção para a Marvel, inspirada nas mulheres de Wakanda, país fictício do filme "Pantera Negra", Jal Vieira, 32 anos, conta que nunca entra em uma loja com as mãos no bolso. Sabe que sua pele negra ainda faz com que muita gente suspeite dela.
Por essas e outras violências, Jal fala o quanto a sua autoestima ficou abalada por um período de sua vida. Mas, no lugar de destacar as dores, ela foca a busca constante pelo reconhecimento, contando com a ajuda de mulheres que têm trajetórias semelhantes à sua.
"A gente fala o tempo inteiro sobre essas dores, e elas vão sempre existir. Por ser mulher, negra, lésbica e periférica, essas dores fazem parte da minha história, mas elas não definem quem eu sou. Então, hoje, eu também quero contar sobre as minhas vitórias. E que eu também sou feita delas, que sou uma pessoa criativa, que não desiste —apesar de a sociedade querer. Vou continuar aqui até onde eu puder. Não só por mim, mas por quem veio antes de mim e por quem está no corre comigo."
Nossa potência é tão gigantesca, e as pessoas brancas, já percebendo isso, nos podam o tempo inteiro. Então, quando a gente toma consciência dessa grandiosidade, ninguém pode nos parar. A gente evidencia cada vez mais as nossas características, que são lindas."
Das 26 tatuagens que colorem a pele da apresentadora Mylla Moreira, 45 anos, três foram feitas para esconder as marcas de uma tentativa de feminicídio que sofreu em 2007, quando um ex não aceitou o fim da relação e jogou a moto em que os dois estavam contra um caminhão. As outras cobrem as cicatrizes das cirurgias que ela precisou fazer para a retirada de um câncer.
Ainda assim, cada traço é motivo de orgulho para a empreendedora, que faz dos desenhos também a sua fonte de trabalho como alt model --modelo alternativa, fora dos padrões convencionais.
"Minha pele hoje é minha arte, sou uma tela viva ambulante. Cobri as cicatrizes porque as violências que vivi me incomodam. Mas hoje entendo que minha raça é meu cartão de visita, e as tatuagens são minhas histórias de lutas e vitórias. Sou uma fênix forjada pela dor e transformada pelo amor próprio."
Mylla nasceu no interior de São Paulo, em Pariquera- Açu, no Vale do Ribeira. Filha de mãe branca e pai negro, ensina que ter consciência sobre sua cor e sua origem é também perpetuar a história de seus ancestrais.
Os jovens precisam saber, por exemplo, que as tranças eram usadas como mapas para rotas de fuga dos quilombos. Conhecendo as nossas raízes, eles saberão que somos descendentes de reis e rainhas."
A ativista de direitos humanos e criadora de conteúdo Luciana Viegas, 28 anos, é filha de pai negro e mãe branca. Aprendeu, desde muito nova, que os comentários sobre as suas feições ouvidos fora de casa eram racistas.
"Saí do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, aos 6 anos para morar em Jundiaí, uma cidade colonizada por italianos. Na escola, antes que alguém falasse algo, comecei eu mesma a fazer piadas depreciativas sobre a minha cor e as minhas feições. Isso era muito violento, me fazia sentir desconfortável."
Na pele de Luciana, diagnosticada com autismo, habitaram ainda outras violências, como um abuso aos 16 anos e as tentativas de embranquecimento para se adequar a uma sociedade que tinha como modelos de beleza a cantora Sandy e a atriz Ana Paula Arósio, ambas brancas.
As pazes com o espelho vieram após o nascimento da segunda filha, Elisa, de 3 anos --ela é ainda mãe de Luiz, de 4.
"A minha imagem no espelho era de extremo ódio. Eu não gostava da minha pele, da minha boca, do meu olho nem do meu sorriso. Mas minha filha me olhava admirada, como se eu fosse a coisa mais bonita do mundo, e fui rompendo esse auto-ódio aos pouquinhos."
Quando eu olho no espelho, percebo que encontrei o meu cabelo, o meu jeito, a minha forma de expressão. E me sinto bem feliz com o que vejo. Mas foi um processo olhar para mim como alguém digno de amor. Não deveria ser tão difícil."
Publicado em 22 de novembro de 2021.
Texto: Luiza Souto
Edição de texto: Débora Miranda
Fotografia: Georgia Niara
Produção de moda: Ione Maria
Maquiagem: Badu
Direção de Arte: René Cardillo