A experiência de quase morte

Mulheres que viveram sensações extremas nas UTIs ao lutar contra o coronavírus contam o que sentiram

Elisa Soupin e Tereza Novaes Colaboração para Universa Ksenia Zvezdina/Getty Images/iStockphoto

Inesperadamente, dezenas de milhares de brasileiros passaram juntos, nos últimos três meses, por experiências extremas muito semelhantes: enfrentaram um leito de hospital para conseguir combater os efeitos da Covid-19 sobre o organismo. Em comum, além dos cuidados médicos necessários, eles se depararam com o risco evidente de morte.

Quem supera o leito hospitalar ou de UTI traz relatos da experiência de quase morte: a percepção do fim próximo e a decorrente vontade de viver, flashes de cenas que não foram vividas, pedidos feitos a Deus por quem não lembrava mais das orações, luz forte, incapacidade de falar.

A repórter da TV Globo no DF Heloísa Torres, 47, ouviu dos médicos que não poderia piorar. E ela credita à sua fé a capacidade de recuperação. Enquanto estava internada, ela conta que pediu muito a Deus e à Nossa Senhora para que sobrevivesse. E guarda muitos flashes dos dias no hospital. "[Em um dos dias] Eu achava que tinha rezado em voz alta, muito alto, mas as enfermeiras que ficaram comigo disseram que não. Hoje tem coisas que não sei se foram reais."

A enfermeira Rusia Gois, 42, grávida de 8 meses, ouviu da médica no Rio que, de 0 a 10, a gravidade do seu caso era 11. Ela deu entrada no hospital e ouviu que seu parto teria de ser feito imediatamente. Acordou muitos dias depois. Enquanto estava intubada, tem flashes em que está cercada por fotos de um irmão já falecido sorrindo para ela. "[São imagens que] hoje eu sei que não aconteceram nesse plano."

A servidora pública de Fortaleza Ligia, 38, que pediu para não ter seu sobrenome divulgado, abriu os olhos e se viu perdida no tempo. "Tinha um cartaz na parede com meu nome e dia de admissão, 9 de maio, e eu não conseguia lembrar quando tinha sido maio."

A perda de memória é comum em pacientes que passaram pela UTI. "Antes da intubação, é feita uma analgesia, o paciente é sedado de maneira a tornar aquele período minimamente confortável. Alguns medicamentos sedativos causam amnésia retrógradas e anterógradas", esclarece o pneumologista Gustavo Prado, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.

Leia, a seguir, o relato do que sentiram três mulheres ao enfrentar o coronavírus em um leito hospitalar.

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"Tenho memórias confusas, que hoje eu sei que não aconteceram neste plano"

Rusia Gois, 42, enfermeira, internada por 20 dias no Rio de Janeiro

Eu sou enfermeira e, por estar grávida, já estava bem preocupada com a Covid-19. Eu trabalho em uma maternidade, mas eles não me afastaram. Então eu entrei na Justiça e pedi um mandado de segurança, que me garantisse o direito de ficar em casa. Já havia alguns alguns estudos falando que o vírus poderia ser um complicador na gravidez e eu trabalho em UTI neonatal, com bebês prematuros, então eu sei o sofrimento que é e não queria passar por aquilo.

Só que o meu marido, que é militar, continuou trabalhando. Primeiro, foi ele. Ficou doente, com febre, dor de cabeça e dor no corpo, mas melhorou em dois dias. Depois foi minha filha, Julia, 8. Aí chegou a minha vez. No final de abril, comecei a sentir dor de garganta, dor de cabeça, tosse curta, dificuldade para respirar, perdi o olfato e o paladar. Eu já imaginava que pudesse ser coronavírus quando vi os sintomas neles. Mas eu não queria acreditar, tinha tomado tanto cuidado e tinha muito medo.

Comecei a me sentir muito mal resolvi ir para a maternidade [em que planejei o parto] porque, se precisasse ficar internada, já estaria lá. Fiz o exame para Covid-19 e me liberaram. Voltei para casa e piorei. No dia seguinte, retornei à maternidade. Lembro que a médica disse: "Você testou positivo para a Covid-19". Fiquei muito mal.

Em seguida, fui internada e meu quadro ia piorando. Me disseram que 75% do meu pulmão já estava comprometido. Como meu caso era grave, teriam que antecipar meu parto. Perguntei para quando. Eles disseram: para hoje, agora. Eu estava com 34 semanas, 8 meses. Fui arrasada pro centro cirúrgico, porque não me despedi da minha filha, do meu marido. Na sala do parto tinha muita gente, uma equipe imensa, e eu pensei 'nossa, essa maternidade deve ser muito boa', não tinha noção de que era porque meu caso é que era muito grave.

Na sala cirúrgica, lembro de uma médica com quem falei, de cílios muito longos e bonitos. Pedi: 'Doutora, não me deixa morrer, eu tenho duas filhas pra criar'. A médica não respondeu

Daí, a cena seguinte que me lembro é de acordar em outro lugar, no Hospital Pró-Cardíaco. O hospital é perto da maternidade, mas o meu caso era tão grave que meu marido teve que assinar um termo de consentimento porque existia o risco de eu morrer no trajeto. Fiquei sabendo disso depois.

Quando eu acordei, olhei para a minha barriga. Contaram que minha filha estava bem, na UTI neonatal da maternidade. Soube que eu fui intubada durante o parto e que a Luísa, minha bebê, nasceu roxa e que o APGAR [teste que mede a vitalidade de um recém-nascido de 0 a 10) foi 1 —no documento dela tem escrito morte aparente.

Uma médica me contou que, de 0 a 10, a minha gravidade era de 11. Eu só sei o que as pessoas me contam. Meu irmão chorou porque disseram que eu provavelmente não iria sobreviver. Durante o tempo na UTI, me lembro de pensar se tinha alguém penteando o cabelo da minha filha mais velha. Eu estava sedada quando acordei e percebi que estava intubada. Não conseguia falar, não conseguia nem me mexer direito. Aí a enfermeira mostrou: está vendo aquela foto ali, é a Luísa. A equipe imprimiu uma foto da minha filha e todo dia quando eu acordava, olhava para ela, que é a cara da irmã.

Desse tempo de UTI, eu tenho flashes. Na minha memória tenho várias fotos penduradas perto de mim de um irmão que eu perdi, ele sempre sorrindo. Tenho outra memória de me levantar e ir até outro ambiente para ligar alguém. Só que sei que não foi real porque eu não conseguia andar.

Tenho a uma memória de estar na sala da minha mãe e ver a minha família reunida, triste. São memórias confusas, flashes, que hoje eu sei que não aconteceram nesse plano.

No Dia das Mães, eu já tinha tirado a intubação e fizeram uma chamada de vídeo e eu vi minha filha pela primeira vez, vi meu marido também. Conheci minha filha assim. Eu tive alta no dia 15 de maio, e meu exame continuava dando positivo mesmo depois de quatro exames. A infectologista do hospital falou que, como meu caso foi muito grave, partes do vírus ainda estavam presentes.

No quinto exame, deu negativo. Mas eu estava morrendo de medo de ir buscar a minha filha no berçário, tinha medo de que ela se contaminasse. Dez dias depois, trouxe ela para casa. Teve festa na maternidade. Eu usei máscara por vários dias. A gente ainda não recebeu ninguém. Meu pai me perguntou se podia vir à minha casa para eu mostrar minha filha pela janela. Isso partiu meu coração. Pedi para ele esperar um pouco mais. Luísa está ótima, o pulmão está limpinho, ela está com 4,3 kg, sem alterações neurológicas.

Eu também sigo bem. Andei com muita dificuldade no início, tive muitas dores nas costas, mas minha voz voltou ao normal e estou recuperada, graças a Deus.

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"Achei que eu fosse morrer; pedia a Deus e à Nossa Senhora para sobreviver"

Heloísa Torres, 47, repórter TV Globo no DF, ficou 4 dias internada

Eu estava de férias e fui para Santa Catarina no dia 7 de março, e lá não havia ninguém de máscara, nenhum cuidado. Aquilo me deixou um pouco preocupada, porque eu já tinha feito algumas matérias sobre coronavírus. Voltei para Brasília com conexão pelo aeroporto de Guarulhos (SP) no dia 16 e lá, sim, já tinha muita gente de máscara. Quatro dias depois, comecei a sentir um incômodo na garganta, um princípio de gripe, sentia uma dor lombar, então achei que pudesse ser dengue ou algo nos rins.

Meu marido teve os mesmos sintomas, passou 2 dias assim e melhorou. Já eu, fui piorando, com muita dor no corpo, moleza e uma dor bem no topo da cabeça, tomava remédio para dor e ela só aumentava. Meu cunhado testou positivo para coronavírus, meu marido também, e o meu teste deu negativo. Só que eu segui piorando. Uma médica falou que provavelmente era um falso negativo. Eu sentia dor nas articulações, dores nas pernas, da lombar até o pé, e comecei a sentir um pouco de falta de ar, um cansaço leve. Aí eu perdi o olfato, era 1º de abril. Dia 3, eu acordei com muita dor no peito, o ar não vinha, a médica me mandou correr para hospital.

Fui direto para o isolamento, fiz logo uma tomografia do pulmão e a médica voltou com os olhos arregalados e disse: 'Sua situação não é boa, seu pulmão esquerdo está muito comprometido, você vai ter que ser internada'.

O isolamento é pavoroso, não tinha janela, não tinha nada, quando eu chamava os médicos, eles demoravam a chegar, por conta de todo o protocolo de roupa e paramentos.

Eu fiz um segundo exame e deu negativo de novo. Mas o pneumologista disse: 'Não importa, você está [com coronavírus] e esse é o seu diagnóstico'. Comecei a tomar os antibióticos na veia, mas eu só piorava, com muita dor no corpo, muita dor na cabeça, e muito enjoo. Achei que eu fosse morrer.

É curioso porque, mesmo sendo católica, eu não lembrava as orações. Mas lembro de pedir muito a Deus e à Nossa Senhora para me ajudar, pedi muito para sobreviver, lembro de pedir muito pra viver e eu acho sinceramente que foi a fé que me tirou dali. Às vezes a gente tem a tendência a se entregar e desistir e eu pedi muito.

Eu tive muitos flashes. Tem coisas que até hoje eu fico pensando: será que aconteceu mesmo? E eu realmente não sei. Eu achava por exemplo, que eu tinha rezado em voz alta, muito alto, mas as enfermeiras que ficaram comigo disseram que não. Tem coisas que não sei se foram ou não reais.

O enfermeiro me falava: 'O seu caso é grave, mas há piores', e os médicos me diziam: 'Você não pode piorar'. Essa incerteza para mim foi uma das piores coisas, não saber como eu estaria no dia seguinte, meu organismo não estava reagindo. Quando meu exame de sangue deu uma melhorada, eu pedi para voltar para casa, mesmo sabendo da gravidade. Voltei no dia 7, ainda com falta de ar e muito medo. Só uns 5 dias depois melhorei.

Meu olfato voltou totalmente só dois meses depois, a minha capacidade pulmonar ficou muito afetada, então eu estou em fisioterapia pulmonar. Hoje eu estou respirando quase normalmente. Eu sei que não tenho mais o vírus, mas ficaram esses resquícios. Não desejo pra ninguém o que passei.

Comecei a fazer um tratamento psicológico por causa disso, porque tive um pouco de pânico depois, no trabalho, na rua, com medo de que as pessoas fiquem doentes. A primeira vez que eu fui ao mercado, passei mal e queria mandar todo mundo para casa, estou fazendo acompanhamento com psiquiatra. Vou superar isso aos poucos.

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"Tinha um cartaz com nome e admissão, 9 de maio, mas não lembrava quando tinha sido maio"

Ligia, 38, servidora pública passou 14 dias na UTI em Fortaleza

Para mim, o alerta soou quando perdi o paladar. Aí eu realmente achei que poderia ser Covid-19. Eu quis comer pão francês com ovo mexido e queijo e não senti sabor, e queijo derretido sem sabor é uma textura nojenta.

Meu irmão também contraiu a doença, mas de forma mais branda. Comecei a sentir falta de ar bem leve e achei que era desculpa para nós dois irmos ao hospital. Fomos examinados, recebemos uma receita, um documento dizendo como fazer notificação ao estado e como marcar o exame de Covid. Dois dias depois, piorei.

Lembro de chegar ao hospital e tomar soro com algo, talvez analgésico, de fazer tomografia —que indicou 70% de comprometimento do pulmão—, e de ter chorado no corredor enquanto esperava para ser atendida de novo pelo médico.

Fui para algum lugar com cama, e a partir daí não lembro mais. Não lembro de acordar ou do momento em que tiraram o tubo. Lembro de explicarem que eu estava intubada e que iam tirá-lo, e que para isso era preciso que eu ficasse calma.

Os primeiros momentos foram muito estranhos, todos usavam roupas que eu nunca tinha visto. Tinha um cartaz na parede com meu nome e dia de admissão, 9 de maio, e eu não conseguia lembrar quando tinha sido maio.

Gesticulei que queria papel, queria escrever para perguntar tudo. Uma pessoa me disse: 'Eu sei o que você quer, está pedindo água', e eu estava escrevendo: O que está acontecendo? Quando explicaram, perguntei do meu irmão. Tiveram que ir pesquisar para me dizer que ele estava bem, em casa. Não me contaram que minha família sabia onde eu estava. Fiquei aterrorizada pensando que eu tinha sumido e que minha mãe teria literalmente morrido de preocupação, porque ela tem pressão alta e já teve AVC.

A partir dali, meu medo era de que me reintubassem. Então falei aos médicos que, se precisasse, negava consentimento e preferia morrer. Não sei dizer por que esse sentimento era tão forte. Se eu tossia com catarro ou tinha febre, o medo voltava. Tinha medo de reintubar, mas não de morrer.

Depois de 10 dias intubada, ainda passei outros quatro consciente na UTI. Eram quatro pacientes por sala e eu era mais ou menos a única acordada.

A luz acesa 24 horas por dia, cada um com seus monitores bipando, a mangueira de pressão apertava para medir automaticamente a cada 1 hora. Não consegui dormir direito, cochilei talvez 1 hora na primeira noite, e mais 1 hora na segunda tarde. Passei três dias acordada.

No terceiro dia, vi uma pessoa morrer. Tinha acabado de tomar a sopa do almoço, quando o monitor dele zerou. O estado era grave, um idoso. Cheguei a pensar que a pessoa estaria melhor se parassem com os esforços de reanimação. Não é eugenia, aquela história de 'já está velho', é porque dava para ver o sofrimento e a deterioração dele.

Perguntei ao meu irmão se eu sabia que seria intubada. Ele disse que eu que até pedi que fizessem. Fiquei chocada, considerando o pânico que a ideia me dá hoje. Ele também disse que, para me acordar, deram antipsicóticos porque tentaram duas vezes e eu estava agitada demais, e só conseguiram na terceira.

Assisto a muitas séries médicas, antes de adoecer tinha assistido todas as 16 temporadas de "Grey's Anatomy". Sei que não é tudo realista, mas acho que as cenas de desintubar são bem realistas.

Cheguei na enfermaria sem forças para nada, sem poder ficar de pé. Quase um mês depois da internação, voltei para casa, faço fisioterapia respiratória e já consigo encher o peito.

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