Eu sou enfermeira e, por estar grávida, já estava bem preocupada com a Covid-19. Eu trabalho em uma maternidade, mas eles não me afastaram. Então eu entrei na Justiça e pedi um mandado de segurança, que me garantisse o direito de ficar em casa. Já havia alguns alguns estudos falando que o vírus poderia ser um complicador na gravidez e eu trabalho em UTI neonatal, com bebês prematuros, então eu sei o sofrimento que é e não queria passar por aquilo.
Só que o meu marido, que é militar, continuou trabalhando. Primeiro, foi ele. Ficou doente, com febre, dor de cabeça e dor no corpo, mas melhorou em dois dias. Depois foi minha filha, Julia, 8. Aí chegou a minha vez. No final de abril, comecei a sentir dor de garganta, dor de cabeça, tosse curta, dificuldade para respirar, perdi o olfato e o paladar. Eu já imaginava que pudesse ser coronavírus quando vi os sintomas neles. Mas eu não queria acreditar, tinha tomado tanto cuidado e tinha muito medo.
Comecei a me sentir muito mal resolvi ir para a maternidade [em que planejei o parto] porque, se precisasse ficar internada, já estaria lá. Fiz o exame para Covid-19 e me liberaram. Voltei para casa e piorei. No dia seguinte, retornei à maternidade. Lembro que a médica disse: "Você testou positivo para a Covid-19". Fiquei muito mal.
Em seguida, fui internada e meu quadro ia piorando. Me disseram que 75% do meu pulmão já estava comprometido. Como meu caso era grave, teriam que antecipar meu parto. Perguntei para quando. Eles disseram: para hoje, agora. Eu estava com 34 semanas, 8 meses. Fui arrasada pro centro cirúrgico, porque não me despedi da minha filha, do meu marido. Na sala do parto tinha muita gente, uma equipe imensa, e eu pensei 'nossa, essa maternidade deve ser muito boa', não tinha noção de que era porque meu caso é que era muito grave.
Na sala cirúrgica, lembro de uma médica com quem falei, de cílios muito longos e bonitos. Pedi: 'Doutora, não me deixa morrer, eu tenho duas filhas pra criar'. A médica não respondeu
Daí, a cena seguinte que me lembro é de acordar em outro lugar, no Hospital Pró-Cardíaco. O hospital é perto da maternidade, mas o meu caso era tão grave que meu marido teve que assinar um termo de consentimento porque existia o risco de eu morrer no trajeto. Fiquei sabendo disso depois.
Quando eu acordei, olhei para a minha barriga. Contaram que minha filha estava bem, na UTI neonatal da maternidade. Soube que eu fui intubada durante o parto e que a Luísa, minha bebê, nasceu roxa e que o APGAR [teste que mede a vitalidade de um recém-nascido de 0 a 10) foi 1 —no documento dela tem escrito morte aparente.
Uma médica me contou que, de 0 a 10, a minha gravidade era de 11. Eu só sei o que as pessoas me contam. Meu irmão chorou porque disseram que eu provavelmente não iria sobreviver. Durante o tempo na UTI, me lembro de pensar se tinha alguém penteando o cabelo da minha filha mais velha. Eu estava sedada quando acordei e percebi que estava intubada. Não conseguia falar, não conseguia nem me mexer direito. Aí a enfermeira mostrou: está vendo aquela foto ali, é a Luísa. A equipe imprimiu uma foto da minha filha e todo dia quando eu acordava, olhava para ela, que é a cara da irmã.
Desse tempo de UTI, eu tenho flashes. Na minha memória tenho várias fotos penduradas perto de mim de um irmão que eu perdi, ele sempre sorrindo. Tenho outra memória de me levantar e ir até outro ambiente para ligar alguém. Só que sei que não foi real porque eu não conseguia andar.
Tenho a uma memória de estar na sala da minha mãe e ver a minha família reunida, triste. São memórias confusas, flashes, que hoje eu sei que não aconteceram nesse plano.
No Dia das Mães, eu já tinha tirado a intubação e fizeram uma chamada de vídeo e eu vi minha filha pela primeira vez, vi meu marido também. Conheci minha filha assim. Eu tive alta no dia 15 de maio, e meu exame continuava dando positivo mesmo depois de quatro exames. A infectologista do hospital falou que, como meu caso foi muito grave, partes do vírus ainda estavam presentes.
No quinto exame, deu negativo. Mas eu estava morrendo de medo de ir buscar a minha filha no berçário, tinha medo de que ela se contaminasse. Dez dias depois, trouxe ela para casa. Teve festa na maternidade. Eu usei máscara por vários dias. A gente ainda não recebeu ninguém. Meu pai me perguntou se podia vir à minha casa para eu mostrar minha filha pela janela. Isso partiu meu coração. Pedi para ele esperar um pouco mais. Luísa está ótima, o pulmão está limpinho, ela está com 4,3 kg, sem alterações neurológicas.
Eu também sigo bem. Andei com muita dificuldade no início, tive muitas dores nas costas, mas minha voz voltou ao normal e estou recuperada, graças a Deus.