100 dias que mudaram o mundo

Para historiadora Lilia Schwarcz, pandemia marca fim do século 20 e indica os limites da tecnologia

Camila Brandalise e Andressa Rovani De Universa Alexi Rosenfeld - 5.abr.20/Getty Images

Um milhão e quinhentas mil pessoas infectadas pelo mundo —um terço delas na última semana. Oitenta e sete mil mortos em uma velocidade desconcertante. O fim dos deslocamentos. Milhões de pessoas obrigadas a readequar suas rotinas ao limite de suas casas. Há 100 dias, o mundo parou.

Em 31 de dezembro de 2019 um comunicado do governo chinês alertava a Organização Mundial da Saúde para a ocorrência de casos de uma pneumonia "de origem desconhecida" registrada no sul do país. Ainda sem nome, o novo coronavírus alcançaria 180 países ou territórios. "É incrível refletir sobre quão radicalmente o mundo mudou em tão curto período de tempo", indica o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus.

Para uma das principais historiadoras do país, no futuro, professores precisarão investir algumas aulas para explicar o que vivemos hoje —momento que, para ela, pode ser comparado à quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. "A quebra da Bolsa também parecia inimaginável", afirma Lilia Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo e de Princeton, nos EUA. "A aula vai se chamar: O dia em que a Terra parou."

Lilia sugere ainda que a crise causada pela disseminação da covid-19 marca o fim do século 20, período pautado pela tecnologia. "Nós tivemos um grande desenvolvimento tecnológico, mas agora a pandemia mostra esses limites", diz.

A seguir, trechos da entrevista em que a historiadora compara o coronavírus à gripe espanhola, de 1918, diz que o negacionismo em relação a doenças sempre existiu e afirma que grandes crises sanitárias construíram heróis nacionais, como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, e reforçaram a fé na ciência.

Ao longo do texto, as imagens de street art e de pessoas usando máscaras mostram o nosso novo normal.

Alexi Rosenfeld - 5.abr.20/Getty Images

Completam-se 100 dias desde que o primeiro caso de coronavírus, na China, foi notificado à Organização Mundial de Saúde. Podemos considerar que esses 100 dias mudaram o mundo?

É impressionante como um uma coisinha tão pequena, minúscula, invisível, tenha capacidade de paralisar o planeta. É uma experiência impressionante de assistir. Eu estava dando aula em Princeton [universidade nos EUA], e foi muito impressionante ver como as instituições foram fechando. É uma coisa que só se conhecia do passado, ou de distopias, era mais uma fantasia.

Nunca se sai de um estado de anomalia da mesma maneira. Crises desse tipo fecham e abrem portas. Estamos privados da nossa rotina, sem poder ver pessoas que a gente gosta, de quem sentimos imensa falta, não podemos cumprir compromissos.

Mas também abre portas: estamos refletindo um pouco se essa rotina acelerada é de fato necessária, se todas as viagens de avião são necessárias, se todo mundo precisa sair de casa e voltar no mesmo horário. Se não podemos ser mais flexíveis, menos congestionados, com menos poluição.

Então, talvez abra [a oportunidade] para refletir sobre alguns valores como a solidariedade. Todo mundo que diz que sabe o que vai acontecer está equivocado, a humanidade é muito teimosa. Mas penso que estamos vivendo uma situação muito singular, de outra temporalidade, num tempo diferente. Isso pode romper com algumas barreiras: estamos vivendo num país de muito negacionismo. No Brasil vivemos situação paradoxal, o presidente nega a pandemia.

Mas o mundo, neste momento, é outro?

Neste exato momento em que conversamos, o mundo está mudado. Nós que éramos tão certeiros nas nossas agendas, draconianas, de repente me convidam para um evento em setembro, eu digo: "Olha, não sei se vou poder ir, se vai dar para confirmar". Essa humanização das nossas agendas, dos nossos tempos, eu penso que já mudou, sim.

Ficar em casa é reinventar sua rotina, se descobrir como uma pessoa estrangeira [à nova rotina]. Eu me conheço como uma pessoa que acorda de manhã, vai correr, vai para o trabalho, vai para o outro, chega em casa exausta. Agora, sou eu tendo que me inventar numa temporalidade diferente, que parece férias mas não é. É um movimento interior de redescoberta.

Insisto que nem todos passam por isso. [O filósofo francês] Montaigne dizia: "A humanidade é vária". Nem todos estão passando por isso da mesma maneira, depende de raça, classe, há diferenças, varia muito.

E em relação aos papéis sociais dos homens e das mulheres?

Nós, mulheres, já temos um conhecimento distinto dos homens na noção do cuidado, na casa, acho que a mudança vai ser maior para os homens, que não estão acostumados com o dia a dia da casa, com fazer comida, arrumar. Essa ideia de cuidado foi eminentemente uma função feminina.

E estou muito interessada em ver como os homens vão lidar com essa ideia de ficar em casa e ter que cuidar também. É uma experiência muito única que vivemos.

Rodrigo Paiva - 24.mar.20/Getty Images Rodrigo Paiva - 24.mar.20/Getty Images

Pandemia marca o fim do século 20

Há discussões que dizem que o século 20 carecia de um "marco" para seu fim e que as primeiras décadas do século 21 ainda estavam lidando com a herança do século passado. A senhora concorda? Essa pandemia pode funcionar como esse divisor?

Sim. [O historiador britânico Eric] Hobsbawn disse que o longo século 19 só terminou depois das Primeira Guerra Mundial [1914-1918]. Nós usamos o marcador de tempo: virou o século, tudo mudou. Mas não funciona assim, a experiência humana é que constrói o tempo. Ele tem razão, o longo século 19 terminou com a Primeira Guerra, com mortes, com a experiência do luto, mas também o que significou sobre a capacidade destrutiva.

Acho que essa nossa pandemia marca o final do século 20, que foi o século da tecnologia. Nós tivemos um grande desenvolvimento tecnológico, mas agora a pandemia mostra esses limites

Mostra que não dá conta de conter uma pandemia como essa, nem de manter a sua rotina numa situação como essa. A grande palavra do final do século 19 era progresso. Euclides da Cunha dizia: "Estamos condenados ao progresso". Era quase natural, culminava naquela sociedade que gostava de se chamar de civilização.

O que a Primeira Guerra mostrou? Que [o mundo] não era tão civilizado quando se imaginava. Pessoas se guerreavam frente a frente. E isso mostrou naquele momento o limite da noção de civilização e de evolução, que era talvez o grande mito do final do século 19 e começo do 20. E nós estamos movendo limites. Investimos tanto na tecnologia, mas não em sistemas de saúde e de prevenção que pudessem conter esse grande inimigo invisível.


A senhora já assinalou que a gripe espanhola matou muito mais do que as duas Grandes Guerras juntas e que, assim como vivemos hoje no Brasil, houve muito negacionismo e lentidão na tomada de decisões. Não aprendemos essa lição? Por que é difícil não repetir os erros?

A doença, seja ela qual for, produz uma sensação de medo e insegurança. Diante desse tipo de crise, sanitária, a nossa primeira reação é dizer: "Não, aqui não, aqui não vai entrar". Antes de virar pandemia, as mortes são distantes, esse discurso do "aqui não", é muito claro, é natural, com todas as aspas que se pode colocar, porque o estado que queremos é de saúde. Mas nós também somos uma sociedade que esquece o nosso próprio corpo, ele serve para botar uma roupa, pentear o cabelo, é como se ele não existisse.

É demorado assumir, o negacionismo existiu sempre. No começo do século, em 1903, a expectativa de vida era de 33 anos. O Brasil era chamado de grande hospital e tinha todo tipo de doença: lepra, sífilis, tuberculose, peste bubônica, febre amarela. Quando entra [o presidente] Rodrigues Alves e indica um médico sanitarista para combater a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, eles começam matando ratos e mosquitos e depois passam a vacinar contra a varíola.

Mas na época a população não entendeu, não foi informada e reagiu. O mesmo presidente que indicou Osvaldo Cruz é o que vai estar no poder no contexto da gripe espanhola. Osvaldo Cruz já tinha morrido, então indica o herdeiro dele, Carlos Chagas. [Com a gripe espanhola] As autoridades brasileiras já sabiam o que estava acontecendo, mesmo assim não tomaram atitude. A gripe entrou a bordo de navios que atracaram no Brasil e aí explodiu. Mas a atitude sempre foi essa: "Aqui não, é um país de clima quente, não é de pessoas idosas".

Como pode falar em ter menos risco no Brasil porque a população é mais jovem, se é muito mais desigual que países europeus que já estão sofrendo? O negacionismo cria o bode expiatório, é recorrente.

Mas por que não aprendemos com os erros do passado?

Porque o negacionismo nega a história também. É dizer: "Em 1918 não tínhamos as condições que temos agora, não tínhamos a tecnologia". Então também se pode usar a história de maneira negacionista, negando o passado e dizendo que isso aconteceu naquela época mas não vai acontecer agora.

Quando se fala em guerra, o que acontece? Por que todos os países têm seu exército e tem reserva? Porque, na hipótese de ter uma guerra, temos que ter um exército, tem toda uma população de reserva na hipótese de ter guerra.

Se o estado brasileiro levasse a sério a metáfora bélica, o que já deveria ter sido feito? Uma estrutura para atender guerras de saúde, e isso não é só no Brasil, mas os estados não fazem, não existe um sistema para prevenir as pandemias.

A doença só existe quando as pessoas concordam que ela existe, é preciso ensinar para população. Se não tem esse comando, as pessoas não constroem a doença e continuam a negá-la

As reações contra a gripe espanhola foram muito semelhantes às de agora: poucas pessoas andavam nas ruas, quem andava estava de máscara, igrejas fechadas, teatros lavados com detergente. A humanidade ainda não inventou outra maneira de lidar com a pandemia a não ser esperar pelo remédio ou pela vacina.

Dean Mouhtaropoulos -4.abr.20/Getty Images Dean Mouhtaropoulos -4.abr.20/Getty Images

Realidade será marcada por nova posição das mulheres

Nos acostumamos com o discurso de que os idosos vão morrer quase que inevitavelmente caso sejam infectados. O que isso mostra sobre a maneira como lidamos com as pessoas mais velhas?

Mostra que somos uma sociedade que preza a juventude e faz o que com a história e com os idosos? Transforma tudo em velharia. Eu particularmente não acho que juventude seja qualidade. É uma forma de estar no mundo. Você pode ser jovem na terceira idade, ou um velho jovem. Essa nossa construção da juventude faz muito mal.

E a pergunta que cada um de nós tem que se fazer: alguém tem direito de dizer quem pode morrer ou não? Se cuidarmos melhor das populações vulneráveis, e aí se incluem os idosos, estaremos cuidando melhor de nós mesmos, não só na questão simbólica, também na questão prática.

O que é não lidar com a velhice? É uma forma que nós temos de não lidar com a morte, não sabemos falar do luto. Não vemos o presidente falar uma palavra de solidariedade às famílias das pessoas que morreram, é como se não quisesse falar da morte.

Estamos esticando a nossa linha do tempo, as pessoas não podem envelhecer, e ao mesmo tempo estamos acabando com nossa capacidade subjetiva. Velhice é vista só como momento de decrepitude. Não são valores que são estimados pela população e no nosso século.

Tem a ver com tecnologia também: velho é aquele que não sabe lidar com ela. Portanto, o isole. E ele que aguarde a morte.


Remédios milagrosos também fazem parte da história das pandemias?

Todos nós sempre esperamos por um milagre. Nossa prepotência é um pouco esta: achamos que somos uma sociedade muito racional, que se pauta pela tecnologia, mas todos nós esperamos por um milagre sempre.

Todo mundo quer ouvir o que o presidente fala: "Tenho um remédio que vai acabar com isso tudo". Que pensamento mágico é esse? A crise vai mudar o mundo? Depende do quanto as pessoas saírem do pensamento mágico, refletirem mais sobre seus castelos de verdades.

A pandemia traz alguma mudança em relação à história das mulheres?

A questão das mulheres é também questão de gênero e classe social. Mulheres de classes média e alta têm muitos recursos e podem lidar mais livremente com trabalho. O que é muito diferente no caso de mulheres pobres, negras, que vivenciam ainda mais essa situação. Há muitas enfermeiras negras e pardas. A posição da enfermeira é de cuidado também, com os pacientes, até com os médicos, ela desempenha esse papel que tem no interior da sua casa no sistema de saúde.

E essas mulheres são vulneráveis porque muitas delas estão nas lidas dos hospitais, sem proteção necessária, e porque estão nas lidas das suas casas.

Os séculos 20 e 21 são da revolução feminista, como já vai aparecendo. As mulheres não vão voltar atrás. Teremos uma realidade marcada por uma nova posição das mulheres

Eu desejo que as pessoas usem esse momento para repensar suas verdades, e dentre as muitas verdades [que precisam ser repensadas, está essa questão de gênero muitas vezes invisível: mulheres ocupam as posições de cuidado sem ser vista.

Johannes Eisele/AFP Johannes Eisele/AFP

2020 - O ano em que a Terra parou

Como um professor de história explicará a pandemia de 2020 daqui a 100 anos?

Vai explicar como o crash da Bolsa de Nova York é explicado hoje. Essa pandemia vai merecer algumas aulas. A quebra da Bolsa também parecia inimaginável, e estamos vivendo situações que são anomalias nesse sentido, porque são inimagináveis.

O professor de história terá que lidar com o fato de que a pandemia poderá marcar o final de um século e começo de outro, como também conseguiu parar o mundo em tal atividade e com tal rotatividade, e com tanta velocidade. Nós aceleramos muito, e agora tivemos que parar.

O título da aula será: "O dia em que a Terra parou"

A ameaça da pandemia também deu mais voz a quem tenta chamar a atenção para as condições de moradia e saúde precárias de uma parte significativa dos brasileiros. A crise é também uma oportunidade para uma mudança social?

O Brasil consistentemente vai ganhando posições de proeminência de desigualdade social, há classes sociais muito distintas no alcance das benesses da tão proclamada civilização. O Brasil é o 6º país mais desigual do mundo. Tendemos também a negar a desigualdade. Não acho que será pior com classes baixas do que será com idosos, são grupos muito vulneráveis [ao risco de agravamento].

Na gripe espanhola, os grupos mais afetados eram as populações pobres, dos subúrbios. As vítimas tinham entre 20 a 40 anos, mas muitos mais morreram em nome da civilização, porque a pobreza foi expulsa [do centro]. E as epidemias são impiedosas. Quando dizem "Fique em casa, mantenha o isolamento", tem que refletir sobre as condições que moram essas populações.

Em um Brasil tão múltiplo, com condições sociais tão diferentes, os mais pobres serão as populações mais afetadas. O Brasil também é o terceiro país em população carcerária. Me tira o sono o que vai acontecer se a pandemia entrar nas prisões. Se é que já não chegou e nós não sabemos. Se isso acontecer, quando chegar nos mais pobres, vamos ter que enfrentar como é perversa a correlação de pandemia e desigualdade social.

No Brasil, que tem uma saúde dividida entre privada e pública, as pessoas de mais renda nem pensam em usar a saúde pública. A doença faz isso, vai nivelar, porque atinge as várias classes sociais

Rodrigo Paiva - 13.mar.20/Getty Images Rodrigo Paiva - 13.mar.20/Getty Images

Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Mandetta

Já podemos vislumbrar alguma aprendizagem com a crise atual?

Eu penso que sim, vários países já estão começando a pensar no exército de reserva, como vamos construir não só uma estrutura para reagir à pandemia mas que também se antecipe.

O problema é que nós vivemos um governo no Brasil que não acredita na ciência. Vamos ver se aprendemos de uma vez, que a gente pense no que a ciência produz. Em horas como agora fica mais claro: a saída virá da ciência, com a vacina ou remédio que venha controlar a pandemia.

Não estranharia se tivermos os próximos presidentes médicos, o que estamos aprendendo nos vários países é a importância do Ministério da Saúde, e de termos de fato especialistas nos ministérios, contar não apenas com um político, mas com um político especialista.


Que grande mudança política já é possível dizer que a pandemia trouxe ao Brasil?

Ela está acontecendo. O presidente foi destituído pelo Ministro da Saúde [quando o Bolsonaro insinuou que [o ministro da Saúde, Luiz Henrique] Mandetta seria demitido mas recuou após pressão]. Você já está verificando um crescimento dessas figuras, como aconteceu na época da Revolta da Vacina [1904], o grande herói daquele momento era Oswaldo Cruz, e na gripe espanhola, Carlos Chagas virou grande herói nacional.

Espero que essas pessoas, se chegarem a esses lugares, não usem a posição para garantir mais poder, torço muito para que usem de forma generosa essa posição.

A política é como cachaça, quem tomou não abre mais mão. É o caso de não baixar a vigilância cidadã em relação a políticos médicos. Mandetta, que está ocupando bem seu cargo, foi profundamente ideológico, com a carreira vinculada a seguros médicos privados, e, por ideologia, acabou com o Mais Médicos.

As pessoas olhavam para nós, acadêmicos, e diziam: "Vocês são parasitas". Espero que as pessoas reflitam e entendam que o mundo da produção tem temporalidades diferentes.

Uma coisa é o tempo da indústria, da tecnologia, que é questão de segundos. Outra é o tempo do cientista, que usa da temporalidade mais alargada para descobrir novas saídas. As pessoas vão começar a entender, como na época da gripe espanhola, porque Carlos Chagas se tornou mais popular do que cantor e jogador de futebol — as charges falavam isso.

A ciência, que era o bandido, é hoje a grande a utopia.

Mario Tama - 21.mar.2020/Getty Images Mario Tama - 21.mar.2020/Getty Images
Leo Martins/UOL

Quem é a fonte?

Antropóloga e historiadora, Lila Schwarcz é professora titular na Universidade de São Paulo e professora visitante na Universidade de Princeton, nos EUA. É autora de uma série de livros, entre eles: "Sobre o autoritarismo brasileiro"; "Espetáculo das raças" e "Brasil: Uma biografia". É editora da Companhia das Letras, colunista do jornal Nexo e curadora adjunta para histórias do Masp.

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