Vidas em pausa

O afastamento da escola e o isolamento social vêm fazendo das crianças brasileiras vítimas ocultas da pandemia

Milene Chaves Colaboração para Universa Getty Images

"Marina! Marina! Você está me ouvindo?" Luiza, uma menina de 5 anos, chamou a atenção da mãe ao gritar pela melhor amiga pela janela do seu quarto. "Quero ver se ela me escuta", explicou. A saudade apertava o peito depois de quase cinco meses afastadas. Em um calendário, desenhado para a tarefa da escola e pregado à parede, ela controla os dias e a angústia, na esperança de que a pandemia causada pelo novo coronavírus termine logo.

Apesar de proteger contra o vírus, esse período de quarentena, sentido sobretudo pela ausência do ambiente escolar, traz consigo uma leva de estressores que podem atingir a saúde física e mental dos pequenos, independentemente de sua classe social. Um dos primeiros estudos sobre o tema, feito na China com 320 crianças e adolescentes, chegou à conclusão de que o distanciamento social provoca ou pode intensificar dificuldades funcionais e comportamentais. Dependência excessiva dos pais, desatenção e preocupação foram os mais citados.

Que impactos emocionais as crianças levarão da pandemia?

Emoções sob ataque

Um dia, a roda da bicicleta de Martin, 8, de São Paulo, passou pela água da sarjeta, que respingou no tênis, onde ele mais tarde encostou a mão. Isso foi o bastante para que o menino achasse que havia contraído a Covid-19. Apesar de não ser exposto ao noticiário, o pavor do contágio foi aumentando com o passar dos meses. "Procuramos levar de forma leve, acolhendo. O sol, as atividades físicas e até meditação estão ajudando, mas ainda assim temos uma consulta agendada com uma psicóloga para entender como lidar com tanta ansiedade", diz o pai, o arquiteto Rogério Stefani Oliveira.

Os medos tendem a ficar maximizados nessa idade, que é quando a criança começa a entender melhor o mundo real. Mas seja qual for a faixa de desenvolvimento, se há isolamento social, há estresse. "Não é o grau do sofrimento que leva a criança a carregar sequelas, e sim o descuido ao lidar com os problemas. Se não fosse assim, a vida seria impossível para os humanos", explica a psicanalista Vera Iaconelli. Uma pesquisa com mais de mil pais espanhóis e italianos com filhos de 3 a 18 anos, feito durante a quarentena europeia, concluiu que, quanto mais estressados ou preocupados se sentiam os pais, mais reportavam sintomas nos filhos.

Para a medicina, o estresse pode ser benéfico na medida em que provoca uma movimentação para a superação de um incômodo. Porém, dependendo da intensidade e da duração, pode trazer consequências negativas. "O estresse é tóxico quando não há recursos de adaptação suficientes para retomar o equilíbrio", explica Lino de Macedo, professor emérito do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Casos de negligência, desnutrição e violência geram estresse tóxico, condição que pode interromper o desenvolvimento saudável do cérebro e de outros sistemas do corpo.

Além de um ambiente harmônico, os caminhos indicados aos pais para driblar a tensão do momento são brincadeiras, leitura, presença e um dia a dia com horários minimamente organizados.

A diretora de marketing Natalia Martin Younes, de Curitiba, encontrou na música e na dança a melhor maneira de entreter, ao mesmo tempo, as filhas Chloe, 7, e Chiara, 5. "Já fizemos vários shows com palco e microfone improvisados desde o início da quarentena", conta. A mais nova, que está no espectro autista, precisa de mais atenção ? segundo a mãe, no início a menina ficou irritada por não poder ir à escola. Além de reformular a rotina da pequena incluindo mais intervalos de descanso, os pais intensificaram duas atividades que Chiara adora: passeios de patinete no condomínio e brincar com o coelho Bowie, um peludinho caramelo, de carne e osso, que ganhou em julho. "A rotina, que é importante para qualquer criança, é fundamental para quem está no espectro", finaliza Natalia.

O corpo dá os sinais de alerta

  • Dependência dos pais

    Observe se as crianças estão mais carentes e demandantes que o habitual

  • Sono interrompido

    Dificuldade para dormir, insônia e pesadelos podem ser sintomas de estresse

  • Demonstração de medos

    De morrer, de perder os pais, do futuro, de sair de casa, de ser esquecido pelo professor

  • Comportamento inquieto

    Crianças irritadiça ou agressivas, com crises de choro frequentes, precisam de um olhar especial

  • Tristeza

    Esteja atento a sinais incomuns de apatia, desânimo, distanciamento, perda de atenção, timidez

  • Mudanças alimentares

    Querer comer a todo tempo ou perder o apetite também são sinais de sobrecarga emocional

  • Ansiedade

    Comportamentos repetitivos ou aumento de algum tique nervoso merecem atenção

  • Regressão

    A criança voltou a fazer xixi na cama? Só quer dormir na cama dos pais? Talvez haja angústia e ansiedade

Pais, paz e panelas

O relatório Repercussões da Pandemia de Covid-19 no Desenvolvimento Infantil, elaborado pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), atesta que o bem-estar emocional das crianças depende da interação que elas mantêm com seus pais. Segundo Lino de Macedo, um dos autores do relatório do NCPI, o isolamento traz situações controversas. Se por um lado crianças cuidadas por pais em boas situação financeira e emocional podem fortalecer os vínculos com a família e até se desenvolver melhor, por outro, crianças em situação de vulnerabilidade ficam muito mais expostas a riscos.

A redução da renda é o fator apontado pelo relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgado em agosto como a maior causa de impacto sobre a vida de famílias com crianças e adolescentes em isolamento social no país. Além de depressão, alcoolismo e recrudescimento de conflitos e violência familiares, uma das consequências imediatas da diminuição de renda é a insegurança alimentar. Tudo isso faz das crianças, segundo o próprio órgão, "vítimas ocultas da pandemia" ? e pode levar a cenários de desnutrição entre as famílias que contavam com a merenda escolar.

Garantir no mínimo três refeições diárias se mostrou um desafio até para quem não teve alteração no salário. Júlia, 4, de São Paulo, emagreceu 3 quilos nos dois primeiros meses da quarentena. A mãe, a administradora Maira Coimbra, continuou trabalhando de casa, com uma hora de almoço cravada, e cuidando sozinha da filha sem poder gastar com delivery. A menina passou a comer menos quando afastada da rotina de refeições que fazia com os amiguinhos da escola pública. O pai, que morava em outro Estado, precisou deixar o trabalho e se juntou à família. Dessa forma, livrou a esposa de ao menos dois fatores estressores do dia: cuidar do cardápio e sentar-se com calma e disponibilidade para fazer as refeições no tempo da criança (que, em menos de um mês, já havia ganhado 800 gramas).

A história de Maira e Júlia ilustra bem um dos mantras repetidos por influenciadores de parentalidade nas redes sociais: é preciso cuidar de quem cuida. "Empresas deveriam pensar nos filhos de seus funcionários, pois as crianças não são apenas uma questão da instituição familiar ou escolar. São uma responsabilidade de todo o conjunto da sociedade", afirma a psicanalista Julieta Jerusalinsky.

Enquanto essa não é a regra, resta apostar, na medida do possível, no autocuidado. "Validar os próprios sentimentos e reconhecer que está cansado ou frustrado é muito importante para evitar gritos e comportamento explosivo com as crianças", ensina Rafaela Kahvegian, psicóloga e coordenadora de cuidado da health tech Bloom, que oferece cuidado contínuo para famílias.

Cada etapa, um desafio

0-3 anos

A socialização é uma demanda menos importante do que ganhar intimidade com os cuidados e o afeto dos pais. O desafio é oferecer um convívio diário com atenção, acolhimento e estímulo adequados. Aproveite os pequenos momentos do dia: massageie na troca de fralda, converse no almoço, cante no banho, olhe com amor na hora do mamá.

3-5 anos

Amigos ganham uma importância enorme: brincar junto, emprestar, negociar, cooperar e inventar papéis no faz-de-conta é o grande barato dessa fase. Por isso é que a escola faz mais falta, já que é lá que estão os seus pares. Compense com chamadas de telefone ou vídeo para amigos e familiares ou mostre como é trocar cartas à antiga.

6-9 anos

A cooperação, os segredos e intimidade que se criam com os pares ajudam a construir identidade, autonomia, senso de pertencimento, confiança. A privacidade faz falta, por isso deixe que brinquem sozinhos, que tenham espaço para escolher e propor atividades. Proponha jogos e desafios e ajude-os a escolher conteúdo adequado nas telas.

A falta da escola

No Brasil, 44 milhões de meninos e meninas de 4 a 17 anos estão afastados do ambiente escolar há mais de cinco meses, segundo o relatório da Unicef. Mais do que não poder visitar avós ou brincar no parque, a escola fechada é um importante símbolo do sofrimento de ficar em casa.

"A escola amplia o universo cultural para além do universo familiar da criança. Lá ela é obrigada a conviver com o diferente, enfrenta aborrecimentos, compartilha gostos e medos. Não há outro espaço que ofereça isso com tanta força", explica Ligia Leão de Aquino, professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Essa interação é própria do ambiente físico ? tanto é que não se repete da mesma maneira nas videoaulas, uma solução criada às pressas para a transmissão de conteúdo. É verdade que, no caso de crianças menores, os encontros online são um ponto importante de manutenção de vínculo. "Cantar juntos uma música, mostrar um brinquedo ou algo que se fez na casa são formas pelas quais se segue existindo para o outro, e o outro também revela que está vivendo algo semelhante", pondera Julieta Jerusalinsky.

Em todos os casos, o meio está longe de ser o ideal. "Nas aulas online, o olhar e a voz não circulam do mesmo modo entre os participantes, e estes são elementos centrais para que se possa compreender e pensar no que está sendo dito", diz a psicanalista.

Se olhar para o monitor é exaustivo, ser constantemente olhado pelos pais não é menos chato. "Na escola, as crianças ficam menos sob essa tutela, têm mais privacidade e propriedade. Em casa, além de controladas, elas podem ser interditadas a qualquer momento, portanto também estão privadas dessa liberdade", pontua Ligia. Mais uma difícil perda para a conta dos pequenos.

Voltar ou não voltar?

Os pequenos precisam tocar para apreender; precisam ver o movimento da boca e a expressão facial para ouvir. Como dizer não a uma criança que quer nos dar um abraço, quando é justamente isso o que ela precisa sentir? Por isso só poderemos voltar à escola quando pudermos quebrar um pouco o pleno rigor dos protocolos sanitários.

Julieta Jerusalinsky, psicanalista

Por que não podemos perder o ano? Este momento é histórico e excepcional, com muitos desafios de ordem emocional e de saúde. Não faz sentido manter aulas e conteúdos como se fosse possível colar pedaços de uma linha do tempo que está toda fraturada. É um esforço de negação do que está sendo vivido.

Ligia Leão de Aquino, Professora da Faculdade de Educação da UERJ

As duas escolhas envolvem perda, mas o preço da reabertura da escola é a morte. Além disso, essa volta envolve não apenas a família da criança, mas professores e funcionários. Uma solução é criar minicircuitos de crianças que estejam respeitando a quarentena, que se encontram e são cuidadas cada dia por uma das famílias.

Vera Iaconelli, psicanalista

Mais tênis, menos tela

Joaquim, 9, e o irmão Inácio, 7, de São Paulo, sentiram o impacto dos meses parados em casa depois de passar algumas dias ao ar livre, em uma escapada com os pais para fora da cidade durante a quarentena. O mais velho terminou o primeiro dia de viagem com uma inédita dor nas pernas e o mais novo, ofegante. "Eles se recuperaram rápido, mas ficou claro como a escola é o lugar onde eles ficam mais livres, excedem limites e ganham habilidades motoras", observa a mãe, a servidora pública Giovana Tiziani.

O maior vilão dos exercícios físicos tem nome: tela. As orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o tempo ideal de tela por idade foram flexibilizadas como forma de se adequar à realidade dos pais assoberbados da pandemia (atualmente, está assim: sem tela até até 12 meses; 60 minutos por dia de 1 até 5 anos; a partir dos 6 anos, os pais decidem o tempo e, em todos os casos, o adulto deve ajudar a criança a escolher o conteúdo).

Ainda assim, uma estimativa feita pela SuperAwesome, empresa americana de tecnologia voltada para o mercado infantil, avalia que, por lá, as crianças de 6 anos em diante estão ficando de 50 a 60% do seu tempo livre em frente às telas durante o isolamento. Esse comportamento leva a um aumento do sedentarismo e consequentes riscos de obesidade e dependência, alterações do sono, irritabilidade, dores posturais e até a má alimentação.

Apesar de perigosa, a tela é a cuidadora mais certeira nos momentos em os pais precisam de sossego para dar conta de uma tarefa urgente, seja do trabalho, seja da casa.

Mas não é o caso de se encher de culpa. Em vez disso, pais e mães precisam exercitar a presença plena no tempo em que conseguem estar disponíveis. "Há muito para se apreender brincando, principalmente, por meio de um compartilhamento lúdico do cotidiano, cozinhando juntos, cuidando juntos da casa. Esses afazeres colocam em cena desafios psicomotores, de hábitos, de linguagem e de aprendizagem, bem como dão lugar a conversas e a invenções mediadas por um fazer em que se transmite a cultura e a história para a criança. Isso não está só e apenas na escola", diz Julieta Jerusalinsky. Em live feita no seu instagram, a psicóloga Rosely Sayão reforçou o papel fundamental dos pais e das mães nesse período tão singular. "O acolhimento é o que mais conforta a criança. Cuide-se bem, cuide bem dos seus filhos, pois eles estão precisando muito de vocês. E não é da presença física, de ficar o tempo todo junto, mas de entender que talvez precisem de uma amorosidade expressa no olhar. É importante para as crianças, e elas percebem isso rapidamente."

Como mães e pais podem ajudar

  • Longe das telas

    Ocupe a criança com atividades criativas, como ouvir música, dançar, pintar, ler

  • Mais convivência

    Uma dica é incluir a criança no preparo das refeições e na hora de cuidar da casa

  • Momentos amorosos

    Crie momentos especiais em família: um dia fixo de pizza com cinema, por exemplo, aumenta a intimidade e ameniza a solidão

  • Energia!

    Promova brincadeiras dentro de casa, como bambolê, esconde-esconde, pista de obstáculos, vôlei de balão ou malabarismo com bolas de meia

  • Rotina lúdica

    Aposte corrida até o banheiro para escovar os dentes ou tomar banho, ou finja que é um leão na hora de comer

  • Tempo e atenção

    Pode ser mais fácil brincar por cinco minutos quando a criança demanda atenção do que esperar por uma hora inteira livre

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