'Denunciei quem me estuprou'

Mulheres que cresceram na seita A Família não conseguem punir abusadores: 'Tirada como louca'

Heloísa Barrense De Universa, em São Paulo

Aviso: este texto contém linguagem forte e relatos de abuso sexual, que podem servir de gatilho.

"Comecei a jogar na internet sobre a seita, vi muitos vídeos e documentários. Enxerguei tudo o que acontecia lá dentro e entendi que não era normal. Entendi que tinha sido vítima de abuso", conta a curitibana Priscila Zgoda, hoje com 29 anos.

Depois de viver 15 anos isolada na comunidade religiosa A Família, antes conhecida como Meninos de Deus, ela estava decidida a denunciar à polícia os recorrentes estupros que sofreu ao longo da infância e juventude. Tinha 19 anos, estava havia quatro longe da seita e finalmente começava a entender o que viveu.

Em paralelo, o mesmo processo de "cair a ficha" acontecia com a irmã dela, Andressa, hoje com 32 anos:

Passamos a ter vergonha e medo, achando que o problema era a gente e sendo ameaçada. Quando saí da seita e decidi deixar tudo para trás, senti que precisava conversar com alguém, para ver se não era algo da minha cabeça. Foi quando descobri que minha irmã também foi abusada. Me senti culpada, como se eu pudesse ter evitado. E, depois, descobri que tinha acontecido com mais gente.

Foi nessa época a primeira tentativa de levar os casos às autoridades. Priscila achou outras vítimas, juntou os testemunhos e procurou a Delegacia da Mulher de Jacarepaguá, no Rio, onde mora. Mas logo veio a frustração.

"Infelizmente não deu em nada, ninguém consegue fazer nada a respeito", diz.

O homem denunciado tinha rosto, nome e era amigo do pai delas. Ele manteve contato com a família mesmo depois do fim do grupo.

Mas, no caso de outros abusadores, as denúncias não andam porque nem sequer há informações básicas. Os membros usavam nomes bíblicos, diferentes dos de batismo, o que dificulta fazer um boletim de ocorrência. Depois que o grupo acabou, ficou ainda mais difícil identificar as pessoas.

Assim como Andressa e Priscila, Alyssa Veiga, 28, também lembra de ter sido estuprada recorrentemente por homens da seita desde muito nova e até que fosse adolescente. E, como elas, se sente desmotivada a denunciar a violência vivida na lar onde morou, no Rio de Janeiro:

Quando conversei com as pessoas sobre isso, fui tirada como louca. Isso tira a força"

Arte UOL Arte UOL

"Por onde passou deixou vítimas"

Quando finalmente procurou a polícia, no Rio, Priscila precisou passar por acompanhamento psicológico e exames físicos, mesmo após ter relatado que os abusos ocorreram anos atrás, sem deixar vestígios.

"Foi um processo difícil e muito lento. Mudava a delegada, e eles me chamavam para depor tudo de novo. Chegaram a me pedir um exame bem humilhante do IML [Instituto Médico Legal] e eu sem entender, porque os abusos aconteceram quando eu era criança", explica.

Segundo a advogada Ana Paula Braga, especialista em casos assim, a lei prevê que todo crime que pode deixar vestígios deve ser submetido a exame de corpo de delito, mas não fala sobre crimes que ocorreram muitos anos antes e mesmo estupros que não envolvem penetração. "Inclusive é uma violência institucional obrigar a mulher a passar por um exame tão invasivo só porque é uma exigência legal", explicou ao UOL.

Para Priscila, reviver a violência repetidas vezes deixou sequelas.

Ter de ficar falando as mesmas coisas de novo, sem qualquer sensibilidade pela vítima, é muito chato e difícil emocionalmente. Era uma coisa muito fria. Fiquei com depressão na época. E hoje, após dez anos, depois de tudo o que fizeram, nada foi para frente e ninguém dá satisfação. É bem frustrante."
Priscila Zgoda

O processo, por outro lado, ajudou-a a falar mais abertamente sobre o que havia acontecido, o que repercutiu entre vítimas de várias cidades.

"Comecei a divulgar em grupos de Facebook e para ex-membros. Outras vítimas viram o rosto dele [o homem que acusam de abuso] e a denúncia foi aumentando", explica. "Ele chegou a morar com [o líder da seita, o americano] David Berg e rodou muito entre os lares. Acredito que por onde ele passou tenha deixado vítimas."

Ao saber dos abusos, o pai delas se sentiu "muito traído" por aquele que era considerado um homem de confiança e decidiu apoiar as filhas na Justiça. Em resposta, foi processado por difamação pelo acusado.

O máximo que ocorreu foi isso. Foi o único momento em que teve alguma audiência e eu me reencontrei com ele pessoalmente. Mas o caso foi arquivado. Então, o que resta é fazer barulho no TikTok, no Instagram... para que os abusos sejam vistos. Se não vai para o tribunal, que a gente fale sobre o tanto de gente que sofreu."
Priscila

Arte UOL Recorte de jornal do Diário de Pernambuco em 15 de outubro de 1978

Recorte de jornal do Diário de Pernambuco em 15 de outubro de 1978

Prostituição e remessas de dinheiro ao exterior

Esta não foi a primeira vez que a seita foi investigada, nem a primeira que as investigações tiveram pouco alcance.

Os Meninos de Deus começaram em 1968, nos Estados Unidos. Os primeiros registros jornalísticos do movimento religioso no Brasil aconteceram em 1975. Três anos depois, dois repórteres fingiram ser um casal interessado em entrar para o grupo para tentar mostrar o que ocorria no "lar" a que tão poucos tinham acesso.

Clodomir Broxado e Mary Fontes, do programa Flávio Cavalcanti, na Rede Tupi, visitaram diversas vezes uma casa no Rio, até que ele sugeriu aos membros que cuidassem de Mary. Ela então passou uma semana no local e descreveu o que viu em texto publicado em 1978: chocou-se com a mistura de religião e sexo.

Os homens trocam de mulheres quando querem e estas não se opõem: geralmente há consentimento mútuo nessa troca. As mulheres se prostituem por quase nada e aceitam participar de 'programinhas', frequentam motéis e se prostituem para sustentar as colônias. Enfim, procuram atrair novos elementos através do sexo."

Além da prostituição, as notícias apontaram para problemas com a Receita Federal, com movimentações de dinheiro suspeitas para o exterior. Naquele mesmo ano, a Polícia Civil de Pernambuco abriu inquérito para apurar as ações do grupo.

Na época, detidos em um apartamento no Recife com materiais obscenos, os membros da seita confirmaram que 11% do dinheiro arrecadado no Brasil era encaminhado ao exterior, clandestinamente. O montante era enviado ao Rio, um funcionário da embaixada dos EUA no Brasil recebia e repassava ao "Pai David", apelido do fundador David Berg.

Nada disso foi suficiente para conter a atuação do grupo, que continuou existindo. Em 2004, mudou o nome para A Família Internacional, uma autointitulada "rede cristã online dedicada a disseminar a mensagem do amor de Deus, presente em quase 80 países".

No ano seguinte, outro escândalo envolveu os fundadores do grupo. Ricky Rodriguez, filho de Berg, matou uma de suas agressoras sexuais da infância, que era sua babá, e depois se suicidou, aos 29 anos. Ele disse que o próprio pai o molestou e o usou para ilustrar os livros do grupo.

"Foi quando muitos começaram a acordar", conta Alyssa.

As investigações

Em outros países, já houve julgamentos e condenação de membros da seita por estupro. As próprias netas de Berg denunciaram os estupros que sofreram na seita. O ator americano River Phoenix também veio a público dizer que foi estuprado aos 4 anos quando vivia na comunidade. Em 1993, ele morreu de overdose de drogas.

Mas aqui no Brasil não há registros de nenhuma condenação.

Ao UOL, a Polícia Civil do Rio de Janeiro disse que a investigação da denúncia de Priscila está em andamento. E o Ministério Público informou que as diligências foram encaminhadas em junho deste ano à Promotoria de Justiça e serão analisadas.

Já a Polícia Civil de Pernambuco não localizou os arquivos referentes à seita. O delegado responsável, Djair Lopes, morreu. A Polícia Federal não respondeu sobre possíveis condenações de envolvidos.

E o Tribunal de Justiça de Pernambuco informou que possivelmente os autos estão arquivados e, como faltam informações sobre o nome das partes e a vara em que tramitou, não foi possível localizar os documentos.

Arte UOL Jornais anunciam crime e suicídio de Ricky Rodriguez, filho de Berg

Jornais anunciam crime e suicídio de Ricky Rodriguez, filho de Berg

Que fim levou a seita?

Ao UOL, a Família Internacional disse que a estrutura organizacional foi desmantelada em 2010 e funciona hoje como uma rede online com cerca de 1.300 pessoas, com uma política de tolerância zero com a violência desde 1986. Diz que se opõe ao abuso de menores "de qualquer forma, seja físico, sexual, educacional ou emocional".

"Tribunais de todo o mundo que conduziram investigações exaustivas de mais de 600 crianças no início dos anos 1990 concluíram que elas não foram expostas a nenhum tipo de abuso ou negligência e estavam satisfeitas com a qualidade de sua educação", afirma.

A comunidade confirma casos em que "menores foram expostos a comportamento sexual impróprio". "Isso foi resolvido em 1986, quando qualquer contato de natureza sexual entre um adulto e um menor de idade foi oficialmente proibido e, posteriormente, em 1989, declarado excomungável."

O grupo disse ter emitido desculpas oficiais em várias ocasiões a todos os membros ou ex-membros "que foram feridos de alguma forma durante sua afiliação".

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Como procurar ajuda: Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia.

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