Gente jovem reunida

Aos 15, elas foram às ruas em atos por educação. 7 anos depois, se tornaram mulheres de luta

Nathália Geraldo e Júlia Flores De Universa, em São Paulo Marlene Bergamo/Folhapress/Mariana Pekin/Carol Malavolta/Arte UOL

Novembro de 2015: em uma das regiões mais movimentadas de São Paulo, Marcela Nogueira dos Reis, então com 18 anos, travou o trânsito ao lado de outros alunos da Escola Estadual Fernão Dias Paes, depois de meses ocupando a unidade de ensino em que estudava. Organizados, foram ao cruzamento das avenidas Faria Lima e Rebouças com cadeiras da sala de aula para chamar a atenção da população sobre a pauta daquele que ficou conhecido como o "movimento dos secundaristas".

Março de 2022: 7 anos depois, estamos de volta com Marcela no mesmo lugar da foto que marcou a vida dela - e de tanta gente. Naquela época, Marcela era uma das meninas mais expostas nas manifestações em oposição àquilo que o governo do estado chamou de "reorganização" das escolas. Atravessando a avenida para reviver o clique emblemático, ela lembra que, após seu rosto estar na capa de jornais e sites de notícias, ficou também na memória dos policiais militares de Pinheiros, bairro em que estudava e morava. "Você não é a menina da ocupação?", ouviu deles, conta, durante alguns anos.

2015 também foi o ano da "Primavera feminista": além de movimentos na rua, a internet abrigou levantes como a hashtag #PrimeiroAssédio, em que foram publicados relatos de assédio sexual. Um dos estopins para a mobilização feminina foram as mensagens de teor sexual que Valentina Schulz, então com 12 anos, recebeu após sua participação no programa de TV MasterChef Júnior.

O movimento secundarista não era essencialmente ou estritamente feminista. Para Marcela, no entanto, foi naquele cenário que se reconheceu como uma "mulher de luta". Por isso, o convite de Universa para recontar sua história a tocou tanto; antes de topar, a jovem confirmou com a terapeuta se seria uma boa ideia mexer em memórias de dias de muito amor, mas também de repressão e resistência.

Nesta reportagem especial no Mês das Mulheres, ela e outras jovens contam como a luta as transformou. E falam também quais as mudanças que querem para o mundo, especialmente para as mulheres.

'Foi um momento de descoberta pessoal'

"Com licença, posso dar um recado para a sala?". Marcela Nogueira dos Reis, hoje com 24 anos, interrompia a aula na Escola Estadual Godofredo Furtado, em Pinheiros, onde estudava, para falar sobre a "reformulação" da rede de ensino. Sem aderência dos colegas à causa, decidiu se unir aos estudantes "da Fernão", onde vários estudantes estavam engajados. Foi quando a revolução cresceu dentro dela.

"Tínhamos a planta da escola para saber onde havia lugares de saída, portões. Entramos, quebramos os cadeados e nos trancamos por dentro. Tinha estratégia. Nos dividíamos para fazer comida, para a segurança, para a comunicação, que foi o que desenvolvi mais naquela época. A polícia fazia um cerco. Isso tudo durou três meses".

Marcela se emociona ao refazer os passos daqueles dias. Olhando para dentro da unidade de ensino por uma fresta, comenta: "Ali, fazíamos as assembleias. Tinha menina que começava quietinha, porque os homens sempre queriam impor o que deveríamos fazer. E depois já estavam falando. Foi um momento de descoberta pessoal para muitos estudantes."

Do "trancamento" nas avenidas, da foto de 2015 que abre esta matéria, Marcela tem lembranças amargas, mas também de solidariedade. "Duas senhorinhas desceram do ônibus, no trânsito, puxaram a cadeira para ficar com a gente. Mas houve muita violência policial", diz.

Sabia que a PM era violenta, que o racismo existia. Mas não tinha noção do quanto minha vida, por ser uma pessoa preta, não valia nada para eles.

Marcela diz que não se arrepende da dedicação ao movimento, mas perdeu um pouco da esperança ao ir às ruas em ocasiões posteriores, com o Movimento Passe Livre e em atos a favor da permanência de Dilma Rousseff na presidência. Hoje, está em um processo de cura pela arte e pela psicoterapia. "Quando estou no teatro, canalizo a raiva que tenho da instituição policial. Um ódio que nem é meu", conta, acrescentando que também dá aula de informática em um centro de referência para mulheres que sofreram violências, em Heliópolis.

Para ela, a luta pelo fim do racismo a faria ir novamente para a linha de frente. "A coisa do racismo está f*da, mas, sinto que a gente apanha mais do que qualquer coisa, então precisaria ser organizado antes. Não é efetivo a gente morrer. Precisamos estar vivos para lutar".

'Me tornei feminista nas ocupações'

Estudante de teatro, Lilith Cristina, 21 anos, também participou do movimento secundarista. Com 15 anos à época e terminando o Ensino Médio, não era tão fácil seguir na luta com outros estudantes. "Venho de uma família de ativistas, mas tratar desses assuntos na escola era difícil".

Lilith foi uma das responsáveis por organizar a ocupação da escola estadual Maria José, do bairro Bela Vista, na região central de São Paulo. "Consegui juntar um grupo de dez pessoas que se identificaram com a pauta. Foi uma luta de convencimento para explicar aos alunos que a diretoria não podia tomar medidas severas contra eles. Conseguimos ocupar completamente o prédio no momento em que já havia cerca de 40 colégios dominados por secundaristas", relembra.

A jovem também tem marcas negativas do período em que esteve lutando por educação: a memória de uma agressão do diretor da escola. "Ele me deu um tapa no rosto do nada", conta. "Fui a única a apanhar e cheguei a fazer boletim de ocorrência, mas ele já tinha feito um contra mim com a acusação de depredação de patrimônio e organização criminosa. Então, não levaram a denúncia para frente".

Segundo ela, a violência que sofreu e a convivência com outras meninas na ocupação a aproximaram da descoberta do que é ser feminista. "Tudo o que aprendi na ocupação me aproximou do feminismo. Além disso, antes tinha o cabelo alisado e não me entendia como mulher negra, por exemplo. Lá, reconheci quem eu era."

Eu não estava só: todas as secundaristas entenderam que podiam estar em qualquer espaço de poder, podiam raspar o cabelo ou não, tomar decisões por elas mesmas.

Para Lilith, ir à rua trouxe amizades e o aprendizado de que nenhuma luta se faz sozinha. Ela acredita, sim, que o levante dos estudantes impactou aquela geração. Diz esperar por um futuro ainda mais feminino e autônomo. "Nunca quis ser referência para ninguém; o que espero das meninas mais novas é que elas façam o seu próprio movimento".

'Mulheres são mais organizadas para essas lutas'

"Quando tinha 15 anos, não tinha medo algum. Só queria fazer as coisas pela minha escola. E, de lá, só sairia arrastada". Participante do movimento de secundaristas, a atriz Marcela Jesus, hoje com 22 anos, foi à luta cedo na ocupação da Escola Estadual João Kopke, no bairro Campos Elíseos, em São Paulo. Diz que, naquela época, sentia ter um "peito de ferro".

Mas, se já é difícil erguer a voz quando se é mulher e negra, imagine a força que Marcela precisou ter para manter a banca ainda adolescente e para lidar com os desdobramentos do episódio na própria vida. "A frente de mulheres no movimento secundarista foi gigantesca, e foi a oportunidade de eu me ver como um corpo de resistência", explica. "Mas agora, como artista independente dentro do teatro e do audiovisual, sigo tentando furar a bolha de um lugar elitista e branco que exclui corpos como o meu de espaços. E também tenho alguns problemas de ansiedade até hoje por causa da participação no movimento".

Marcela acredita nas mesmas questões que a despertaram para a rua, tanto a pauta da educação quanto as que dizem respeito a sua identidade. "Vim de uma realidade pobre, sempre estudei em escola pública e acho que a educação precisa ser libertária, digna e de qualidade. E entendo que mulheres são mais organizadas para essas lutas, conseguimos debater. Sabemos que temos uma voz presa dentro de nós que precisa ser solta. É a ideia de que não seremos silenciadas".

A força para isso agora vem do candomblé. Ao lado de mulheres, que são protagonistas na organização dessa expressão de fé, Marcela reconhece sua própria história para continuar se mobilizando pelo mundo. "São essas mulheres, minha mãe de santo, que me fazem reconhecer minha história inteira".

"Quarta onda": feministas desde cedo

Movimentos de resistência quase nunca têm bandeiras únicas; cada pessoa ou grupo pensa de um jeito. Ainda assim, é comum separá-los por "ondas" que marcam determinados comportamentos na coletividade.

Para a cientista social e coordenadora nacional de Juventudes da União Brasileira de Mulheres (UMB) Natália Silva Trindade, as mobilizações de mulheres que acontecem a partir de 2015 se encaixam numa "quarta onda feminista" brasileira. Para algumas estudiosas, é a "Primavera Feminista", levante de ativistas na internet e nas ruas que tem nome em referência à "Primavera Árabe", caracterizada por uma série de protestos e revoltas ocorrida no Oriente Médio e na região norte da África, cinco anos antes, com o objetivo de derrubar ditaduras e fortalecer a população contra a opressão política.

"É uma divisão para fins didáticos, mas nesta onda, o que se vê é uma defesa do bem viver comunitário. Outro diferencial é que meninas se identificam mais cedo como feministas e que há a massificação do entendimento do feminismo que o extrapola. E isso nos desafia a entender quais são as pautas das mulheres agora", contextualiza a pesquisadora de estudos de gênero, que também é feminista antirracista.

Nos últimos anos, Natália afirma que não faltaram motivos para as mulheres irem às ruas. "Nos mobilizamos contra o assédio, nas escolas e nas universidades, o desmonte de políticas públicas que nos atinge, a favor da defesa das nossas vidas, porque a violência contra mulher só aumentou".

A pesquisadora vê ainda como a lição do feminismo negro de pensar as pautas de raça, gênero, classe e sexualidade relacionadas também está na atuação das meninas e mulheres pós-2015. "É uma atuação mais ligada à prática, atrelada inclusive à dinâmica das redes sociais. Ao mesmo tempo, se baseia no fato de que o Estado não resolverá todos os problemas".

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Leuven, na Bélgica, a socióloga Maíra Covre, que também é especialista em questões de gênero, diz que o chamado feminista está mesmo na união de diferentes lutas. "Cada linha da filosofia feminista tem uma demanda diferente e isso não invalida a força do movimento. Até porque o pano de fundo de todos os feminismos é tornar a sociedade mais igualitária".

Pelo que lutam as meninas de hoje?

  • Helena Blanco, 19 anos, da ONG "Livres para Menstruar"

    "Acredito na simplificação positiva de temas complexos. A Greta Thunberg é um exemplo de quem faz isso bem. Espero que nosso movimento contra a pobreza menstrual também sirva de inspiração para outras mulheres, até para entenderem que nosso lugar é fazendo política pública, demandando igualdade"

    Imagem: Reprodução
  • Fatou Ndiaye, 17 anos, ativista antirracista

    "O movimento "Black Lives Matters" ("Vidas Negras Importam") foi muito importante. Mulheres negras estavam lá para mostrar que eram vítimas não só da violência racial, como também da violência de gênero", argumenta. Para o futuro, desejo um feminismo seja mais plural e abarque todas essas questões"

    Imagem: Reprodução

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