Uma nova mulher no comando?

Em outubro de 2010, o Brasil elegia sua 1ª presidente. Dez anos depois, estamos longe de ter uma líder mulher

Camila Brandalise De Universa

Após votar em um colégio eleitoral de Porto Alegre, às 9h10 do dia 31 de outubro de 2010, Dilma Rousseff, então candidata à presidência pelo PT e disputando o segundo turno com José Serra (PSDB), voou para Brasília à tarde e encontrou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto. Juntos, acompanharam a apuração.

Às 20h10, comemoraram a informação recém-divulgada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral): com 93,25% das urnas apuradas, os 55,43% de votos válidos direcionados a Dilma já a tornavam presidente.

A primeira presidente mulher do Brasil.

O marco histórico foi comemorado. Mas também foi apontado como uma influência de Lula, que na época chegava a 80% de aprovação. Em 2014, Dilma se tornou a terceira pessoa reeleita para a presidência desde a redemocratização do país, em 1985. Em 2016, foi a segunda a ser alvo de um processo de impeachment —e a primeira a ser afastada.

Para além das questões políticas, o que sua eleição significou para as brasileiras? "Na pesquisa em política, trabalhamos com o conceito de representação simbólica. Quando alguém que se parece comigo e pertence a um grupo social ao qual eu pertenço é eleita, independentemente da agenda dela, passa a mensagem de que pessoas como eu também podem ocupar o cargo que ela ocupa", explica Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da UnB e coordenadora da área de gênero, democracia e políticas públicas da Associação Brasileira de Ciência Política.

Nas duas eleições posteriores, porém, os dedos de uma mão foram suficientes para contar o número de mulheres que concorreram ao mais alto cargo do país. Três, além da própria Dilma, reeleita em 2014: Marina Silva (Rede), em 2014 e 2018, Luciana Genro (PSOL), em 2014, e Vera Lúcia (PSTU), em 2018. Em toda a história do Brasil, foram apenas oito as postulantes.

Diante de um passado de baixíssima representação feminina para o posto —afinal, passaram-se 116 anos desde a primeira eleição direta para presidente até que uma mulher fosse escolhida para o cargo—, de um presente de escassez de novos nomes femininos para a eleição de 2022 que se avizinha e de ataques misóginos diários contra políticas, Universa conversou com ex-presidenciáveis e especialistas para pensar sobre o futuro — Dilma foi procurada pela reportagem, mas não respondeu aos pedidos de entrevista. Dez anos depois de escolher a primeira mulher para o seu cargo máximo, qual a perspectiva de o Brasil voltar a ter uma presidente?

Uma eleita só não faz verão

A importância de o Brasil ter eleito uma mulher presidente é considerada simbólica inclusive entre detratoras de Dilma. Candidata à vice-presidência na chapa de Geraldo Alckmin (PSDB) em 2018, a ex-senadora Ana Amélia Lemos (PP), crítica ao PT e favorável ao impeachment em 2016, quando ainda cumpria mandato no Senado, admite que elegê-la foi um "passo importante".

"Não há dúvida de que foi um marco importante ter uma mulher como presidente. Ela representou a figura do empoderamento feminino, de que tanto se fala ainda hoje. E, em seu governo, as mulheres tiveram uma posição importante. A linha de frente do governo Dilma no Congresso era composta por senadoras e deputadas", diz.

Mas uma eleita só não é suficiente para garantir a próxima, afirma a cientista política Teresa Sachet, professora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da UFBA (Universidade Federal da Bahia). As primeiras chances precisam ser dadas dentro do próprio partido, mas a maioria deles, segundo Teresa, ainda é refratária às mulheres. "Nesses dez anos, muitos entraves partidários não mudaram porque a maioria dos partidos é comandada por homens", diz.

Das 30 siglas com representação no Congresso, apenas quatro têm presidências femininas: o PT, com a deputada federal Gleisi Hoffmann, o PCdoB, com Luciana Santos, a Rede, com Laís Garcia, que divide a liderança com um homem, e o Podemos, com a deputada federal Renata Abreu.

"São homens que ditam as regras e decidem como será o repasse de verbas. Eles também tendem a considerar outros homens os mais bem preparados, melhores de voto, entre várias outras questões", diz a cientista política. Isso explicaria, também, porque houve até hoje tão poucos nomes femininos escolhidos para concorrer à presidência.

Cotas: a maior vitória feminina dos últimos anos

As mudanças na legislação eleitoral que exigem repasse mínimo de verba a candidatas dão esperanças de que nomes novos e competitivos possam surgir nas próximas eleições, segundo as pesquisadoras ouvidas por Universa.

Estamos falando da lei das cotas, criada em 1997 e que exigia dos partidos pelo menos 30% das candidaturas de um sexo e, no máximo, 70% de outro —na prática, a porcentagem menor é o que cabe às mulheres. Mas a regra só passou a ter eficiência real em 2018, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) estabeleceu que deveria haver o repasse proporcional do fundo partidário, ou seja, pelo menos 30% do dinheiro da campanha também deveria ir para elas. No mesmo ano, ficou decidido que deveria haver proporcionalidade, também, no tempo de propaganda em rádio e televisão.

Em 2020, a porcentagem de mulheres participando de uma eleição bateu o recorde de 33,2%, segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que computou cerca de 550 mil registros. No último pleito, em 2018, eram 30,7%. Apesar do recorde, o índice ainda está bastante aquém da proporção de mulheres na população brasileira, já que elas são 51,7% do país.

"A história é dinâmica, então, fica difícil prever o que acontecerá nas próximas eleições. Mas podemos dizer que, com mais dinheiro, é mais provável que novos nomes femininos sejam eleitos e consigam galgar seu espaço", afirma Teresa Sachet, da UFBA. "Recurso é fundamental, é o que possibilita ao candidato se fazer conhecer. Foram essas mudanças na lei que fizeram termos 15% de eleitas", diz, referindo-se à porcentagem de mulheres no Congresso brasileiro atualmente.

"Além disso, considero importante a obrigatoriedade de destinação de 5% do fundo partidário para formação política de mulheres, primeiro pela lei, depois pelo STF, também em 2018", afirma Ligia Fabris, pesquisadora em gênero e política e professora da Escola de Direito do Rio de Janeiro, da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

A marca do impeachment

O fato de a única referência feminina a ocupar a presidência ter sofrido um impeachment é negativo tanto para futuras candidatas quanto para o eleitorado, opinam as especialistas. "O processo foi muito carregado de violência contra Dilma por ela ser mulher", afirma Flávia Biroli, da UnB.

"Eu fui descrita como uma mulher dura, e sempre disse que era uma mulher dura no meio de homens meiguíssimos", afirmou Dilma, com ironia, quando participou da sessão de julgamento do impeachment no Senado. "Eu nunca vi ninguém acusar um homem de ser duro, e a gente sabe que eles são", afirmou.

"Desse processo, sempre me lembro do adesivo colocado em carros em que a presidente da República aparecia com as pernas abertas onde deveria ser colocado o cano de abastecimento. Envolveu humilhação, rebaixamento. A mensagem que estava sendo dada era: 'Mulheres, a política é um espaço de risco para vocês'", diz a pesquisadora. "A violência é cotidiana. Isso explica, por exemplo, por que mulheres se candidatam à reeleição com menos frequência do que os homens."

O pedido de impeachment foi acolhido pela Câmara dos Deputados no dia 2 de dezembro de 2015 e colocado para votação em plenário em abril do ano seguinte. Foram 367 votos a favor e 137 contra. O processo, então, foi encaminhado ao Senado, onde se estendeu até o dia 31 de agosto de 2016, com sentença favorável ao fim do mandato de Dilma.

Para Teresa Sachet, o fato de a única presidente mulher ter sido derrubada pode trazer um efeito negativo também entre o eleitorado. "Podem pensar: 'Votei em uma candidata, não deu certo, agora nunca mais vou votar em outra'. Porque o gênero sempre está à frente da pessoa quando se trata de mulheres. Não se veem as propostas, mas o jeito de se portar, de se vestir ou gesticular", diz Teresa, lembrando que o outro presidente alvo de um processo de impeachment, Fernando Collor de Mello, em 1992, foi eleito senador em 2014. Dilma tentou se eleger senadora em 2018 e não conseguiu.

2018 foi das vices. O que esperar de 2022?

Na eleição presidencial de 2018, das cinco chapas em primeiro lugar nas pesquisas, três eram de homens com mulheres como candidatas a vice-presidente: Manuela d'Ávila (PCdB), com Fernando Haddad (PT), Kátia Abreu (PP) com Ciro Gomes (PDT), e Ana Amélia (PP) com Geraldo Alckmin (PSDB).

Para a advogada Maíra Recchia, coordenadora do Observatório de Candidaturas Femininas da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo), a escolha por compor chapas com mulheres no lugar de vice, apesar de não ser o ideal, traz um mínimo de holofotes para os nomes femininos. "É uma visibilidade que, até então, havia sido suprimida para se dar palco exclusivamente aos homens", diz.

"E, se elas não tiverem visibilidade, têm ainda menos chance de serem eleitas. As vices mulheres, além do trabalho de base que podem fazer, atraem para si a atenção da sociedade, que é um dos pilares na corrida eleitoral", afirma.

Tersa Sachet critica a estratégia dos partidos em escolherem mulheres como vice quando há um interesse no uso de verba que deveria ser destinada a candidaturas proporcionais. "O partido deve usar o fundo destinado para as campanhas majoritárias, não só o das cotas porque há uma vice. Nesse caso, querem mais verba para eleger o homem deles."

Muitos homens com mulheres como vice: esse é um cenário que deve se repetir em 2022. A não ser que, dizem as entrevistadas, algum nome forte surja nesse meio tempo. "Por ora, não tenho nenhum palpite sobre uma possível candidata à presidência com chances de se eleger", opina Ligia, da FGV, que tem realizado cursos de formação para mulheres na política. "Mas as eleições presidenciais são daqui a dois anos e, até lá, muita coisa pode acontecer."

Candidata à presidência em 2014 pelo PSOL e atualmente deputada federal pelo Rio Grande do Sul, Luciana Genro acredita que, dificilmente, teremos opções femininas até o próximo pleito.

"Não há hoje uma mulher com força política para disputar e ganhar a eleição até lá. É um prazo muito curto para surgir alguém com essa força social", diz Luciana, que foi eleita para o primeiro cargo público na Assembleia Legislativa gaúcha em 1994.

"Mas, para depois de 2022, não arriscaria opinar. As lideranças podem surgir muito rapidamente, a depender da conjuntura política, de algum acontecimento. Espero que possamos ter essa possibilidade em 2026."

De onde vem a esperança

Ainda que não se vislumbre uma candidatura feminina concreta e competitiva o suficiente para as eleições de 2022, as pesquisadoras consultadas pela reportagem de Universa acreditam na força de ONGs, coletivos e instituições que estão se mobilizando para ajudar mais mulheres a participarem da política. Principalmente de 2018 para cá, vem crescendo a oferta de mentorias gratuitas, aulas e cursos de formação pela internet voltados para elas.

"Há um anseio uníssono por maior participação feminina, entendendo que é preciso garantir a igualdade também na esfera eleitoral", afirma Maíra Recchia, da OAB-SP.

Ligia Fabris, da FGV, percebe um aumento de candidaturas femininas, inclusive de mulheres negras e indígenas, e considera "animador" ver a mobilização desses grupos minoritários e os espaços que estão conseguindo alcançar. "A exclusão desses grupos da nossa política é também histórica e ainda maior. Há ainda um grande trabalho a ser feito para galgar espaço, recursos, apoio. Mas quem sabe, em breve, tenhamos boas surpresas."

Primeira mulher a concorrer à presidência, em 1989, Livia Maria Pio de Abreu, hoje com 72 anos, relembra que foi pega de surpresa quando um dirigente do seu partido, o PN (Partido Nacionalista), anunciou o nome dela para a eleição. A sigla havia sido fundada por um general, seguia preceitos desenvolvimentistas e era alinhada à área militar.

"Aceitei, claro. Fiquei animada com o desafio. Na campanha, porém, não tive apoio financeiro nenhum. Não tinha estrutura, equipe, material, nada. Foi completamente amador", conta Livia, que seguiu na carreira política, mas diz não ter conseguido espaço dentro de outros partidos. Sua última tentativa de candidatura foi em 2006, quando tentou se eleger deputada federal pelo PHS (Partido Humanista da Solidariedade), incorporado ao Podemos em 2019. Atualmente, ela junta assinaturas para criar o Partido do Brasil Forte.

A pioneira entre as candidatas à presidência também não vê possibilidade de uma mulher voltar a ser eleita presidente no Brasil a curto prazo. Mas percebe que, hoje, há um caminho menos espinhoso para quem almeja o posto. Pelo menos em comparação com a época em que se candidatou, há mais de 30 anos.

"Eu me lembro de dar uma entrevista na televisão e ouvir que era incapaz de administrar o país. Perguntaram: 'Como você vai conseguir ser presidente tendo filhos, uma família para cuidar?'. Respondi que era advogada, meus filhos já eram grandes, bem cuidados e que, se eleita, teria assessores para tudo. Era minha inteligência que contava. Fui aplaudida de pé. Acho que, hoje, é muito mais comum ver mulheres independentes financeiramente, se dedicando às suas carreiras e exigindo seus direitos", diz Livia. "Penso que o Brasil precisa de uma mulher presidente. Alguém preparada politicamente vai dar conta do recado muito bem."

A presidente que queremos

Votar e eleger mulheres —e nisso se inclui também uma presidente— não é garantia de um governo livre de problemas. Mas um estudo que analisou 125 países do mundo mostra que aqueles que contam com mais mulheres no governo têm também menos corrupção. O que reforça a importância da representatividade feminina no poder.

"Se 52% da população brasileira é feminina, isso precisa ter correspondência em quem nos representa, tanto para cargos proporcionais [como deputados e vereadores] quanto majoritários [governadores, presidente]", afirma Hannah Maruci, doutoranda pela USP (Universidade de São Paulo) com pesquisa na área de representação política feminina e coidealizadora do projeto Tenda, para formação de candidatas.

"Elegê-las é importante, mas não é suficiente. Não diria que devemos pensar em um perfil específico de candidata, mas em uma pessoa que mude o padrão da política como ela é e que consiga modificar as estruturas machistas e racistas do país", diz Hannah. "Mais do que elegermos mulheres, é preciso que elejamos mulheres comprometidas com uma pauta de defesa intransigente dos nossos direitos e que possam desenvolver e debater políticas públicas com este recorte de gênero", opina Maíra Recchia, da OAB-SP.

Para Hannah, com uma política mais diversa, o impacto recai diretamente sobre a qualidade de vida da população. "Quem está fazendo e aprovando leis no Brasil, hoje, na maioria dos casos, são homens brancos, mas não são eles que passam pelas experiências que grande parte da população enfrenta."

Para a pesquisadora, as políticas públicas no país não serão completamente efetivas se as pessoas que vivem as principais demandas do país não estiverem bem representadas. "Por isso, quando acontecer de termos outra presidente mulher, ela deveria ser negra, para trazer sua vivência para a pauta. Mulheres negras são o maior grupo demográfico [são 28% da população] do país e o que mais acumula opressões. Elas têm renda menor, sofrem mais violência. Seria o símbolo de que precisamos."

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