O mistério que ronda autora deu força à sua obra. Foi sobre ele, aliás, que a crítica literária Fabiane Secches dedicou sua pesquisa de mestrado que deu origem ao livro sobre Ferrante. Para Secches, é justamente ao desaparecer como autora que Ferrante se faz presente, seja como personagem ou como o nome de um mistério que envolve seu universo, suas histórias, seus leitores, a crítica, em uma placenta única.
"A ausência de uma figura que acompanhe o nome Elena Ferrante tem sido percebida como uma das presenças mais afirmativas do cenário literário contemporâneo", escreve Secches. Na entrevista a seguir, ela conversa com Universa sobre este e outros temas do universo Ferrante, sem no entanto estragar a surpresa da leitura.
Sem spoilers, quais foram suas impressões sobre "A Vida Mentirosa dos Adultos"?
Quando eu li os primeiros dois, três capítulos, pensei: Esse livro pode ser melhor do que os anteriores!. A escrita estava muito sofisticada, como na tetralogia, mas talvez até mais um pouco afiada no começo. Também encontrei algo novo: humor. Eu achei um pouco engraçada a conversa entre Giovanna e o pai, aquela brincadeira sobre o cabelo ["Que cabelos bonitos, que qualidade, que brilho, dá pra mim?", brinca o pai em um diálogo no segundo capítulo]. Pareceu algo muito sincero, muito genuíno, uma conversa que um pai teria com uma filha daquela idade, sabe? Achei impressionante ainda como ela consegue recuperar algo da adolescência — que a gente sabe que é uma rememoração, assim como na tetralogia — de forma muito vívida. Os problemas que assombram uma adolescente, os estranhamentos em relação ao corpo que está se transformando.
Mas algo te incomodou?
Eu acho que ele poderia ser mais curto. Parece que tem coisas, como as histórias de personagens perpendiculares, que não funcionam tão bem quanto na tetralogia. Fiquei com a impressão de que a narradora estava ganhando tempo para voltar para a história central. Na tetralogia, a gente estava interessado também naquelas outras histórias: do Nino, da Lila e do Enzo, na história da mãe da Elena.
Agora, no caso da Giovanna, por exemplo, o romance entre Giuliana e Roberto [amigos de Giovanna], é uma história em que ela se demora mas que nunca ganhou autonomia para ser importante.
Eu tenho a impressão de que, se fosse um pouco mais curto, seria mais forte. Mas eu gostei. Eu acho um livro acima da média dos que eu leio, um livro maravilhoso
Mas na tetralogia e em "A Filha Perdida" [terceiro romance da autora, publicado em 2006 na Itália e dez anos depois no Brasil], por exemplo, as histórias das personagens menores são muito fortes e interessantes.
Para você, a protagonista narradora se assemelha a alguma outra personagem de Ferrante?
Eu acho que a escrita é muito parecida com a da tetralogia. A personagem tem questões da Elena Greco [protagonista narradora da tetralogia] que eu reconheço, mas ela não é a Elena Greco, o que eu acho muito legal, porque eu tinha receio disso.
Quando eu li as entrevistas da Ferrante em "Frantumaglia" [livro considerado de não ficção publicado no Brasil pela editora Intrínseca em que autora fala sobre sua própria obra em cartas e entrevistas concedidas por e-mail], ou a coluna no jornal "The Guardian", me dava sempre a impressão de que era a Elena Greco ali. Mas Giovanna é uma outra voz. E ela é também muito mais amada, cuidada, protegida do que a Elena, e isso se reflete em muitas outras coisas.
Ela [Giovanna] parece uma fusão da Lila [amiga cuja história Elena Greco narra] e da Elena na mesma personagem
Você acredita que este pode ser o primeiro de uma nova série de livros?
No evento de lançamento na Itália, um dos convidados leu um trecho do livro novo e falou sobre isso. Fez menção até ao número de páginas de "A Amiga Genial" (o primeiro da tetralogia), 336, e o novo romance, que tem 326. Mas eu fiquei com a impressão de que A vida Mentirosa dos Adultos é uma obra completa.
Ela já narrou quase duas décadas ali: principalmente dos 12 aos 16 anos, mas ela vai e volta um pouco no tempo. Então eu fico pensando que não teria muito o que contar, porque ela entrou fundo nas questões da adolescência -- e, nisso, acho que até mais fundo do que na tetralogia. Ela desvirtuaria o próprio projeto literário, mas tem competência para encontrar caminhos de nos surpreender, então tudo é possível.
No documentário "Ferrante Fever", Ann Goldstein, tradutora dos livros nos Estados Unidos, conta que acaba recebendo parte da atenção da autora. Isso, de alguma forma, aconteceu com você depois da publicação da sua análise em livro?
Eu fico muito impressionada com como as pessoas recorrem às pesquisadoras da obra de Ferrante, na falta da presença dela, na esperança de que tenhamos as respostas das muitas perguntas que ela deixa em aberto. É como se a gente, por ter estudado, pudesse responder coisas por ela. Mas com tradutores isso deve acontecer ainda mais. É curioso porque, se ela for mesmo uma tradutora [a hipótese levantada pelo jornalista italiano que investigou sua identidade], ela acabou chamando atenção para o trabalho dos tradutores, o que é muito bonito.
E sobre o perfil de leitores de Ferrante, há características comuns?
Acho legal ver que muitas pessoas que não têm um perfil de leitura assíduo leram 1.700 páginas sem se dar conta, ávidas. É muito impressionante para quem não tem o hábito. Mas eu também acho impressionante ver que os leitores mais exigentes, que também estavam muito habituados a ler, gostarem demais. Um exemplo é o Caetano Galindo. Ele é tradutor, escritor, pesquisador, professor universitário e superfã da Ferrante, acha sua escrita brilhante. Ela realmente conversa com perfis de leitores muito diferentes.
O seu é um livro de teoria literária, mas você conduz a escrita de uma forma democrática. Ele foi escrito para ser lido por perfis variados também?
Desde a pesquisa de mestrado, eu tive oportunidade de conversar com perfis diferentes de pessoas nos cursos, clubes de leitura, debates. Quis levar isso em consideração ao escrever a dissertação e, depois, o livro. Essas pessoas todas estavam tão interessadas em continuar pensando sobre a obra dela, continuar conversando sobre os livros, que, na hora de escrever, eu tive vontade de que, se elas quisessem ler, que pudessem acompanhar minha pesquisa, que a linguagem acadêmica não fosse um obstáculo.