A VIDA MENTIROSA DOS ADULTOS

Lemos o novo romance de Elena Ferrante, que chega em setembro para reavivar a febre em torno de suas histórias

Giuliana Bergamo Colaboração para Universa Adriana Komura/UOL

Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia. A frase foi pronunciada à meia-voz, no apartamento que meus pais, recém-casados, compraram no Rione Alto, no topo da Via San Giacomo dei Capri. Tudo --os espaços de Nápoles, a luz azul de um fevereiro gélido, aquelas palavras-- ficou parado. Eu, por outro lado, escapei para longe e continuo a escapar também agora, dentro destas linhas que querem me dar uma história, enquanto, na verdade, não sou nada, nada de meu, nada que tenha de fato começado ou se concretizado: só um emaranhado que ninguém, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se contém o fio certo de uma história ou se é apenas uma dor embaralhada, sem redenção.

Trecho de A Vida Mentirosa dos Adultos

Por cinco anos, os fãs da autora italiana Elena Ferrante conviveram com a expectativa de um novo livro. "História da Menina Perdida" (Biblioteca Azul), o último volume de sua obra mais famosa, a Tetralogia Napolitana, foi publicado em 2014 na Itália e chegou no Brasil três anos depois. Mas 2020 é um ano de boas notícias para os aficcionados pelos livros da escritora --que não são poucos.

O novo romance "A Vida Mentirosa dos Adultos" chegou às livrarias italianas em novembro do ano passado e, neste mês, é a vez de os integrantes do clube de assinaturas da editora Intrínseca, que publica além deste outros quatro livros da escritora no Brasil, receberem a edição brasileira. A promessa é de que, em setembro, o livro esteja seja lançado simultaneamente em 25 países, incluindo o Brasil.

Além do novo livro, outras duas novidades devem incendiar a "febre Ferrante", termo que surgiu nos Estados Unidos para designar a comoção causada pelos livros da autora, tanto entre os leitores como entre a crítica. No mês passado, a Netflix italiana anunciou que o novo romance vai virar série, ainda sem data de estreia. E, em abril, a crítica literária Fabiane Secches lançou "Uma Longa Experiência de Ausência" (ed. Claraboia), em que analisa a obra de Ferrante com pitadas de psicanálise.

Ao longo deste texto, Universa traz trechos do novo livro, ilustrados pela designer gráfica Adriana Komura.

Em uma tarde em que os dois não estavam em casa, aproveitei para fuçar um móvel no quarto deles onde minha mãe guardava os álbuns nos quais mantinha em perfeita ordem as fotografias dela, do meu pai e as minhas. Eu conhecia aqueles álbuns de trás para a frente, já os havia folheado várias vezes: documentavam principalmente todo o relacionamento deles, os meus quase treze anos de vida. E eu já sabia que ali, misteriosamente, os parentes da minha mãe surgiam com frequência, já os do meu pai eram raríssimos e, sobretudo, dentre os poucos que apareciam, não estava tia Vittoria. Todavia, eu lembrava que em algum lugar, no móvel, havia também uma velha caixa de metal na qual ficavam guardadas em desordem as imagens de como os meus pais eram antes de se conhecerem. Como eu vira aquelas fotos poucas vezes, sempre na companhia da minha mãe, esperava encontrar lá no meio algumas fotos da minha tia.

Trecho de A Vida Mentirosa dos Adultos

Adriana Komura/UOL Adriana Komura/UOL

Protagonista adolescente para um romance sem mãe

Em 2016, a autora (cuja identidade secreta ajuda a alimentar a febre) figurou na lista das 100 pessoas mais influentes do ano, segundo a revista americana Time. Naquele ano, o jornalista italiano Claudio Gatti vasculhou o país em busca da real identidade da autora, ajudando a consolidar a força da sua obra -- que já foi traduzida para 45 idiomas e deu origem a filmes, além de uma série na HBO.

São muitos os elementos que provocam tamanha comoção. Mas talvez um dos mais marcantes sejam as suas personagens femininas, tão verdadeiras que, por vezes, são mencionadas pelos leitores como se fossem gente de carne e osso. Complexas, elas são meninas, amigas, mães, filhas, amantes, estudantes, professoras, vítimas e algozes, generosas e traidoras.

A maternidade, em especial, é um tema que aparece em todos os livros da autora que antecederam este. Agora, não mais: Giovanna, a protagonista, não tem filhos nem uma relação complicada com a mãe. Em "A Vida Mentirosa dos Adultos", a protagonista narra seu mergulho no mundo adolescente, as transformações pelas quais o seu corpo passa, a percepção que tem de si nessa transição para a vida adulta e a que os outros têm ou passam a ter dela.

"Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia", é a frase que abre o romance. A declaração, conta Giovanna, surgiu no meio de uma conversa entre seus pais que ela ouviu às escondidas. Os dois falavam sobre o desempenho escolar da filha, que piorava muito. E, então, Andrea, o pai de Giovanna, profere a frase que percorre o romance: "Não tem a ver com a adolescência: está ficando a cara de Vittoria".

Ele não diz objetivamente que a menina é feia. Ou, pelo menos, essa parte do diálogo não nos é contada literalmente na história. Giovanna conclui que está ficando feia porque Vittoria é a tia que ela, até então, não conhece e com quem o pai não se dá. "Foi assim que, aos doze anos, soube pela voz do meu pai, sufocada pelo esforço de mantê-la baixa, que eu estava ficando igual à sua irmã, uma mulher na qual --eu o ouvira dizer desde sempre-- feiura e maldade coincidiam perfeitamente.

Tudo isso deflagra o enredo. Giovanna primeiro vasculha as fotos da família em busca da cara de tia Vittoria. Em seguida, a menina, que vive na parte alta e mais rica de Nápoles (sim, a cidade, palco por excelência das histórias de Ferrante, está de volta!) decide sair à procura da parente, que vive na periferia.

A jornada, que passa pela separação dos pais, leva a protagonista não apenas a um novo cenário, mas a um novo universo, onde faz amizades, descobre a sexualidade, o amor talvez e, assim, se prepara para o prenúncio de uma vida adulta.

Desde que o romance foi lançado na Itália, alimentam-se rumores de que A Vida Mentirosa dos Adultos possa ser o primeiro de uma nova série de livros. Um dos indícios de que isso poderia acontecer é o de que, novamente, Ferrante narra uma fase específica de vida de uma mulher. Desta vez, a adolescência.

Na Tetralogia Napolitana, cada um dos livros se dedica a um período de vida da protagonista, que é informado na abertura dos romances: a infância e a adolescência, a juventude, período intermédio, maturidade e velhice. A imaginação dos aficcionados vai longe — há até quem tenha comparado o número de páginas do primeiro volume da tetralogia (336) com o do novo livro (326). Mas é verdade que o fim da história dá margem a uma continuação: a entrada na vida adulta.

Em poucos passos fui dar em um quartinho com uma poltrona velha, um acordeão largado a um canto do chão, uma mesa sobre a qual estava o televisor e um banco com o toca-discos. Vittoria estava em pé na frente da janela, olhava para fora. Dali certamente via o carro em que meu pai me aguardava. De fato, disse em dialeto sem se virar, referindo-se à música: aquele merda precisa ouvir, assim vai se lembrar. Percebi que estava mexendo o corpo ritmicamente, pequenos movimentos dos pés, dos quadris, dos ombros. Perplexa, observei suas costas.

Trecho de A Vida Mentirosa dos Adultos

Adriana Komura/UOL Adriana Komura/UOL

"Um livro acima da média"

O mistério que ronda autora deu força à sua obra. Foi sobre ele, aliás, que a crítica literária Fabiane Secches dedicou sua pesquisa de mestrado que deu origem ao livro sobre Ferrante. Para Secches, é justamente ao desaparecer como autora que Ferrante se faz presente, seja como personagem ou como o nome de um mistério que envolve seu universo, suas histórias, seus leitores, a crítica, em uma placenta única.

"A ausência de uma figura que acompanhe o nome Elena Ferrante tem sido percebida como uma das presenças mais afirmativas do cenário literário contemporâneo", escreve Secches. Na entrevista a seguir, ela conversa com Universa sobre este e outros temas do universo Ferrante, sem no entanto estragar a surpresa da leitura.

Sem spoilers, quais foram suas impressões sobre "A Vida Mentirosa dos Adultos"?

Quando eu li os primeiros dois, três capítulos, pensei: Esse livro pode ser melhor do que os anteriores!. A escrita estava muito sofisticada, como na tetralogia, mas talvez até mais um pouco afiada no começo. Também encontrei algo novo: humor. Eu achei um pouco engraçada a conversa entre Giovanna e o pai, aquela brincadeira sobre o cabelo ["Que cabelos bonitos, que qualidade, que brilho, dá pra mim?", brinca o pai em um diálogo no segundo capítulo]. Pareceu algo muito sincero, muito genuíno, uma conversa que um pai teria com uma filha daquela idade, sabe? Achei impressionante ainda como ela consegue recuperar algo da adolescência — que a gente sabe que é uma rememoração, assim como na tetralogia — de forma muito vívida. Os problemas que assombram uma adolescente, os estranhamentos em relação ao corpo que está se transformando.

Mas algo te incomodou?

Eu acho que ele poderia ser mais curto. Parece que tem coisas, como as histórias de personagens perpendiculares, que não funcionam tão bem quanto na tetralogia. Fiquei com a impressão de que a narradora estava ganhando tempo para voltar para a história central. Na tetralogia, a gente estava interessado também naquelas outras histórias: do Nino, da Lila e do Enzo, na história da mãe da Elena.

Agora, no caso da Giovanna, por exemplo, o romance entre Giuliana e Roberto [amigos de Giovanna], é uma história em que ela se demora mas que nunca ganhou autonomia para ser importante.

Eu tenho a impressão de que, se fosse um pouco mais curto, seria mais forte. Mas eu gostei. Eu acho um livro acima da média dos que eu leio, um livro maravilhoso

Mas na tetralogia e em "A Filha Perdida" [terceiro romance da autora, publicado em 2006 na Itália e dez anos depois no Brasil], por exemplo, as histórias das personagens menores são muito fortes e interessantes.

Para você, a protagonista narradora se assemelha a alguma outra personagem de Ferrante?

Eu acho que a escrita é muito parecida com a da tetralogia. A personagem tem questões da Elena Greco [protagonista narradora da tetralogia] que eu reconheço, mas ela não é a Elena Greco, o que eu acho muito legal, porque eu tinha receio disso.

Quando eu li as entrevistas da Ferrante em "Frantumaglia" [livro considerado de não ficção publicado no Brasil pela editora Intrínseca em que autora fala sobre sua própria obra em cartas e entrevistas concedidas por e-mail], ou a coluna no jornal "The Guardian", me dava sempre a impressão de que era a Elena Greco ali. Mas Giovanna é uma outra voz. E ela é também muito mais amada, cuidada, protegida do que a Elena, e isso se reflete em muitas outras coisas.

Ela [Giovanna] parece uma fusão da Lila [amiga cuja história Elena Greco narra] e da Elena na mesma personagem

Você acredita que este pode ser o primeiro de uma nova série de livros?

No evento de lançamento na Itália, um dos convidados leu um trecho do livro novo e falou sobre isso. Fez menção até ao número de páginas de "A Amiga Genial" (o primeiro da tetralogia), 336, e o novo romance, que tem 326. Mas eu fiquei com a impressão de que A vida Mentirosa dos Adultos é uma obra completa.

Ela já narrou quase duas décadas ali: principalmente dos 12 aos 16 anos, mas ela vai e volta um pouco no tempo. Então eu fico pensando que não teria muito o que contar, porque ela entrou fundo nas questões da adolescência -- e, nisso, acho que até mais fundo do que na tetralogia. Ela desvirtuaria o próprio projeto literário, mas tem competência para encontrar caminhos de nos surpreender, então tudo é possível.

No documentário "Ferrante Fever", Ann Goldstein, tradutora dos livros nos Estados Unidos, conta que acaba recebendo parte da atenção da autora. Isso, de alguma forma, aconteceu com você depois da publicação da sua análise em livro?

Eu fico muito impressionada com como as pessoas recorrem às pesquisadoras da obra de Ferrante, na falta da presença dela, na esperança de que tenhamos as respostas das muitas perguntas que ela deixa em aberto. É como se a gente, por ter estudado, pudesse responder coisas por ela. Mas com tradutores isso deve acontecer ainda mais. É curioso porque, se ela for mesmo uma tradutora [a hipótese levantada pelo jornalista italiano que investigou sua identidade], ela acabou chamando atenção para o trabalho dos tradutores, o que é muito bonito.

E sobre o perfil de leitores de Ferrante, há características comuns?

Acho legal ver que muitas pessoas que não têm um perfil de leitura assíduo leram 1.700 páginas sem se dar conta, ávidas. É muito impressionante para quem não tem o hábito. Mas eu também acho impressionante ver que os leitores mais exigentes, que também estavam muito habituados a ler, gostarem demais. Um exemplo é o Caetano Galindo. Ele é tradutor, escritor, pesquisador, professor universitário e superfã da Ferrante, acha sua escrita brilhante. Ela realmente conversa com perfis de leitores muito diferentes.

O seu é um livro de teoria literária, mas você conduz a escrita de uma forma democrática. Ele foi escrito para ser lido por perfis variados também?

Desde a pesquisa de mestrado, eu tive oportunidade de conversar com perfis diferentes de pessoas nos cursos, clubes de leitura, debates. Quis levar isso em consideração ao escrever a dissertação e, depois, o livro. Essas pessoas todas estavam tão interessadas em continuar pensando sobre a obra dela, continuar conversando sobre os livros, que, na hora de escrever, eu tive vontade de que, se elas quisessem ler, que pudessem acompanhar minha pesquisa, que a linguagem acadêmica não fosse um obstáculo.

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