Senhora do tempo

Entre desafios e descobertas, Marieta Severo põe os anos na balança: "A sabedoria da idade me enche o saco"

Rafaela Polo De Universa, em São Paulo Marcus Steinmeyer/UOL

Aos 75 anos e com quase 40 filmes na carreira, Marieta Severo tem enfrentado o desafio de se deparar diariamente com a finitude. Desde que seu companheiro, o diretor de teatro Aderbal Freire Filho, 81 anos, sofreu um AVC, durante o isolamento pela covid, em 2020, ela foi obrigada a encarar muitas limitações. "É a grande dor da minha vida todos os dias", afirma.

Mas tem consciência de que o medo pode ser limitador. "A gente corre desse sentimento. Ele te aprisiona. Por que as pessoas, as religiões, usam o medo como recurso? Esse lugar que todos nós passamos [na pandemia] foi muito ruim, em todos os sentidos. O resultado foi mais fome, desigualdade. Para mim, na minha idade, é muito triste viver em uma época assim, principalmente pelas crianças. Mas vamos sair disso", diz a atriz, protagonista do recém-lançado longa "Aos Nossos Filhos", da diretora portuguesa Maria de Medeiros.

Na trama, ela interpreta Vera, uma ex-combatente da ditadura militar que viveu em diversos países da América do Sul. Foi torturada, presa, fez parte da luta armada e da resistência. Coordenadora de uma ONG que cuida de crianças soropositivas, ela não consegue compreender, no entanto, o relacionamento de sua filha com outra mulher e o desejo das duas de gerar uma criança. "Tem uma frase que ela diz no filme que é 'faço revolução onde eu posso', mas quando ela se depara com a revolução sexual da filha, não sabe lidar. Acho bonito colocar esse tipo de dificuldade em uma personagem, que é uma mulher com uma visão social tão ampla. É a complexidade humana", analisa a atriz.

"Além da temática, tudo o que a minha personagem vive, da relação dela com o passado, me tocou. Ela é uma mulher progressista, revolucionária, cheia de ideias sociais e políticas muito bacanas", comenta. Para Marieta, tocar nesse assunto no momento que estamos vivendo tem a maior dureza, mas também tem uma utilidade: "Eu gostaria muito de falar com esses jovens que querem a volta da ditadura. Eu só penso nisso. Venham ver o filme, indaguem, porque, muitas vezes, esse desejo é falta de informação".

"Sou um gato escaldado"

Durante a ditadura militar brasileira, Marieta se exilou. Ela foi para a Itália em 1969, quando estava grávida de sua primeira filha, Silvia, com o cantor e compositor Chico Buarque. Por isso, os sofrimentos que vemos na tela não estão distantes de sua realidade. A ameaça constante à democracia feita pelo governo atual, para ela, causa muito medo.

"Sou um gato escaldado. Eles usam o medo como arma o tempo todo, e essa é uma ferramenta muito potente. Tenho um amigo que era da AMES (Associação Metropolitana dos Estudantes), que tem sequelas até hoje por conta das torturas. E ele nunca pegou em uma arma", diz. Chico Buarque, seu marido na época, foi perseguido pelo governo por causa de suas músicas e posições políticas claras.

"Nós éramos ameaçados o tempo todo, recebíamos mensagens dizendo que o Chico era o primeiro da lista. Mas nunca colocamos segurança. Levávamos nossa vida saudavelmente, com energia e força, sem mudar nada. Lembro que quando ele saía de carro com as nossas filhas eu ficava olhando da janela com o coração apertado. Mas seguíamos em frente. Eu tenho essa marca", conclui.

A preocupação de Marieta é com a juventude. Pessoas novas indo às ruas e erguendo bandeiras em prol da ditadura, segundo ela, é falta de conhecimento. "O que justifica vibrar com um ser humano que apoia e elege um torturador como seu ídolo? Um homem que colocava rato dentro da vagina da mulher? O que você quer com isso? O que esse tipo de ser humano pode trazer para o país e para a sociedade? Que caminho é esse? Mas minha obsessão no momento é falar para essas pessoas que apoiam a ditadura. Eu não acredito que um jovem, voltado para a vida, que tenha informação, vai compactuar com esse tipo de opção. A não ser que seja um degenerado, uma pessoa de maus instintos", completa.

A poucos dias das eleições, para Marieta, não tem como ficar pior do que estamos. "Éramos o país da alegria, do povo resistente, que tinha sempre uma maneira otimista de lidar com tudo. E hoje somos um povo triste e faminto, isso tem que acabar. É um país fracassado. Esse país fracassou", afirma.

'É cruel ver meu marido sem autonomia'

O ano de 2020 foi difícil para o mundo inteiro com o início da pandemia de covid-19, mas foi especialmente sofrido para Marieta e sua família. Seu marido, o diretor de teatro Aderbal Freire Filho, foi vítima de um acidente vascular cerebral. "Foi mais do que sofrido, foi inacreditável. É uma consciência da precariedade da vida que tomou conta da minha. Por mais que a gente saiba dela na teoria, quando ela se apresenta, muda tudo."

"Estávamos em Nogueira, na região de Petrópolis, no Rio de Janeiro, com as minhas netas por causa da pandemia. Ele ia para o Rio resolver uma questão do imposto de renda e voltaria no dia seguinte. Nos falamos três vezes depois que ele saiu", diz a atriz. Na última vez em que telefonou para ele percebeu que algo não estava bem.

"Vi que ele estava estranho. Ele estava tendo o AVC. Foi uma grande sorte, porque chamei ajuda. Se não, ele ficaria sozinho, caído lá. Podia ter morrido. Aí você vê aquela pessoa, ativa intelectualmente, cheia de limitações. É a grande dor da minha vida todos os dias. Eu tenho um mini-hospital em casa, com fisioterapia e fonoterapia. Mas ele não tem mais autonomia. É muito cruel", revela.

Tamanho choque fez com que Marieta colocasse a vida em perspectiva e deixasse de lado algumas vaidades. Os cabelos brancos que ela exibe com orgulho, por exemplo, surgiram enquanto cuidava do marido no hospital e não podia se arriscar a ir a um salão de beleza pegar covid e contaminá-lo. "Minha vaidade não me levava ao risco. Não podia ter a chance de passar covid para ele. Então fui deixando. Tinha um médico que me olhava e dizia: 'Isso aí não está bom, não, Marieta' e eu respondia que não, mas que podia ficar. Acabei gostando. Agora nem penso em pintar o cabelo de novo", diz.

O sonho do armário próprio

Antes do AVC, Marieta e Aderbal moravam em casas separadas. Como ambos tinham saído de relacionamentos longos —ela ficou 30 anos com Chico Buarque e ele também passou três décadas com a esposa anterior—, ter um lugar próprio era uma conquista —e acabou dando certo. "Eu tinha construído meu espaço, nunca tinha morado sozinha. Casei muito jovem, tive uma filha com 21 anos. Aquele armário só para mim era uma conquista [risos]. Foi algo muito natural para nós dois, não existia outra hipótese", conta. Era também importante manter a casa dela, o santuário da família, para que as netas e os almoços de domingo continuassem sempre iguais.

E existe algum segredo para o sucesso nos relacionamentos? Marieta não sabe dizer. "É um grande mistério, não dá para saber. São tantos elementos... É o amor, mas, às vezes, as circunstâncias desviam esse amor. São dois seres humanos optando diariamente por ficarem juntos", diz.

'Nunca fui uma mulher bonita'

Na TV há anos, com papéis importantes e personagens marcantes no currículo, Marieta considera o etarismo uma pauta tão atual quanto o machismo e o racismo, por exemplo. Mas acredita que ainda há muito para mudar nas cobranças sofridas pelas mulheres —com as quais ela diz não se importar.

"Esse tipo de cobrança não me abala. Nunca tive compromisso com a beleza, nunca fui uma mulher bonita. Não é isso que alimenta meu ego, me faz bem ou mal. Eu gosto de estar arrumada, me cuido, não sou uma mulher maltratada. Mas não sou obcecada por isso. Não me olho no espelho cheia de rugas e sofro. Penso: 'Ih, caramba. Tá ruim à beça', e sigo em frente", diz.

Apesar de as rugas não serem um problema, tem algo que a incomoda com a chegada da idade: a sabedoria. "A idade tem um aspecto muito bonito: a sabedoria. Que, como tudo na vida, tem um lado chatinho. Eu olho algumas atitudes e penso: 'Não vai dar certo'. Mas tenho que dar o caminho para o outro percorrer e perceber que não funciona, mesmo que eu já saiba porque já vivi isso. A tal sabedoria me enche o saco um pouco."

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

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