Caso você não deva nada a ninguém nem seja um foragido da polícia, mostrar sua carteira de identidade quando ela é solicitada não faz suas mãos tremerem ou o coração se agitar. Certo? Infelizmente, não. Pessoas transgêneros --elas são 1% da população mundial --passam por diversos e específicos sofrimentos ao longo da vida, especialmente, no Brasil: violência (somos o país que mais mata essa população), preconceito em casa, no trabalho e nas ruas e desemprego são uma parcela ínfima da lista. Mas há sutilezas da vida corriqueira de trans que também desaguam em profundo sofrimento; e uma delas é ter os documentos com o nome e o gênero que elas não reconhecem.
Esse problema foi enormemente suavizado em março de 2018, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a alteração desses registros não precisava mais de autorização judicial, laudo médico ou comprovação de cirurgia de redesignação sexual. Na decisão, a maioria dos ministros invocou o princípio da dignidade humana para assegurar o direito à adequação da identidade autopercebida pelas pessoas trans.
Dois meses depois, a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça publicou uma norma que estabeleceu as regras para que a mudança na certidão de nascimento ou casamento pudesse ser feita nos cartórios de todo o Brasil. Desde então, pessoas maiores de 18 anos podem requerer a alteração de prenome, agnome indicativo de gênero (filho, júnior, neto etc.) e gênero em certidões de nascimento e de casamento; esta, com a autorização do cônjuge.
Antes dessas decisões, o caminho era dificílimo. A pessoa trans primeiro, precisava recorrer à Justiça; segundo, dependia do "entender" dos juízes que, na falta de uma regulamentação, decidiam os processos com base em diferentes critérios. "Alguns entendiam que só podiam retificar nome e gênero os requerentes que tivessem feito a cirurgia no SUS; outros, que sem cirurgia era possível alterar o prenome mas não o gênero", explica a advogada Maria Eduarda Aguiar, primeira mulher transgênero a conseguir colocar seu nome social na carteira da OAB-RJ, e presidente da ONG Grupo Pela Vida, que apoia pessoas com HIV. Eram exigidas, ainda, perícias policiais, laudos psiquiátricos e fotografias.
De acordo com o artigo 16 do Código Civil, toda pessoa tem direito ao nome. De um ano para cá, pessoas trans tiveram esse direito, subjetiva e felizmente duplicado. Acha isso "balbúrdia"? Experimente ser alvo de piada e/ou violência, a vida toda, sempre que falar seu nome.