De filha para mãe

Em um ciclo de cuidado ainda reservado às mulheres, fica a cargo delas dar às mais velhas acolhimento e afeto

Nathália Geraldo De Universa, em São Paulo

Neste Dia das Mães, a programação de Maria da Glória Penna Kondziolka, 86 anos, e da filha, a jornalista Monica Kondziolková, 53 anos, deve seguir a rotina de quase todos os dias. Elas estarão juntas e, se o tempo estiver firme, passarão algumas horas no Parque da Água Branca, em Perdizes, zona oeste de São Paulo. O espaço fica em frente ao apartamento da família, onde Mônica voltou a morar em 2015, quando viu que a mãe havia ficado debilitada após a morte do marido.

Maria da Glória anda rápido e circula com animação pelo parque. Vibra com as crianças que encontra pelo caminho e faz amizade com outros idosos. Ao mesmo tempo, requisita cada vez mais atenção da filha. Por ter a doença de Alzheimer, não se lembra de muitas coisas e repete frases e expressões.

Monica e Maria da Glória são exemplos de uma relação de cuidado. Tudo está sob responsabilidade da jornalista, que tem dois meios-irmãos, filhos do primeiro casamento do pai, que moram fora da capital. Ela ainda conta com a ajuda de uma cuidadora contratada para acompanhar a idosa.

No Brasil vivem 30,2 milhões de pessoas com mais de 60 anos, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2017. Há uma tendência de envelhecimento populacional; em seis anos, foram mais 4,8 milhões de pessoas idosas. A expectativa de vida do brasileiro em 2019 era de, em média, 76,6 anos (homens com a média de 73,1 anos, mulheres, 80,1 anos). Projeção do instituto considera que o Brasil pode chegar a 19 milhões de pessoas com mais de 80 anos em 2060.

À medida que a população envelhece, uma preocupação cresce: como garantir uma velhice digna? A quem fica o cargo de cuidar dessas pessoas que, aos poucos, vão precisando de mais atenção?

Dentro dos núcleos familiares, quase como uma tradição, é comum que mulheres ocupem esse lugar de cuidadoras. Numa confluência de sentimentos, elas zelam pelo bem-estar físico, mental e emocional daquelas com que têm um laço maternal.

"Existe uma pressão social para que a mulher esteja ali, no momento em que a fragilidade dos mais velhos aumenta. Mas é preciso que a pessoa responsável por cuidar de outra também olhe para a própria saúde mental", afirma a psicóloga Vanessa Karam, que trabalha com família.

A seguir, Universa conta as histórias de filhas que inverteram a rotina do amparo e hoje cuidam de quem um dia cuidou delas.

Caminhando lado a lado

"Mamãe, vem aqui." Guiando a caminhada de Maria da Glória, Monica conta que viu de perto a forma como o Alzheimer foi deixando a mãe: sempre mais dependente de atenção. Se antes ela fazia palavras cruzadas e tinha autonomia para sair de casa, com o tempo, passou a requisitar atenção em dobro. "Ela tinha uma cuidadora só para alguns horários. Conseguia, por exemplo, tomar banho e ir ao parque sozinha. Mas a doença foi piorando."

Maria da Glória fala cantando coisas como "Abençoai este nosso lar" e "Você é muito bonita". Ao ver as fotos em que aparece mais jovem, demora alguns segundos para responder à pergunta: "Quem é essa?". "Sou eu!", diz, com alguma certeza.

Na rotina em que Maria da Glória vira "filha", um vocativo inclusive usado por Monica para chamá-la em alguns momentos, a jornalista também se depara com uma das questões que recaem sobre quem se responsabiliza por cuidar de alguém:

Tenho grande amor pela minha mãe, recebi tudo dela. Mas, enquanto você vai suprindo as demandas do outro, vai se anulando. Você se priva por uma boa causa, mas vai deixando de fazer as coisas. Ao mesmo tempo, que ser humano eu sou se não puder fazer algo por ela?

Para trabalhar e retomar outras atividades da vida, recentemente Monica contratou uma cuidadora profissional por meio período. E está em uma fase de procura de residência para idosos em que a mãe seja acolhida.

"Sabe aquela história do avião, que você precisa colocar primeiro a máscara de oxigênio em você e só depois ajudar o outro? Antes que eu fique doente, estou tomando essa decisão, que não será nem um pouco brusca. Já pesquisei 12 instituições e ainda não achei a que ela ficará." Um dos requisitos: alguém terá que levar Maria da Glória para seus passeios ao ar livre.

Empatia e olho no olho

"Foi um trabalho louco convencê-la da necessidade de vir morar comigo." A vida da assistente administrativa Marli Sonia Polo Takahashe, 54 anos, de seu marido, Reginaldo, 60, e da filha do casal, Lívia, 25, mudou recentemente. Marli decidiu acolher a mãe, Olinda Scodro Polo, de 88 anos, há um mês e meio.

Única mulher entre três irmãos, Marli até se mudou para uma casa maior, em Osasco (Grande São Paulo), para que todos se acomodassem bem. Olinda mora embaixo, e Marli, com a família, em cima. A filha trabalha de casa e se dedica a apoiar a matriarca na hora de ir ao banheiro, tomar banho ou trocar a TV de canal. A dificuldade de locomoção veio com a senilidade. Há alguns dias, Olinda caiu em casa e precisou passar por uma cirurgia no fêmur.

"Por dois anos, ia todos os dias na hora do almoço à casa dela, mas tinha em mente que chegaria a hora em que teria de cuidar mais de perto. O começo foi complicado, porque ela tem alguns momentos de confusão mental. Há dias em que está com bom humor, mas em outros fica bastante emotiva."

Marli conta que a convivência nesta fase da vida da mãe potencializou as demonstrações de carinho entre elas.

Virei cuidadora, mesmo. Ajudo a colocar a fralda geriátrica à noite, porque ela não consegue ir ao banheiro sozinha, por exemplo. Ao mesmo tempo, nos olhamos mais nos olhos, nos abraçamos mais. Até pela necessidade de eu dar apoio a ela para se levantar. Faço tudo isso para que ela tenha uma sensação de segurança. Minha mãe, por sua vez, não era de dizer obrigada nem reconhecer a minha força. Isso mudou.

Olinda é viúva há 14 anos. Jovem, se dedicava a cuidar do salão da igreja que ainda frequenta, além de zelar pela família —uma filha morreu quando ela tinha 70 anos. Marli diz que cuidar da mãe, sempre com a validação e o apoio dos outros irmãos, a faz pensar no próprio envelhecimento.

"Quando chegar a minha vez, quero ser compreensível com minha filha. Cuidar de um idoso é ter um tempo mais devagar e é preciso muita empatia, mesmo. Às vezes, me pergunto: 'E se eu estivesse no lugar dela?'. Quem não se prepara para viver isso pode ter um desgaste terrível ao precisar cuidar dos pais mais velhos."

Retribuir, ter gratidão e amar

Depois de se aposentar em 2013 como professora de história, em São Paulo, Marli Dias, 61 anos, fez uma mudança radical em sua vida. Trocou o barulho de São Paulo pela vida em uma casa com quintal em São Sebastião do Paraíso, município mineiro que, no último censo do IBGE, tinha 64 mil habitantes. O motivo: a mãe, Maria do Rosário Dias, e o padrasto, que morreu no ano passado por covid-19, precisavam de amparo porque estavam envelhecendo.

Maria do Rosário tem, hoje, 89 anos. "A saúde física dela é boa, mas, segundo o neurologista, ela tem uma demência natural da idade", conta Marli. Por telefone, a senhora que trabalhou no início da vida em roças de cafezal e atuou na capital paulista como faxineira, conta que voltar para Minas Gerais era um sonho.

"Nasci em Itamogi, uma cidadezinha aqui perto. Casei jovem e vivi mais de 30 anos em São Paulo. Mas não queria trabalhar para mais ninguém. Então, voltei para cá. Agora, tenho que me conformar com a velhice, porque estava acostumada à luta e agora não posso mais fazer as coisas, né?"

Marli tem mais uma irmã, em São Paulo, que sempre as convida para viagens. Nas fotos, a filha e Maria do Rosário aparecem em Capitólio e em uma praia. O dia a dia é de respeito e atividades em dupla. "Cuidamos da horta, ela me ajuda a fazer a comida no fogão a lenha. Cuidar da minha mãe é um exercício constante de aprender a lidar com a diferença, porque há choque de gerações", diz a professora aposentada, que vê a convivência com a mãe como uma oportunidade de retribuir cuidado.

Não vejo como obrigação. Muitos amigos não têm suas mães por perto, e acho uma dádiva poder retribuir tudo o que ela fez por nós. Há muita gratidão e, pela minha espiritualidade, penso que tudo é como deve ser.

Quem cuida de quem cuida?

Pela cultura patriarcal, em que a mulher sente a pressão de apoiar os mais velhos à medida que a fragilidade deles aumenta, é muito mais comum ver as filhas sendo responsáveis pelos pais idosos. "Há um apelo desse cuidado de forma transgeracional, de se notar como aquela idosa também cuidou da filha e foi repassando essas obrigações, que podem ser vistas como algo feminino", afirma a psicóloga Vanessa Karam, do Núcleo de Suporte e Cuidados Paliativos da Beneficência Portuguesa de São Paulo.

Vanessa chama a atenção para o fato de que quem cuida também precisa ser cuidado, e diz que esse papel deveria ser mais discutido na sociedade. "Existe a ausência de política pública direcionada a quem cuida, porque são pessoas que estão em uma atividade não reconhecida, mas que pode comprometer a realização de outra."

A geriatra Natália Garção, também da Beneficência Portuguesa, explica que são as alterações cognitivas causadas por transtornos demenciais, como a doença de Alzheimer, que depreendem mais da relação entre filha e mãe. Uma pesquisa feita em conjunto pelas Universidade Federal de Pelotas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade de Queensland, na Austrália, aponta que a proporção de pessoas com Alzheimer no Brasil aumentou 127% em três décadas.

Mas há ainda idosos que, pela redução da capacidade física, precisam de atenção em questões como alimentação e higiene pessoal.

Nessas relações, há uma inversão de papéis, mesmo. Mas devemos entender como filhos que, quando nossos pais estão envelhecendo, provavelmente precisarão de auxílio. Mas não devemos infantilizar o idoso, porque aí não é uma relação saudável. O idoso está evoluindo para a fase terminal da vida dele.

Ela defende, no entanto, que é preciso quebrar o estigma de que envelhecer sempre significa se tornar debilitado. "Há fatores que aceleram o processo de perda de funcionalidades. E, justamente por isso, precisamos nos cuidar para viver os próximos anos."

Alguns estudiosos de gênero indicam que a ideia de "feminização do cuidado" —ou seja, de que mulheres seriam naturalmente mais indicadas para cuidar de alguém— é um dos fatores que as colocam como protagonistas dessas responsabilidades, o que pode gerar sobrecarga.

"Infelizmente, parece que há um determinismo desde antes, de que é a mulher quem leva ao consultório, ao mercado ou chama a mãe para almoçar em casa. Puxar os outros elementos da família e sinalizar que precisa de ajuda é importante", finaliza a psicóloga.

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