As mães que doam os filhos

Mulheres contam o que as levou a entregar seus bebês: "Pensei em me matar"

Luiza Souto Da Universa William Mur

Hoje no Brasil a mulher não pode escolher ter ou não um filho -- o aborto só é permitido em casos de estupro, fetos anencéfalos e risco de vida à mãe. Mas pode escolher entregar a criança à Vara da Infância, caso não possa ou não queira cuidar. E, diferentemente do aborto, que tem suas restrições para acontecer, a lei ampara toda mulher que segue com a gestação e, no fim, decide por qualquer motivo doar a criança. Muitas sequer amamentam ou olham para o rosto do bebê.

Nilza, Esther, Camila e Carol não desejaram a gravidez. Em comum, as quatro mulheres viveram o abandono do pai da criança. Um sumiu, outro duvidou...

Não ter um filho é uma decisão mais simples para o homem, que simplesmente vai embora. Cabe à mulher decidir o que fazer com sua gestação -- frente à ilegalidade do aborto nesses casos, muitas escolhem parir, mesmo sem condições. É aí que a Entrega Legal parece a única possibilidade, quando nada mais faz sentido. A lei ampara, mas a sociedade não.

Entre setembro de 2018 a fevereiro deste ano, somente no estado de São Paulo, 63 recém-nascidos foram entregues à Vara da Infância, incluindo os bebês dessas quatro mulheres, que aqui não são identificadas com seus nomes verdadeiros. Neste mesmo período, quase o dobro (103) foi abandonado à própria sorte. O levantamento é do juiz Iberê de Castro Dias, da infância e da Corregedoria do TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo).

Ele justifica o alto número de abandonos: "As mães acham que é proibido entregar um filho, e a solução é abandonar numa caçamba de lixo. Por isso, é importante deixar claro que é um direito, com a possibilidade de preservação e sigilo da identidade dessas mulheres".

"Fui estuprada por um conhecido"

Sou do interior do Maranhão, e minha família vivia da roça e da pesca. Contraí sarampo aos seis meses de vida e perdi a visão do olho esquerdo. Consegui colocar uma prótese somente em 2014, mas sempre me achei inferior aos outros por ser deficiente a vida inteira.

Minha mãe me abandonou quando eu completei 7. Saiu de casa dizendo que ia trabalhar e nunca mais voltou. Isso me dói até hoje. Eu e meus dois irmãos fomos criados pela nossa avó materna, mas ela morreu quando eu completei 12. A partir daí fomos criados por uma tia. Nosso pai era ausente.

Fui mãe pela primeira vez aos 16 anos. O pai da criança não quis ficar comigo, mas como ele tinha melhores condições financeiras, decidimos que ele a criaria. Acabei me afastando dela e só encontrava minha filha pela vizinhança.

Fui estuprada por um conhecido em 2017. Ele ameaçou minha família se eu contasse para alguém. Quando descobri a gravidez, não quis contar para ninguém e sofri muito. Tive nojo, medo de chegar perto de outro homem. Pensei em me matar

Fui para São Paulo em busca de melhores oportunidades, e parei numa pensão. Consegui emprego como atendente num bar, mas o menino nasceu 15 dias depois, em junho de 2018. Sem ter o que comer em casa, resolvi entregá-lo para a adoção. Não sabia se conseguiria criar uma criança fruto de um estupro.

Quando penso no que eu fiz, na minha decisão, vem o medo de ser presa, mas eu tenho consciência de que, pelas minhas condições financeiras, eu não poderia criar esse menino. Tenho certeza de que ele será mais feliz com uma família adotiva.

Nilza, 38 anos, auxiliar de limpeza

"O pai disse 'parabéns' e sumiu"

Pode parecer frio, mas no momento em que soube da gravidez, já não queria ter filho. Seria minha terceira. O pai era um ficante, e quando contei que estava grávida ele apenas disse "parabéns" e sumiu.

Fiquei entre o aborto e a doação, mas sei que tirar a criança não era o meu caso. Pesquisei sobre a Entrega Legal e tomei a decisão de doá-la. Não quero nem mais ter o contato dela.

Minha mãe morreu em 2004, e eu e meu pai ficamos mais próximos. Ele soube da minha decisão desde o início e esteve ao meu lado a todo instante. Não gostou da ideia de doar a criança num primeiro momento, mas não interferiu. Ele não queria cuidar dela também. Apenas combinamos de não contarmos para ninguém.

Fiz o pré-natal, não fumei nem bebi. Tive pressão alta a partir do 6º mês, mas minha filha nasceu saudável, num hospital particular da região central de São Paulo, com 2,96 kg. Como todos já sabiam do meu caso, que eu iria entregá-la, fiquei internada no setor pós-operatório, e não na maternidade. Fui muito bem tratada.

Eu vi o bebê, peguei no colo, mas escolhi não amamentar. Coloquei um nome porque não gostei quando a trataram apenas como RN (recém-nascida). Ela tinha cabelos loiros, um olho muito azul. Acho que vai ser bem parecida com o meu avô, que é alemão.

Eu poderia, mas não quis deixar carta ou foto. Quando ela fizer 18 anos, se quiser, saberá me achar. Quero respeitar sua decisão.

Esther, 26 anos, estudante universitária

"O pai ainda duvidou que era dele"

Minha mãe me teve aos 20 anos, e nunca soube quem é meu pai. Cresci com a minha avó materna, numa fazenda no interior da Bahia, em Ibicuí. Aos 14, fui para São Paulo trabalhar numa casa de família. Lá, reencontrei minha mãe e fui morar com ela e mais outros irmãos.

Aos 18, resolvi voltar para a Bahia, onde casei e tive dois filhos, hoje com 16 e 13 anos. Já separada, em 2017, conheci um homem de origem libanesa numa loja. Nos protegemos em nossas relações, mas numa delas a camisinha falhou. Só fiz o teste de gravidez quando estava chegando no 5º mês de gestação, porque foi quando notei que tinha algo errado. Nessa época, essa pessoa já tinha voltado para o Líbano, porque o projeto dele, desde o início, era passar apenas seis meses no Brasil.

Só fiz ultrassom no 8º mês, numa UBS (Unidade Básica de Saúde) da Sé, região central de São Paulo. Uma enfermeira notou meu desespero pela gravidez inesperada, e contei toda a minha história. Ela quem me falou da possibilidade de doar a criança, e junto a uma assistente social me orientou a procurar a Vara da Infância.

Mas antes disso, resolvi procurar o pai da criança. Numa conversa pela internet, ele sugeriu que eu fizesse um aborto, antes de prometer mandar dinheiro para me ajudar na sua criação. Isso nunca aconteceu. Contei ainda para a família sobre a decisão de doar a criança e ninguém me apoiou, mas também ninguém se dispôs a me ajudar a cuidar dela. O pai dos meus outros filhos dá pensão esporadicamente.

Na maternidade, antes do parto, pedi para falar com uma assistente social e ali combinamos que eu iria doar mesmo.

Eu não quis ver o bebê, nem amamentar porque iria sofrer mais. Tive contato apenas por uma foto.

Mandei essa foto para o pai, mas ele não achou a menina parecida com sua família e ainda duvidou da paternidade.

Camila, 35 anos, operadora de caixa

"Vivi essa gravidez sozinha"

Quando soube que estava grávida, fiquei apavorada. Seria meu quinto filho e tinha certeza de que não contaria com o apoio da minha família. Tive um bom relacionamento com o pai da criança, mas não chegamos a namorar. Quando ele soube da gravidez, reagiu de forma bem negativa e passou a não mais atender minhas ligações. Até mudou o número do telefone. Nunca mais soube dele.

Engravidei pela primeira vez aos 15 anos, e o pai ficou com a criança. O outro filho, de 8, mora comigo e o pai ajuda. O de 4 está com a minha avó e o de um ano também está comigo. Quando engravidei nessa última vez, fui expulsa de casa e fiquei num Centro de Acolhida, mas três meses após o parto, voltei para casa.

Moro de aluguel com dois filhos, meu pai, de 71 anos, e dois irmãos, de 32 e 34. Minha mãe morreu há dez anos de câncer. Ela era minha única referência de família. Meu pai é alcoólatra, violento, e a agredia muito. Minha relação com ele sempre foi muito conturbada, e por causa disso escondi a gravidez. Já tentei sair de casa, mas não consegui me manter, mesmo trabalhando com eventos e em farmácia. Hoje vivo de um dinheiro que uma tia materna me manda.

Fiz todo meu pré-natal numa UBS do centro de São Paulo. Ali, avisei que queria entregar a criança e fazer laqueadura. Usei esse procedimento como desculpa para me internar. Meu pai e meus irmãos nunca desconfiaram de nada. Vivi essa gravidez sozinha. Tomei todas as decisões sem ajuda de ninguém.

A tia que me ajuda financeiramente acabou descobrindo a gravidez no dia do meu parto, porque foi chamada no hospital. Não deu qualquer opinião sobre a entrega da criança. Ela diz que prefere não se meter nos assuntos da família por medo das reações violentas do meu pai.

Não quis ter qualquer contato com meu filho depois do parto. Escolhi não amamentar para não criar vínculo. Ainda fico triste quando lembro de tudo, dele, mas mantenho a convicção da entrega. Nem comprei enxoval ou pensei no nome. Deixei uma carta para ele explicando meus motivos.

Carol, 26 anos, desempregada

A decisão é relacionada com abandono paterno

No momento em que a grávida decide não criar o bebê, ela deve procurar a Vara da Infância e da Juventude e manifestar sua vontade. Essa mãe será acompanhada por uma equipe de psicólogos e assistentes sociais até o fim da gestação. Depois que a criança nascer, é novamente avaliada. A mulher pode ainda falar da sua escolha em entregar o filho na maternidade, após o parto. O mais comum, conta Iberê de Castro Dias, é que o recém-nascido saia do hospital direto para a adoção: uma equipe vai buscá-la.

"Quando as mulheres chegam na Vara, tentamos entender o porquê de entregar o filho. Tomamos o cuidado para que não seja uma decisão repentina. Por isso é obrigatório que a mãe seja ouvida novamente depois do parto", explica o juiz.

Raramente o motivo da entrega é porque essa mulher é pobre. Geralmente tem a ver com o abandono do pai da criança. Ou com problemas de relacionamento na família.

Após a entrega da criança, a mãe pode se arrepender até 10 dias depois de publicada a sua decisão, mas esse arrependimento não significa que a criança necessariamente voltará para ela. Os estudos indicarão o que é melhor para a criança. Uma vez entregue o neném, a Justiça aciona o cadastro das pessoas que estão na fila de adoção. A mãe não vai saber para onde o bebê será levado. Também não poderá escolher com quem ele ficará. Isso, aliás, é crime. É direito dessas crianças, se desejarem, ir atrás da mãe biológica ao longo da vida.

As quatro crianças das histórias relatadas aqui já têm suas famílias adotivas, como explica o juiz.

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