Bloco das gordas

No Carnaval da antigordofobia, elas falam de autoestima, corpo livre e pedem a "democracia" que a festa sugere

Nathália Geraldo De Universa Arquivo Pessoal

Coragem, amada?

Gordas de meia arrastão, com tapa-mamilo, rebolando no bloquinho. Cansadas de esconderem a pele com mais tecido, muitas mulheres têm colocado nas ruas -e exaltado -corpos livres, grandes, gliterizados. Apesar de ser uma "festa democrática", dizem, a pressão estética e a gordofobia não as abandonam no Carnaval. Daí, precisam colocar a pauta na rua, denunciando olhares preconceituosos e comentários gordofóbicos que ouvem enquanto estão apenas curtindo a folia.

Para muitas, isso vira combustível para reverter a visão objetificada da mulher gorda -às vezes ainda vista como "feia, desengonçada ou mal-arrumada" dentro e fora do clima de folia. Outras, criam seus próprios bloquinhos ou se reúnem em grupos para ocuparem espaços e chamarem atenção de forma positiva. Fato é que o corpo gordo "tem o direito de ocupar esses lugares como qualquer outro corpo", defende a jornalista e ativista body positive pernambucana Vanessa Campos.

Pela primeira vez, neste ano, surge uma campanha na internet sobre o tema: #CarnavalSemGordofobia. Outras hashtags, como #CorpãoDeCarnaval, também ganham as redes sociais. Será que entramos, finalmente, na ala da diversidade, com barrigas e braços grandes e celulites no bumbum à mostra?

Universa ouviu mulheres que estão dançando de roupas curtas e com direito a guarda-chuvinha de frevo na corda bamba entre a militância e a festa. "Cada vez mais, temos movimentos como 'Gorda de Shortinhos pode', nas redes, e, a cada ano, vamos diminuindo o tamanho da roupa nas ruas", pontua uma das criadoras do grupo Baile das Gordas, de Salvador, Carla Leal, que há três anos vai ao pré-Carnaval levantando o estandarte da diversidade de corpos.

Para uma das criadora do movimento Carnaval sem Gordofobia, Luana Carvalho, de Porto Alegre, falar do respeito ao corpo gordo no momento em que mulheres com corpos sarados ganham destaque na folia é evitar que mais homens e mulheres passem pelo constrangimento de ouvir comentários gordofóbicos sutis como "Como você tem coragem de estar com a barriga de fora!".

Não é coragem. É liberdade, conforto, beleza. É Carnaval!

Andre2013/Getty Images/iStockphoto
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A resposta aos olhares gordofóbicos

Quem vê a comunicóloga e ativista body positive Juliana Santana usando a mesma saia de tule amarela há três Carnavais mal sabe que ela "nem curtia muito a festa". Acontece que ela passou por um processo de autoaceitação do corpo e a peça de roupa foi "evoluindo" com ela: antes, era usada com shorts por baixo, hoje, é acompanhada de hot pants.

A saia foi feita por uma costureira já que, segundo Juliana, a moda de Carnaval ainda não contempla a diversidade de corpos. "Eu peço para a costureira fazer porque nas barraquinhas de rua só tem fantasia para mulher magra. E, quando acho roupas plus size, são supercaras", explica.

As inspirações iniciais, inclusive, eram gringas. "Eu via referências do festival Coachella, no Pinterest, e pedia para alguém fazer. E comecei a confeccionar meus figurinos também."

Mulher negra, Juliana conta que, aos poucos, foi entendendo como seu corpo era visto no meio da festividade. "Eu via a Globeleza e a achava linda. Ao mesmo tempo, ela só era enxergada como um corpo. E corpo padrão, no qual eu nunca me encaixei", analisa. "Agora, de fato, o assédio no Carnaval é maior. Os caras ficam me chamando de 'morena'. Ao mesmo tempo e, por isso, quando uso metrô para ir ao bloquinho, já vou preparada porque sei que as pessoas vão olhar para meu corpo."

'Soy gordita'. E daí?

Ser alvo de atenção - e por motivo de estranhamento - também foi o que vivenciou a ourives e designer de joias Mariana Santoro, do Rio de Janeiro, quando se vestiu de "masculinidade frágil"; no bloquinho, ela usou uma saia de plástico-bolha sobre um biquíni que deixava sua barriga à mostra.

"Quando tirei o plástico, porque estava com calor, reparei que as pessoas olhavam mais. Ano passado, o foco dos outros eram as minhas celulites, porque eu vestia um maiô sem meia-calça", conta.

Mesmo indo em blocos de rua mais alternativos, Mariana dá o recado aos foliões gordofóbicos já na fantasia. "Ano passado, mudei o meme "No puedo estoy gordito e cansadito" para uma placa "No puedo, soy gordita y cansadita de tu opinion". Fez sucesso, me senti bem e vou repetir neste ano."

Mostrar mais pele quando se tem um corpo fora do padrão, no entanto, não é tão simples. "Usei o tapa-teta para tirar fotos no Instagram, mas ainda não me senti pronta para ir à rua. E não tem por que ser forçado, senão não é diversão, né?".

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#CarnavalSemGordofobia: história por trás

A modelo e técnica de administração Luana Carvalho sabe bem o que fez nos carnavais passados: não desfilou por nenhum bloquinho. Tudo por conta de um ataque gordofóbico que sofreu há três anos, em Porto Alegre. A frase "Olha aquela gorda dançando" a fez querer ir para casa.

Na internet, outras críticas chegaram: ao abrir o Curious Cat, um site em que é possível deixar comentários anônimos, leu mais comentários sobre seu corpo, entre xingamentos: "Ele balança muito".

Neste ano, resolveu voltar às ruas, usar fantasia e criar nas redes sociais uma campanha pelo fim do preconceito contra pessoas gordas: a #CarnavalSemGordofobia.

"Ao conversar com minha amiga, a atriz Gabriella Morais, que também é gorda, percebi que tínhamos experiências em comum no Carnaval. Porque a gordofobia não tira férias, ela também vai à festa. Então, a campanha nas redes é para conscientizar. Quem entra na hashtag vai ver que o Carnaval é uma festa de liberdade, mas que para pessoas gordas, não é bem assim; vai ver gordos fantasiados, dicas de maquiagem."

A internet, acredita Luana, é um ambiente em que o ódio e o preconceito ganham adubo. O movimento nas redes, no entanto, ganhará também o mundo real: Luana e Gabriella combinaram de ir a bloquinhos do Rio com um grupo de mais de 30 pessoas gordas.

"Convocamos as pessoas que querem muito curtir o Carnaval. Sabemos que, se alguma coisa acontecer, vamos estar um do lado do outro para nos defendermos. E, como na hashtag, vai ser um pouco de festa, um pouco de militância. Afinal, a gente não quer falar só de dor. Por que para todo mundo tem que ser uma festa e para gente, motivo de dor?".

[O corpo gordo incomoda porque] Há a questão estrutural de que o corpo magro é considerado bonito, saudável. O que foge disso incomoda sempre

Rayane, criadora do perfil Gorda na Lei

Arquivo pessoal

Respeite as gordas

Para a pós-graduanda em Direito Cibernético e uma das criadoras do projeto Gorda na Lei, que defende o combate à gordofobia na prática jurídica, Rayane Souza diz que é importante lembrar que a gordofobia é um sistema de opressão estrutural. Isso significa que o nome pode até estar em voga, mas o preconceito é antigo. "Há a questão estrutural de que o corpo magro é considerado bonito, saudável. O que foge disso incomoda sempre."

No Carnaval, tudo pode se potencializar. "Ver uma mulher gorda com roupa curta, ou ela beijando um homem que não é gordo ainda chama atenção, vira chacota. Eu mesma já passei pela situação da aposta: amigos que desafiam o outro que, se não conseguir beber tal quantidade de álcool, vai ter que 'pegar' a gorda".

Ela alerta para o assédio direcionado a pessoas gordas, que nem sempre magros conseguem perceber, mas que tem um efeito devastador na autoestima e na segurança, principalmente de mulheres. "Pessoas pensam que, por sermos gordas, aceitamos qualquer cara, e eles acham que estão fazendo um favor para nós", pontua.

O fim da gordofobia, para Rayane, não vem apenas de ações pontuais - apesar de isso fazer com que gordos se sintam mais à vontade para se vestirem como bem quiserem e seja uma forma de naturalizar a presença da diversidade de corpos em diferentes espaços -mas de uma mudança psicossocial. "O que dificulta a luta é a ideia de que é uma apologia à obesidade. Não é. É questão de empatia ao próximo. Neste sentido, de nada adiantaria criar leis contra gordofobia, se meu vizinho achar que não mereço respeito por ser gorda."

O discurso não é vitimismo e quer alcançar aqueles que não são gordos, mas entendem a necessidade de respeitar todo tipo de existência. "A minha vida realmente ficaria mais fácil se eu emagrecesse, sim, mas porque o mundo é para os magros. Por que a gente deve se adaptar a uma sociedade para se sentir aceito?"

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Ocupar para ser feliz

Assim como outros preconceitos, a gordofobia também demarca territórios. Qual lugar o corpo gordo pode ocupar?

Para a jornalista e ativista do body positive Vanessa Campos, a resposta são todos os espaços. Afinal, mesmo com a organização de alguns blocos destacando a importância da empatia nas festas, ainda acontece "tiração de onda, fantasias de corpo gordo, colocar almofada na barriga para fingir que é gordo" em alguns espaços.

"Toda mudança social pede um enfrentamento. Estarmos em blocos em que só estamos entre nós dá segurança, mas nos mantêm nesse nicho. Só há diálogo quando ampliamos esse lugar. Não devemos ir para blocos que vão nos hostilizar - eu dificilmente vou a algum bloco 'heterotop'. Mas vou aos que respeitam a diversidade".

Dicas práticas para não ser gordofóbico na folia

  • A cadeira serve?

    Verifique se o bar escolhido pelo grupo tem cadeiras que suportem corpos gordos. As de plástico costumam ser mais inseguras. Procure fazer com que seu amigo se sinta seguro.

  • Banheiro químico ok?

    O banheiro químico pode ser desconfortável para a pessoa gorda. Veja se o que está mais perto é acessível para ela e, se necessário, busque o de um estabelecimento fechado.

  • Tem muvuca?

    Não deixe a pessoa gorda para trás. Se ela se sentir incomodada ao passar em espaços apertados no meio do bloco, busque um lugar onde for mais confortável ou curta o bloquinho parado.

  • Gordofóbicos por perto?

    Se a pessoa se sentir constrangida por comentários gordofóbicos de outros foliões, tente se afastar e preste solidariedade a quem foi agredido. Proteja-a de assédio.

Gustavo Medeiros Gustavo Medeiros

Ir em grupo, seja para qual for o estilo de bloquinho, é a estratégia de muitas mulheres. É assim que funciona o Baile das Gordas que, em sua terceira edição, reuniu um grupo de 40 mulheres no pré-Carnaval de Salvador para ocupar bloquinhos nas ruas.

"É importante resistir, mostrar a cara. E, no Baile, conseguimos exercer esse lado lúdico, se fantasiar, e nos vermos bonitas, arrumadas, felizes", diz Carla Leal, uma das organizadoras do evento e que é ativista pelo fim da gordofobia há seis anos. Ou seja, a ação tem impacto direto na melhora da autoestima das participantes.

"A gente ainda tem, no Carnaval e na vida, a objetificação do nosso corpo: os homens bebem e ficam com a gente no 'fim de festa' ou como fetiche. Quando eu tinha uma visão gordofóbica do meu corpo, olhava para uma mulher maior que eu e pensava: 'Que bom, porque a atenção vai se voltar para ela'. Hoje, temos um olhar de carinho uma para a outra. É uma felicidade."

Luta de todo dia

Relembre momentos de representatividade na mídia

Ricardo Borges/UOL

2003

Preta Gil é um ícone de representatividade de gordas na mídia. Em 2003, ela foi alvo de comentários gordofóbicos ao posar nua na capa de seu primeiro álbum. "Ao defender a minha existência, percebi que estava defendendo milhares de mulheres",disse a artista, recentemente, sobre o registro.

Reprodução

2015

A blogueira Ju Romano foi capa da revista Elle, sem Photoshop, e falou, na época, sobre representatividade. "Não é coragem mostrar seu corpo só porque ele tem curvas a mais do que o que a gente está acostumada. Se a gente visse mais imagens, pararíamos de ficar tão chocadas quando mínima gordura aparecesse na vida ou no espelho".

Fotosite

No SPFW

No São Paulo Fashion Week, a LabFantasma levou para passarela mulheres e homens gordos para mostrar a coleção da marca. A MC Carol foi uma das modelos da coleção que mudou a forma da indústria da moda. À época, o desfile foi chamado de "democrático", "diverso" e "inclusivo". A LabFantasma vende roupas até o tamanho 5G.

Amanda Perobelli

#GordofobiaNãoÉPiada

Em 2017, o apresentador Danilo Gentili expôs nas redes a youtuber Alexandra Gurgel, que fala nas redes sociais e em seu canal do Youtube sobre corpo livre, respeito às pessoas gordas e gordobofobia. Em resposta, a produtora de conteúdo criou a #GordofobiaNãoéPiada, e o Twitter reuniu relatos de pessoas que já tinham sofrido ataques.

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