"Nunca tive medo de morrer"

Vítima de Covid, a médica Ho Yeh Li coordena a UTI de doenças infecciosas do HC-SP

Giuliana Bergamo Colaboração para Universa René Cardillo/UOL

3 de fevereiro de 2020. A Covid-19 já era uma preocupação internacional. Ao todo, 2832 pessoas tinham recebido o diagnóstico positivo da doença e, entre elas, 57 haviam morrido. Quase a totalidade dos casos (2828) ainda estava concentrada na China, mas países do mundo todo começavam a se movimentar para evitar serem atingidos. Por volta das 7h, a infectologista Ho Yeh Li, coordenadora da UTI de doenças infecciosas do Hospital das Clínicas de São Paulo, visitava seus pacientes quando recebeu uma mensagem de whatsapp. "Ho, você iria para Wuhan?", perguntava o colega Julio Croda. A médica achou que fosse piada. Riu e respondeu com um "Kkk".

René Cardillo/UOL

Não era uma brincadeira. Então diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, Croda estava em busca de uma infectologista para compor a equipe médica que iria à China buscar os brasileiros que pediam repatriação. Ho assessora o ministério na contenção da febre amarela e era uma forte candidata. Naquele mesmo dia, por telefone, a médica taiwanesa naturalizada brasileira não só aceitou o chamado, como respondeu: "Acho que eu sou a melhor pessoa para fazer isso porque eu falo mandarim."

Mal deu tempo de preparar a viagem. No dia seguinte, ela embarcou para Brasília e, na quarta-feira, dia 5 de fevereiro, voou com a comitiva rumo a Wuhan. Não era a aeronave que ela imaginava. "Por ser pequena, não dava para isolar as pessoas da maneira ideal. Então, na parada na Polônia, improvisamos criando áreas de proteção com sacos de lixo plástico", conta. A operação deu certo e a viagem correu tranquilamente, assim como os 18 dias em que Ho e os brasileiros passaram em quarentena em Anápolis (GO). Mas o pior ainda estava por vir. Naquele momento, não havia mais dúvida de que a Covid chegaria no Brasil. A pergunta era: quando?

Por que o trabalho de Ho Yeh Li importa

Pandemia no Brasil

A infectologista chefia a UTI de doenças infecciosas do HC-SP, um dos principais hospitais do país. Está coordenando o aumento de leitos, a contratação e o treinamento de novos profissionais.

Repatriação de brasileiros

Ho foi a única infectologista presente na comitiva que trouxe brasileiros de volta da China em fevereiro. Ela precisou adaptar o isolamento do avião com sacos plásticos. Ninguém se contaminou.

Febre amarela

Em 2018, a médica fez parte de um grupo de especialistas que criou um novo protocolo para pacientes graves de febre amarela. A medida reduziu a mortalidade na UTI do HC de 63% para 13%.

O primeiro doente

No dia 23 de fevereiro, domingo de Carnaval, chegou ao fim a quarentena dos 58 brasileiros repatriados e da equipe que os acompanhou. Na quarta-feira de cinzas, Ho retomou as atividades no HC. Havia muito o que fazer. A UTI de doenças infecciosas estava sendo ampliada para receber as vítimas de Covid-19. Passaria de sete para 11 leitos. Além disso, outras alas do hospital precisariam ser adaptadas para dar conta da pandemia, totalizando 200 vagas para pacientes em terapia intensiva. Era necessário ainda contratar, realocar e treinar novos médicos e residentes para receber os pacientes. (Desde então, cerca de 500 pessoas já passaram por lá).

"Uma coisa é ampliar leitos de UTI, outra é conseguir fazer com que ela funcione de uma forma adequada. Nenhuma UTI funciona sem recursos humanos, gente capacitada de verdade", diz. Esses esforços tinham que ser rápidos. Naquele mesmo dia, o Hospital Israelita Albert Einstein registrava o primeiro caso positivo da doença no Brasil. Era questão de tempo para que mais pessoas procurassem atendimento em outros hospitais da cidade.

E foi o que aconteceu. Na semana seguinte, a infectologista recebeu o primeiro doente, um senhor de 71 anos, que chegava encaminhado por um outro pronto socorro. Já na estreia, Ho precisou agir de maneira particular. "Ele veio transferido com o pedido para ser entubado. Mas eu não concordo com essa medida de colocar no ventilador precocemente", diz.

A estratégia tem sido utilizada por outras equipes médicas para evitar que os profissionais se contaminem. "Mas, se realizada muito cedo, pode levar a erros. Quanto mais tempo em respiração mecânica, maiores as chances de outras infecções. Então decidimos não fazer". Foi uma decisão acertada e que continua sendo praticada com sucesso no HC. "Para proteger os médicos, precisamos de equipamentos de proteção individual adequados e de boas práticas", diz ela, que também optou por não usar os macacões de corpo inteiro, que lembram os usados por astronautas, justamente para evitar contaminações na equipe.

"Aquela paramentação protege bem durante o uso, mas é extremamente desconfortável e o risco de contaminação na hora de tirar é altíssimo". Segundo Ho, enquanto o profissional ainda está vestido, é necessário passar um produto químico para lavar a roupa. Há ainda uma outra dificuldade: para se despir, um colega precisa ajudar e uma terceira pessoa tem que ficar olhando, para ter certeza de que não houve contaminação.

"Em um contexto de pandemia como estamos vivendo, isso é praticamente impossível. E o efeito acaba sendo contrário: temos a sensação de segurança, quando, na verdade, corremos alto risco. Suspeitamos até que foi por isso que a China teve tantos casos de médicos e enfermeiros que ficaram doentes", diz.

Ho se preocupa ainda com o impacto emocional de sua equipe. "Além dessas dificuldades, a roupa é cara e descartável, então não dá para ficar trocando para ir ao banheiro ou para comer, por exemplo. Isso é insalubre. E, aí, a gente sabe: stress e má alimentação aumentam o risco para adoecimento. O maior bem que temos são as pessoas, os recursos humanos, precisamos cuidar muito deles", diz.

Simon Plestenjak

Decisão acertada

"O primeiro paciente de covid-19 que chegou em nossa UTI tinha 71 anos. Já tinha passado por uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e por um pronto socorro. Veio transferido de lá com o pedido para ser entubado. Mas eu não concordo com essa medida de colocar no ventilador precocemente. Ela tem sido praticada para proteger a equipe médica, mas pode não ser boa para o paciente. Então a gente não entubou e ele se recuperou bem. O segundo paciente era ainda mais idoso, tinha 80 anos, e também não o colocamos no ventilador. Em uma semana, ele foi para a enfermaria e ficou bom."

"Não foi só uma gripezinha"

Ho não deixou de cuidar de sua equipe nem quando ela mesma adoeceu. Há um mês, no dia 2 de abril, ela estava subindo as escadas até o 11º andar, onde fica sua UTI, quando sentiu um cansaço extremo e dores musculares. Parou para tomar um café, pegou o elevador e ainda trabalhou mais um pouco naquele dia, até que resolveu ir para casa mais cedo. Dormiu muito, teve febre, mas só desconfiou de que contraíra o coronavírus mais tarde, quando foi cozinhar e não sentiu cheiro da comida.

"Ao contrário de quem está em atendimento constante, eu acabo entrando e saindo muitas vezes, e, nesse vaivém, tiro a máscara. Teve algumas vezes em que achei que estivesse com ela, mas não estava. Acho que foi aí que me contaminei", afirma a médica, que precisou se afastar por duas semanas. Ficou em casa, onde mora sozinha, mas foi monitorada pelos colegas e a família o tempo todo. E continuou presente no dia a dia do hospital.

"Temos um grupo de whatsapp para discutir os casos e ela se manteve ali, acompanhando tudo de perto e ajudando nas decisões. Ela também continuou tirando dúvidas sobre as contratações e a expansão de leitos", conta a infectologista Anna Turdo, que integra a equipe. "Ho é do tipo de médica que, mesmo sendo chefe, não sai da escala de plantão, atende os pacientes diretamente, acompanha os residentes fazendo visitas didáticas e não depende só de exames para fazer uma avaliação."

A médica estava no ar, mas não teve só uma "gripezinha". "Eu confesso que, no começo, achei que teria algo leve. Afinal, sou saudável, muito ativa. Mas a sensação é de que eu dei uma morridinha por sete, oito dias."

Mesmo assim, ela diz que não temeu pelo pior. "Eu acho que nunca tive medo de morrer. Eu entendo que cada um de nós está aqui por alguma missão e a única certeza que temos na vida é a morte. A gente só não sabe quando. Então eu tenho muito mais medo de não fazer o melhor enquanto estou viva".

René Cardillo/UOL René Cardillo/UOL

Disseminando conhecimento

Nascida em Taiwan há 47 anos, a médica se mudou ainda menina para o Brasil com a família em 1983. "Na época a China estava ameaçando invadir meu país. Por causa da política do filho único, minha mãe, que já tinha quatro filhas, teve muito medo. Então meu pai pediu visto para três países: Estados Unidos, Costa Rica e Brasil. O do Brasil saiu primeiro", conta. Aqui nasceu seu quarto irmão e seu pai, que é acupunturista e pratica medicina chinesa, montou um consultório.

Ho começou pelos passos dele. Na faculdade, cursada na Universidade de São Paulo, foi a primeira presidente da Liga de Acupuntura. "Meu plano era terminar a residência e ir para a China, continuar minha formação, mas, na época, no ano 2000, prestei concurso e fui admitida aqui no HC. Então fiquei", conta.

Em 2007, a médica assumiu o cargo que ocupa hoje, de coordenadora da UTI que é referência estadual para casos de tuberculose, HIV, tétano ou pacientes transplantados que acabam contraindo algum tipo de infecção, além de gripe e febre amarela. Foram essas duas doenças, aliás, que, antes da Covid, colocaram Ho Yeh Li no centro de importantes crises em saúde.

Na pandemia de H1N1, em 2009, a infectologista viveu uma situação semelhante à atual. "Com a explosão de casos, tivemos que aumentar nossa capacidade de seis para 18 leitos. Por sorte, o HC já estava contratando pessoas, mas eu cheguei a ficar 72 horas direto dentro do hospital, porque os doentes chegavam, mas as contratações e o treinamento não estavam completos", diz.

Anos mais tarde, em 2018, veio um novo desafio: o surto de febre amarela no país. "Eu já tinha vinte anos de carreira e, até então, tinha visto só três pessoas com a doença", conta.

Para piorar, os casos eram todos muito graves. "Fiquei preocupada se a equipe ia aguentar. A maior parte das pessoas que iam para internação eram homens, jovens e saudáveis. Eles chegavam falando com a gente e, no dia seguinte, já estavam sonolentos, iam para a ventilação mecânica e, no outro dia, morriam. Tinha dias que eu mesma abria a porta da UTI e minha vontade era virar para trás e fugir."

Mas Ho ficou. Montou um grupo com outros quatro colegas do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, que viviam crise semelhante, e passou a discutir, todos os dias, às 23h, os casos mais graves. "A ideia era achar meios mais baratos, com boa resposta e que não só evitassem o óbito, mas garantissem qualidade de vida aos sobreviventes"

Assim o grupo montou um novo protocolo. Com as novas estratégias, o número de mortes por febre amarela no HC caiu de 63%, em 2018, para 13%, no ano seguinte. As práticas vêm sendo compartilhadas com outros centros que atendem focos da doença, como o Hospital Nereu Ramos de Florianópolis (SC), onde Ho esteve em janeiro, dias antes de resgatar os brasileiros na China. "Desde então, não houve nenhuma morte por febre amarela lá. Passamos muito stress, mas conseguimos disseminar conhecimento. Isso é excelente."

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