Mulheres invisíveis

Rejeitadas pela família e pela sociedade, transexuais em situação de rua relatam vida marcada pelo medo

Carlos Minuano Colaboração para Universa Marcelo Justo/UOL

Elas sobrevivem em barracas improvisadas em praças, debaixo de pontes e até escondidas em cemitérios públicos. Uma pequena parte encontra acolhida em iniciativas públicas ou privadas. Essa é a realidade enfrentada por muitas mulheres trans que decidiram assumir um gênero diferente daquele que lhes foi designado ao nascer.

No Brasil, na maioria das vezes isso significa ter que se separar da família, abandonar os estudos, não conseguir uma oportunidade de emprego e estar sujeita a diversos tipos de violência. Uma realidade bem diferente da apresentada pelo personagem trans jovem e rico Ivan na novela das 21h "A Força do Querer", cuja reprise está em seus capítulos finais na Globo.

Em São Paulo, um levantamento realizado pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social e divulgado em 2019 apontou 386 mulheres transexuais e travestis em situação de rua. Destas, 200 estavam acolhidas em serviços da rede socioassistencial. Mas, os dados e a metodologia usadas nesse estudo foram questionados por recenseadores que participaram da contagem. Segundo eles, o número é bem maior do que o divulgado.

Gabriely, Amanda e Katharina vivem na Casa Florescer, na região central de São Paulo. O local, com capacidade para 30 pessoas, é um centro de acolhimento para mulheres trans e travestis da prefeitura. A Universa, elas compartilharam um pouco de suas trajetórias, assombrada pela transfobia e pelo medo em diversos momentos. Mas também revelam histórias de superação e de esperança em dias melhores.

MARCELO JUSTO MARCELO JUSTO

Gabriely: da roça para o BBB da vida real

Há seis meses, Gabriely Cesar, 28 anos, deixou sua casa em Amparo, no interior paulista e se mudou para a capital com o sonho de fazer uma faculdade e conseguir um emprego. Na bolsa, R$ 140. Desembarcou no Terminal Rodoviário do Tietê por volta de dez horas da noite, sem saber para onde ir.

Com a ajuda de outros LGBTs que conheceu no local, pegou o metrô e foi até a avenida Paulista. Ali, um morador de rua ofereceu ajuda para ela encontrar um hotel, mas, chegando ao local, ela descobriu que não tinha dinheiro suficiente nem para uma noite. "Custava R$ 100, mas eu só tinha só R$ 40. Mesmo assim me deixaram dormir por R$ 30, porque ainda tive que pagar R$ 10 para o mendigo que me ajudou", lembra. No dia seguinte, quando teria que dormir na rua, conseguiu uma vaga na Casa Florescer.

Gabriely diz que foi a partir dos 13 anos que deu início à sua transição e passou a usar roupas femininas. "Fui aceita em casa. Mas eu tinha que trabalhar na roça, colhendo café e chuchu, era horrível para uma mulher trans com o ensino médio completo, como eu tinha", afirma. Ela tem saudade da família, mas não se arrepende de ter saído de casa.

Nunca tinha experimentado isso de viver com mais de 30 meninas trans em uma casa. Parece o 'Big Brother'. É uma loucura e rolam até uns paredões

O plano que a levou a São Paulo, de conseguir emprego e começar a estudar, começou enfim a deslanchar. Há poucos dias, Gabriely começou a trabalhar e já tem planos de iniciar uma faculdade de teatro.

Marcelo Justo/UOL

"Sinto falta da minha mãe, do meu quarto, de tudo", diz Katharina

Katharina Diniz, 21, afirma ter uma história diferente da maioria das mulheres trans na Casa Florescer. "Não tive problemas com drogas e não passei pela prostituição. Morava com minha família na zona norte de São Paulo". No caso dela, foi a incompreensão materna que lhe tirou o teto.

Sem trabalho e nem condições de ajudar nas despesas da casa, a mãe pediu para ela que saísse de casa. Primeiro ela foi morar com um namorado, mas não deu certo; depois, a avó a hospedou, mas por pouco tempo. "Ali ficavam o tempo todo falando mal de mim, dizendo que eu precisava ir embora. Nem comer eu podia, porque me olhavam feio", recorda.

Por estar desempregada, recebeu o auxílio emergencial de R$ 600 pago na pandemia pelo governo federal, e afirma ter dado o dinheiro para a mãe que, ainda assim, não deixou nem que ela comesse em sua casa. "Dizia que se eu quisesse comer tinha que comprar as panelas, a comida e fazer. Mas ela não tinha porque falar isso, sempre ajudei em tudo e ainda cuidava do meu irmão de nove anos.". Sem saber para onde ir, procurou o Cras (Centro de Referência de Assistência Social), que a encaminhou para a Casa Florescer.

Na casa, está recebendo apoio emocional para lidar com o preconceito que começou a fazer parte de sua vida logo cedo. Katharina conta que desde a infância teve muita certeza de quem era e também de que não seria aceita. "Fui uma criança e adolescente andrógina", diz. E a relação com a família, evangélica e muito conservadora, sempre foi complicada. Mas, começou a piorar há dois anos, quando ela começou a transição de gênero.

As roupas femininas e a terapia hormonal foram a gota d'água. Minha mãe começou a me ignorar até chegar ao ponto de pedir para eu ir embora

Para ela, "é mais fácil aceitar o preconceito da rua do que o da família". "Sinto falta da minha mãe, do meu irmão, da minha avó, da minha casa, do meu quarto, de tudo."

Brasil é o país que mais mata pessoas trans, diz pesquisa

Atualmente, não existem políticas públicas específicas para pessoas trans em situação de rua, segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). "Por exemplo, abrigos por uma noite, por uma semana, por um mês, são segregados por gênero. Quando as travestis chegam a esses locais elas vão para onde?", questiona Keila Simpson, presidente da entidade. Segundo ela, o que existe são projetos e ações pontuais ou políticas locais, como em São Paulo. "É como se fosse uma população invisível para o Estado."

Levantamento mais recente da entidade mostra que 151 pessoas trans foram assassinadas nos primeiros dez meses de 2020, contra 124 no mesmo período de 2019 —um aumento de 22%. Os números, segundo a Antra, colocam o Brasil em primeiro lugar no ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo.

Ainda de acordo com a entidade, os assassinatos de pessoas trans apresentaram o quinto aumento anual consecutivo em 2020. A associação reclama da falta de ações do estado, que segue ignorando índices cada vez mais elevados de mortes, mesmo após decisão do Supremo Tribunal Federal em 2019 de punir a homofobia e a transfobia por meio da legislação do crime de racismo.

São Paulo acaba de concluir a primeira etapa de um mapeamento nunca antes realizado da população trans, incluindo as que estão em situação de rua. O objetivo é levantar informações que sirvam de base para a elaboração de políticas públicas mais alinhadas com a realidade da comunidade LGBT na capital paulista.

"Cerca de 1.700 entrevistas foram realizadas e os dados desse estudo serão divulgados ainda neste mês de dezembro", informa Abigail Santos, coordenadora do Transcidadania, programa criado em 2015 pela coordenação LGBTI da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.

Marcelo Justo/UOL

"A história pessoal dessas mulheres é ignorada"

"Precisamos desmarginalizar a mulher trans que está dentro de um centro de acolhimento", defende o gestor da Casa Florescer, Alberto Silva. Segundo ele, além do estigma que já carregam pela transgeneridade, elas também enfrentam preconceito por serem vistas como moradoras de rua, viciadas ou prostitutas. "A história pessoal de cada uma delas é ignorada. Quando você começa a conversar, vê que muitas vezes não é nada disso. Essas narrativas precisam ser ouvidas."

Um dado importante que precisa ser levado em conta ao falar sobre mulheres trans em situação de rua, reforça Silva, é a rejeição familiar.

Garotas trans muito jovens estão sendo expulsas de casa. Isso sempre aconteceu, mas percebemos que está se agravando

Na primeira Casa Florescer, no Bom Retiro, inaugurada em 2015, 381 mulheres trans já foram atendidas. Deste grupo, 81 conseguiram recolocação profissional e alugar um imóvel para morar. "Seis meninas foram contratadas durante a pandemia, e com carteira assinada", comemora Silva. No final de 2019, uma segunda Casa Florescer foi inaugurada na Vila Nivi, zona norte da cidade.

Enquanto algumas famílias expulsam de casa seus familiares trans, outras, além de apoiá-los, tentam fazer algo para ajudar aqueles que ficaram sem um teto. É o caso de Paula Ferraz, mãe de um jovem gay, que teve uma prima travesti assassinada. Ao ver agravada a situação das pessoas trans em situação de rua, ela criou o projeto Transafeto.

Paula, o marido, três filhos e uma neta, usando recursos próprios e de doações, saem durante três dias da semana pelas ruas do centro de São Paulo levando 200 marmitas. Semanalmente, eles conseguem distribuir comida para 600 pessoas.

Segundo Paula, aceitação é a palavra-chave para a população trans. "Elas precisam se aceitar e, para isso, necessitam também serem aceitas pela sociedade." Quando esse acolhimento não acontece, ela diz, tem início uma série de problemas. "Elas não conseguem trabalho, vão para a prostituição e terminam drogadas e abandonadas pelas ruas."

Até mesmo nas ruas essas mulheres continuam a ser excluídas. "Muitas vezes vi em filas de doação de alimentação ou de roupas elas serem retiradas ou passadas para trás por outras pessoas em situação de rua, só por serem trans", conta. E a intolerância, ela afirma, vem de quase todos os lados.

Amanda comemora oportunidade de emprego em banco

Amanda Lima fugiu da casa aos 18 anos. Ela vivia com sua família, em Juazeiro, na Bahia, e viajou sozinha para São Paulo em busca de um futuro que achava não ser possível em uma cidade pequena que a rejeitava.

Três anos depois, ela lembra que a chegada à capital paulista a colocou diante de uma realidade diferente da que imaginava. Sua viagem foi bancada por uma cafetina para que ela trabalhasse com prostituição. "Pensei que ficaria rica."

Primeiro, precisou pagar em dobro as despesas com a viagem. "Gastei R$ 1 mil e tive que pagar R$ 2 mil. Mal cheguei e logo fui para a rua para quitar a dívida." Amanda diz que foi mandada para um "apartamento minúsculo" que dividia com outras 15 travestis, no centro da cidade, onde viveu por um ano e meio. Para suportar a pressão e a barra pesada da prostituição, começou a beber e a usar drogas.

Ela recorda, com tristeza, a humilhação e da rejeição que sofria todos os dias e das agressões.

Por estar muito exposta, pessoas faziam piadas e chacotas comigo o tempo todo. Jogavam garrafas, extintor de incêndio. Uma vez quase foi atingida por tiros, como aconteceu com uma amiga

Amanda carrega nos braços várias cicatrizes de agressões sofridas durante os programas. "Já passei por muita coisa, tive clientes que depois de sair não queriam pagar, fui ameaçada com arma, me batiam". Para sair da prostituição, Amanda conta que o primeiro passo foi sair do apartamento onde morava, bancado pela cafetina, para uma pensão. "Ainda precisei continuar a fazer programas por um tempo."

Não suportando mais aquela vida, procurou ajuda e conseguiu uma vaga na Casa Florescer. Por lá, Amanda batalha por um recomeço e comemora a primeira conquista: acaba de ser aprovada em um processo seletivo de jovem aprendiz para trabalhar durante dois anos em um banco. "Começo este mês", diz com orgulho.

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