Que solidão é esta?

Encarar isolamento brutal sem alguém ao lado nos faz mergulhar num mundo de reflexões, medo e redes de contato

Matheus Pichonelli Colaboração para Universa

Ela não esperava ter que comemorar seus 37 anos assim. Em anos anteriores, aniversário era sinônimo de casa cheia, algum esforço na cozinha, muitos drinks e aqueles abraços que só os amigos sabem dar. Mas no último 31 de março, não pode ser como sempre foi. Nos 40 m² de seu apartamento em São Paulo, agora só existem ela, dois gatos e muitas plantas. "Saber que ia passar a data sem ninguém me deixou bem mal. Queria todo mundo aqui", conta a produtora cultural Josie Rodrigues.

Uma amiga confeiteira enviou um bolo —mini, para uma pessoa só, e a tecnologia entrou em cena. Observados por uma câmera, os convidados, cada um com sua bebida em seu quadrado virtual, tornaram o dia da aniversariante "menos miserável", conforme ela descreveria semanas depois.

Junto com a terapia, agora online, as videochamadas têm ajudado Josie a atravessar a quarentena iniciada há quase dois meses. "Não sou namastê do apocalipse, não consigo achar legal uma pandemia. Na verdade, estou achando uma merda. Posso até pensar que é um momento de reflexão e introspecção, mas quando você vive sozinha numa cidade como São Paulo, sem ajuda familiar, com trabalho autônomo, sem casa própria, não tem como ver o lado bom. E olha que minha situação é privilegiada", diz a produtora, que tem conseguido manter uma rotina disciplinada de leituras, projetos e anotações de ideias para uma futura pós-graduação.

Josie recomenda a leitura da peça "Entre Quatro Paredes", em que Jean-Paul Sartre sentencia: o inferno são os outros. "Estou louca para sair e abraçar as pessoas", diz. "Mas, por pior que seja, prefiro estar sozinha."

Já para Carina, 41, a sensação é outra. Moradora de São Luís que pede para não ser identificada, ela só sai de casa para ir ao supermercado ou levar a mãe ao médico. Ela diz sentir culpa até quando desce para descartar o lixo no condomínio. Mas, além da culpa, é uma sensação de abandono que aperta.

"Eu já vivia no limite da solidão. Adoeci esses dias, não de coronavírus, e foi difícil. Voltam os fantasmas das frágeis relações familiares, da relação amorosa que afundou. A sensação de vulnerabilidade foi às alturas", conta ela, que já passou três madrugadas seguidas em branco, assistindo Netflix.

Os aplicativos de paquera têm permitido até interações eróticas virtuais, mas também são capazes de ampliar a angústia. "Depois de 30 dias na quarentena, eu conheci um cara pela internet que também estava em isolamento. Avaliamos que não haveria risco e nos encontramos. Foi bom na hora. Mas depois veio uma culpa imensa, uma sensação de erro e insegurança. Costumo ser responsável, mas as fragilidades emocionais são grandes agora", conta.

Se as famílias enfrentam as dificuldades do convívio intenso, quem está só e isolado tem que encarar a solidão. O desafio é fazer com que o virtual consiga suprir, ao menos em parte, a alegria de contar com a presença física de quem se gosta - sem isolar também as emoções.

O medo e a euforia

Em dez anos, entre 2005 e 2015, o número de pessoas que viviam sozinhas no Brasil passou de 6 milhões para 10,4 milhões - aumento de 73%. Os dados permitem dizer que nunca tantas pessoas estiveram isoladas só com elas mesmas.

"Moro sozinha e estou na quarentena desde o dia 13 de março. Tem sido um misto de paz e medo, sossego e aflição. Saber que não tenho que trombar com outras pessoas dentro de casa me faz sentir privilegiada: não há discussões, aperto, divisão de lugares ou objetos como computador e TV. O conforto é todo meu", diz a advogada Roberta Silvestre, 39, que mora em Campinas (SP).

Na nova rotina, ela trabalha remotamente e divide seu tempo entre faxina, cozinha e leituras. "Os dias voam. Finais de semana são mais difíceis porque quebram inteiramente a rotina. Sinto falta dos almoços em família, das quatro sobrinhas, dos treinos de natação."

Para a coordenadora de comunicação que mora em Mogi das Cruzes (SP) Luciana Eica, 38, a quarentena está sendo solitária e libertadora. "Libertadora porque me senti totalmente independente. Solitária porque fiquei mal há algumas semanas, talvez com coronavírus, mas não cheguei a ir ao hospital. Tive de me virar sozinha. De resto, estou cozinhando muito, fazendo polichinelos na varanda e aprendendo a curtir o pôr do sol."

Se para Luciana uma possível doença foi encarada com tranquilidade, para o educador social Cristiano Ferreira, 37, do Recife, o maior medo de estar sozinho é passar mal e não ser socorrido. Ele conta que se separou há poucas semanas, durante a pandemia. "A solidão não é algo ruim para mim. Gosto e estou redescobrindo meu espaço, porque em meio à pandemia eu me separei, então estou também em uma fase de adaptação à nova velha vida."

Quando a solidão vira gatilho

Tadeo Furtado, sócio de uma lanchonete em Curitiba, relata ter crises fortes de ansiedade por não ver ninguém à noite. "Minha lanchonete está fechada, tenho o dinheiro contado. Todos os dias tenho bebido muito. Também tenho comido um pouco além. Engordei a olhos vistos."

Para aplacar a saudade de gente e a sensação de solidão, Tadeo tem visitado a avó, que mora a uma quadra de casa, todos os dias, sempre com cuidados para evitar aproximação. "Eu não abraço e nem chego perto, também não deito na cama ou sofá, como fazia."

Além da solidão e do tédio, pessoas em quarentena têm mais chances de apresentarem exaustão, desapego de outras pessoas, ansiedade, irritabilidade, insônia, indecisão e falta de concentração. É o que mostrou um estudo publicado no dia 26 de fevereiro na revista científica The Lancet. O médico Jairo Bouer conta que, nos Estados Unidos, o consumo de antidepressivos cresceu 21% durante a pandemia.

Durante a quarentena, a rede Atende Mais lançou o projeto "Você Não Está Sozinho", com atendimento psicológico online e horários para consultas gratuitas. Renan Molina Pinto, um dos psicólogos da plataforma, afirma que quem mora sozinho já tem em sua rotina o hábito de exercer tarefas domésticas ou de lazer sem necessariamente a companhia de outras pessoas, o que pode facilitar a adaptação neste período.

Ele afirma que os riscos à saúde mental são maiores para quem tem diagnóstico ou pré-disposição a transtornos como ansiedade, estresse ou depressão. "O grupo de risco está vivenciando um isolamento mais rígido, o que pode trazer um desconforto maior em pessoas idosas, que muitas vezes necessitam de maior interação."

A solidão afeta até mesmo as pessoas que possuem uma personalidade ou comportamento independente, já que ser independente não significa que não haja a necessidade de vínculos", diz a psicóloga Rafaella Cristina Curatolo. Ela diz que, para as pessoas que já moravam sozinhas, o isolamento social pode ser um gatilho para ansiedade e insegurança.

Rafaella diz ainda que nessas horas é válido o uso das redes sociais para suprir a necessidade de comunicação, mas alerta: é preciso filtrar o bombardeio das informações e, claro, as fake news.

A angústia pelo futuro

"Tem dias que fico bem mal, mesmo. Leio as notícias, assisto a vídeos e, quando vejo, estou chorando, lembrando dos amigos, de momentos. Eu sempre tive muita liberdade, sempre saí muito. Tem hora que dá angustia pensar que tudo mudou drasticamente, sem ter tempo de entender o que iria acontecer", conta a psicóloga Tamyres Cuellar, 32. "Mas logo procuro me distrair, assistir alguma outra coisa, ouvir uma música, e fico bem. Vai oscilando entre dias de maior angústia e dias mais tranquilos."

Morando em uma vila de seis casas em Campo Grande, Tamyres está só. A mãe mora perto, mas o contato é mínimo. Em um mês, ela foi apenas quatro vezes ao mercado, e o atendimento em sua clínica passou a ser semanal — muitos não aceitaram a opção online porque não têm privacidade em casa para encarar a sessão.

Ela conversa com amigos por apps de mensagens. Mas nos últimos dias, tem declinado dos convites para chamadas de vídeo que chegam a toda hora. Também foi desistindo dos exercícios que começou a fazer nas primeiras semanas. "Sou bem sedentária e já voltei ao meu normal."

Tamyres, que até a quarentena também trabalhava como DJ em festas da capital sul-mato-grossense, diz que uma das razões da angústia é ver a situação de amigos da área cultural. "Não sabemos quando vamos ver uma peça de teatro ou ouvir uma banda. Já temos poucos estabelecimentos aqui para sair, e os poucos estão fazendo vaquinha online ou pagando couvert para as apresentações ao vivo", conta.

Em debate no UOL, personalidades discutem como retornaremos ao cotidiano de afazeres e relações. Com será abrir a porta desse novo tempo?

A nova vida amorosa de quem está só

Sem vida social fora de casa, Tamyres conta que tem observado um fenômeno: ao menos três pessoas a procuraram para se declarar. Isso porque, especula ela, elas ficam menos envergonhadas de dizer o que sentem quando não vão se encontrar no dia seguinte.

"Sempre têm os sem-noção que sabem que moro sozinha e perguntam se podem vir aqui quando posto fotos de comida. Já dei uns foras, digo que não estou interessada e não recebo ninguém em casa, nem minha mãe. Mas tem um menino com quem estou trocando mensagens no Instagram. A gente se adicionou e combinou de tomar uma cerveja quando tudo acabar."

Ela ironizou os amigos que logo na primeira semana começaram a reclamar da quarentena e do tesão represado. "Quem vê pensa que estava todo mundo transando para caramba. Estou há mais de um mês sem beijar, mas estou de boa."

Oi, sumido

Da França, onde faz seu doutorado na Universidade de Paris 8, a atriz e produtora Flávia Hiroki conta que estava cansada de aplicativos de relacionamento até a quarentena. "Prefiro a vida real. Mas quando surgiu a ameaça do confinamento eu baixei de novo e estou aí nos aplicativos, conversando. Precisamos de afetividade, se não fica difícil", diz.

Foi assim que ela teve um encontro virtual durante a quarentena. "Foi uma experiência muito massa porque era um cara com quem eu estava conversando, ele perguntou se podia ligar, e fizemos uma chamada de vídeo. Ele com uma taça de vinho, eu com minha cerveja. E foi muito legal. A gente ainda se fala, troca ideias, dicas de filmes e queremos nos ver após a quarentena. Se vai acontecer ou não, são outros 500."

Hiroki conta que conhece ao menos um amigo que furou a quarentena para encontrar uma pessoa fisicamente. Deu tão certo que o novo casal decidiu passar a quarentena junto.

O psicanalista Augusto Coaracy diz ter recebido diversos relatos desse tipo de encontro, apelidado de "coronatinder". Coaracy diz que não deve haver moralização dos hábitos sexuais, mas que cabe ao Estado nessas horas orientar o chamado "safe nude" para evitar aumento de crimes virtuais.

Na Argentina, esse tipo de escapada levou o Ministério da Saúde a recomendar, por meio do infectologista José Barletta, que as pessoas evitarem transar com desconhecidos. Para os solteiros, Barletta recomendou as videochamadas, o sexo virtual e a troca de mensagens, além da masturbação.

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