"O tempero do mar foi lágrima de preto/Papo reto como esqueletos de outro dialeto/Só desafeto, vida de inseto, imundo/Indenização? Fama de vagabundo."
Cento e trinta e dois anos após a assinatura da Lei Áurea, os versos da música "Boa Esperança", do rapper Emicida, recontam a história da escravização de africanos — que durou quase quatro séculos e aportou no Brasil um terço da movimentação total do tráfico negreiro da época — conectada à realidade atual da população negra brasileira.
Promulgada pela princesa imperial regente Isabel em 1888, a Lei Áurea — termo que significa "de ouro" — segundo especialistas, poderia ter brilhado mais. Universa conversou com três professoras, negras, que avaliam as duas linhas do documento como insuficientes, por terem deixado os negros libertos "ao léu" e "sem plena cidadania". Por isso, movimentos negros valorizam mais 20 de novembro, como uma data de luta e resistência, por rememorar a morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do Brasil.
Nem mesmo outro marco histórico na sociedade brasileira, a Constituição de 1988, que criminalizou o racismo, assegurou o direito de posse de terra às comunidades quilombolas e deu origem à Fundação Cultural Palmares, trouxe a reparação necessária para os herdeiros de quem enfrentou os grilhões do sistema escravista. Ainda hoje, comenta a historiadora e escritora Larissa Moreira, a população negra amarga com a ausência ou a incompletude de políticas públicas que promovam o bem-estar social.
Universa apurou o investimento em políticas de combate ao racismo e de igualdade racial nos últimos anos e constatou que houve recuo de verbas aplicadas em ações que contemplassem os direitos da população negra. Programas específicos, conquistas da pressão de movimentos negros junto ao governo federal, também foram incorporados em outras ações mais gerais, "de direitos humanos".
"Patinamos nas políticas públicas de igualdade racial porque não há interesse de um Estado, construído e mantido pela mão de obra negra, em alterar esse quadro. Não dá para se manter sobre as mesmas estruturas e esperar que elas se transformem. Políticas públicas e reparatórias encontrarão sempre, na contramão, um movimento conservador para lhes barrar", explica Larissa.
A contaminação por Covid-19, pontuam as entrevistadas, em que o risco de morte de negros é 62% maior do que de brancos na cidade de São Paulo, por exemplo, reforça a manutenção das estruturas excludentes. "Os negros, mais uma vez, são mais atingidos. As mazelas causadas pela ausência de políticas públicas, de saneamento, de saúde básica, vieram à tona", avalia a pesquisadora e doutoranda em psicologia social pela PUC-SP, e professora no curso de pós-graduação Cultura, Educação e Relações Étnico-Raciais, da USP, Eliete Edwiges Barbosa.