ELE AINDA ESTÁ AQUI

Luciana Lima relembra momento em que perdeu o marido, Domingos Montagner. Mas garante: não há dor, só presença

Mariana Gonzalez De Universa Mariana Pekin/UOL

Tinha acabado de buscar meus filhos na escola. Viemos conversando no carro, ouvindo música, e vimos um ipê amarelo lindo no caminho. Parei para tirar foto e falei: "Preciso mandar para o seu pai".

Deixei os meninos em casa e voltei para o trabalho. Tudo normal —até que o telefone tocou.

Quando eu escutei o "alô" do Mário [Canivello, assessor de imprensa de Domingos], meu corpo inteiro gelou.

-"Você tem acesso ao Instagram?"
-"Tenho, mas o que está acontecendo?"

Ele me explicou que o Domingos tinha ido tomar banho no rio e desapareceu.

Já tive uma experiência de luto na minha família: em 1990, meu irmão de 13 anos faleceu. Eu tinha 17 e foi a mesma sensação: uma moleza no corpo.

A primeira coisa que pensei foi em ter meus filhos do meu lado.

Pedi para buscar os dois menores na escola, para evitar que ouvissem comentários na saída. O Leo [filho mais velho, então com 13 anos] estava sozinho em casa, com acesso à internet. Entrei, fui direto ao quarto dele e expliquei: "O papai sumiu no rio, mas ele sabe nadar, provavelmente está em algum lugar esperando o resgate".

Falei para ele o que eu queria acreditar. Até o último milésimo de segundo, fiquei pensando em todas as situações possíveis para acreditar que, no final, teria sido só um susto.

A notícia da morte veio às 18h30

Atendi o telefone, era a Mônica [Albuquerque, produtora da Globo]. A casa estava lotada de pessoas —amigos do circo, vizinhos mais próximos, um auê. No que ela falou "Lu", eu senti: "Você não tem uma boa notícia para mim, né?". E ela disse que não.

Ouvi muito serenamente, agradeci, desliguei o telefone e chorei muito.

Os meninos pequenos estavam na sala [Antonio, na época com 8 anos, e Dante, com 5]. Levei-os para o quarto do Leo, que já era um adolescente, gostava de ficar mais reservado, e falei que tinha uma notícia para dar.

Ele perguntou: "O papai conseguiu, mãe?". E eu disse que não. O Antonio foi o primeiro a verbalizar: "O papai morreu?".

A partir daí, a gente se grudou. Juntamos nossos quatro corpos e ficamos ainda mais unidos.

Passei semanas em estado de choque. Foi uma coisa muito surreal, muito brusca, pegou todo mundo de surpresa.

Tinha momentos em que eu chorava muito, desesperadamente, me derretia inteira, acabavam as minhas forças, não sentia o corpo. Aí eu me levantava e pensava: "Ok. Vamos lá".

A gente mantinha a nossa privacidade com bastante cuidado, principalmente por causa dos meninos. Eu ficava muito tempo sozinha com eles na nossa casa em Embu das Artes [a menos de 30 km da capital paulista], um lugar afastado, e só pensava besteira. "Vai que sequestram meus bichinhos".

Mesmo depois de começar a fazer sucesso, Domingos buscava os meninos na escola, ia às festas juninas, fazia tudo que a gente sempre fez. Se era para se expor, isso ficava restrito ao trabalho, ao personagem, não na hora que estava passeando com os filhos, almoçando em família.

E tudo isso —não me expor ou expor os meninos durante a carreira do Domingos— foi essencial para que a gente pudesse se preservar durante o luto. Só a família e as pessoas da escola sabiam que Leo, Antonio e Dante eram filhos do Domingos, mais ninguém. É assim até hoje.

Nos primeiros meses, as pessoas conversavam sobre o acidente do meu lado, na fila do banco, na padaria. E eu ali. Ninguém tinha ideia de quem eu era.

Minha mãe ficou comigo nos três primeiros meses, estava muito preocupada com como eu ia lidar com três crianças sozinha, em meio àquela comoção na televisão, boatos na imprensa depois da morte dele. Queria que eu voltasse para Natal [onde Luciana viveu até conhecer Domingos e onde a família dela vive até hoje]

Mas ela foi embora feliz, tranquila, porque viu o quanto eu estava amparada, tinha cuidado, afeto, dessa família que eu tenho aqui em São Paulo, que é tão presente quanto a minha família de sangue.

Deixei a espiritualidade falar comigo.

Sempre fui muito pragmática, resolvedora de coisas —praticamente mãe solo, tinha que administrar três filhos, um galã entrando e saindo de casa, um circo, uma companhia de teatro— mas fui me dando espaço, me deixando abrir para esse contato com o etéreo, com a fé, a crença.

Vamos numa reza? Vamos. Vamos numa palestra no centro espírita? Vamos. Templo budista? Vamos. Isso foi me nutrindo, me fortalecendo.

Camila Pitanga: ciúme e acolhimento

Houve muito burburinho por ele estar com a Camila [Pitanga] na hora do acidente, e eles ainda faziam par romântico na novela ["Velho Chico", exibida pela Globo em 2016]. Era um casal lindo, os dois nadando no rio, aquele amor impossível.

Claro que existia ciúme, principalmente quando ele começou a fazer novelas, mas a nossa troca era boa e nossos combinados eram muito claros, de muita confiança. Qualquer coisa que tivesse fugindo do script, que não estivesse bom para os dois, a gente conversava. Aprendi a lidar lidando.

Mas, depois que ele morreu, nós ficamos muito próximas, Camila e eu. Ela ficou muito impactada com o que aconteceu, eu a acolhi como pude e vice-versa.

Quase um conto de fadas

Domingos e eu tivemos uma história de ascensão muito bonita. Foi tudo lindo, quase um conto de fadas. A gente se conheceu, se apaixonou, teve um filho lindo, outro filho lindo, o circo dando certo, ele virou galã de TV. De repente, o acidente.

Considero um privilégio ter sido tão íntima e ter vivido uma história tão verdadeira com ele.

Nos encontramos em uma época em que eu fazia teatro amador em Natal. Meus amigos e eu estávamos buscando uma sede para um espaço cultural que idealizamos. Nessas investidas de revitalizar a região onde seria o nosso teatro, começamos a promover eventos gratuitos na rua. O Domingos estava passando na cidade com um grupo de teatro. Sabendo disso, promovemos um encontro com eles para oferecer oficinas de circo, de palhaço.

Eles ficariam 15 dias na cidade, e eu fui responsável por recepcioná-los no aeroporto —foi quando vi o Domingos pela primeira vez.

Segundo ele, foi paixão à primeira vista. Eu estava com a plaquinha na mão, cabelinho bem curto —depois, soube que era o corte que ele achava mais bonito nas mulheres e sempre me pedia para cortar de novo, mas não tinha coragem. A gente bateu o olho, e eu fiquei muito tímida, porque eram artistas de São Paulo.

Passei dias negando aquele sorriso dele, pensando: "Imagina, não vou nem dar bola, ele é mais velho, está aqui de passagem". Mas, no final, decidi ceder, e a gente começou a se conhecer melhor.

Era muito cartão telefônico —tenho dois cartões de quando ele viajou para Portugal e me ligava do telefone público. A gente também gostava muito de correspondência, fosse carta, cartão postal. E e-mail era ainda muito novo, a internet era discada.

Um ano depois, me mudei de Natal direto para Embu das Artes.

Ele está em qualquer lugar

Depois do acidente, olhei para os meninos e pensei: "Como é que eu vou fazer isso sozinha? Quanto de amor preciso para criar esses três?"

Sabia da importância do Domingos para os meninos e, enquanto a gente era uma dupla, eu achava fichinha. Agora, quando me vi Luciana, uma pessoa solo, levou um tempo para me sentir confiante, me enxergar inteira e capaz. Seis anos se passaram e, volta e meia, ainda dou uma titubeada.

Quando penso que eles viveram tão pouquinho com o Domingos... Queria que eles sugassem mais dessa referência paterna. O menor tinha 5 anos, não tem memória.

Domingos não chegou a morar nessa casa, mas escolhemos o lugar juntos, viemos aqui mais de uma vez, pensamos na reforma. E por ele não ter conhecido a casa como ela é hoje, queria ter um cantinho aqui onde a gente poderia ter uma conexão com ele. Mas a casa inteira tem isso. A presença dele é muito forte aqui.

Entendi que ele estaria em qualquer lugar, qualquer hora, qualquer momento. E isso foi uma espécie de cura, me ajudou a ressignificar a perda. Se a gente quiser, pode viver a vida inteira com ele do nosso lado, participando diretamente das coisas.

Isso aqui [cumbucas coloridas que estavam sobre mesa de jantar, onde Luciana recebeu Universa], por exemplo, ele trouxe da Turquia.

O Domingos viajava muito e sempre gostou de trazer regalos para mim e para os meninos. Não sei de onde ele trouxe essa xícara, por exemplo, pode ser que ele tenha comprado na loja de conveniência da estrada mas, depois de tudo o que aconteceu, tudo que ele me deu se torna caro, tem valor emocional.

Quando vem a saudade, aí sim vou para o meu quarto, choro, sinto falta do cheirinho, da voz, penso nele, vejo fotos, figurinos, fico lembrando. Mas, sempre que me lembro dele, é de uma forma muito leve, nunca de pesar. Eu não consigo mais chorar de dor, me emociono em outro lugar, de felicidade, alegria.

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