Refém de mim mesma

Viver com TOC foi "buraco fundo" para Luciana Vendramini. Ela relembra como sobreviveu ao transtorno

Mariana Gonzalez De Universa

*Aviso: o relato abaixo contém descrições de um quadro de distúrbio mental e pode ser sensível para algumas pessoas.

Eu chorava muito, tinha raiva de mim.

Estava havia horas lavando as mãos, me batia, me beliscava, dava socos na minha cabeça e falava: "Para de fazer isso". Mas eu ia e voltava. Lavei tanto que chegou a irritar a pele.

Sentia um medo gigante de que algo ruim pudesse acontecer a qualquer momento.

Cheguei a passar dez horas no banho —mais de uma vez—, porque tinha uma série de rituais: começava a esfregar do lado tal, lavava o cabelo diversas vezes seguidas, sempre da mesma forma, como se a água pudesse eliminar sensações ruins.

Às vezes, a energia caía, e eu continuava lá, na água gelada, brigando com os pensamentos: "Agora vou sair".

"Não, só mais um pouquinho."

Muitas vezes, pensava que tinha uma doença física. Algumas pessoas diziam que era espiritual, que eu estava com encosto, mas sabia que não era isso.

No auge da minha carreira na TV, estava refém do transtorno obsessivo-compulsivo, o TOC.

'Terapia para quê? Você é tão bonita'

Tinha 19 ou 20 anos quando comecei a notar os primeiros problemas relacionados à minha saúde mental. Tinha sensações de taquicardia, de morte iminente. Era uma coisa horrível, que me apavorava muito, mas que eu silenciei, achando que aquilo fazia parte da maturidade. Pensava: "A vida é dura, ser adulta é assim mesmo", e convivia com aquilo de uma forma muito sofrida.

Ninguém falava sobre saúde mental. Isso era um tabu, inclusive dentro da minha casa.

Só entendi que o que eu sentia tinha nome quando, um dia, um modelo da minha agência descreveu algumas sensações dele. Eu pensei: "Meu Deus, é isso que eu estou sentindo". Pouco tempo depois, ele me contou que tinha sido diagnosticado com síndrome do pânico.

Tinha começado a fazer terapia havia pouco tempo, e as pessoas me julgavam: 'Para quê? Você é tão bonita. Vai gastar dinheiro com isso?'

Para você ter uma ideia do tamanho do tabu, mesmo dentro do consultório eu tinha medo de falar [sobre as crises de pânico], de ouvir que precisava tomar remédio.

Mas, quando não se trata um problema de saúde mental, ele vai crescendo. E foi isso que aconteceu comigo. No começo, eu tinha gatilho de pânico uma vez por semana, depois virou todo dia. Até que isso começou a atrapalhar minha vida, porque eram várias vezes ao dia.

Comecei a sentir medos muito estranhos, como dormir no escuro. Só dormia quando clareava e tinha sonhos horríveis, ficava apavorada, com mais medo ainda.

Quando sentia pânico fora de casa, relacionava a sensação ao lugar. Comecei a evitar restaurantes, shows, casas das pessoas —coisas normais que eu fazia com 23, 24 anos. Nos relacionamentos era ainda mais complicado. Como ia explicar que não queria ir a determinado lugar? Aí vem a pior parte, que é ser julgada. "Não, você está maluca, tem algum problema", diziam.

'Em um mês, surgiram dez manias novas'

Do nada, vieram as manias.

Estava na janela de casa, no Rio, sem conseguir dormir. Até que me veio à cabeça, como se fosse uma ordem: "Só vou conseguir dormir depois que passarem três táxis amarelos". Foi assim mesmo, totalmente aleatório. Como se minha cabeça dissesse: "Ok, Luciana, você vai conseguir dormir de um jeito ou de outro". E funcionou.

Em um mês, surgiram umas dez manias novas. De repente, estava lavando a mão sem parar, demorando horas no banho.

No último dia das gravações de "O Rei do Gado" [novela exibida pela Globo em 1996], eu cheguei em casa e decidi pedalar na Lagoa [Rodrigo de Freitas, onde morava]. Mas andei 50 metros e travei, do nada. Fiquei ali parada, sentindo um medo generalizado, como se algo terrível fosse acontecer. Passei três horas no mesmo lugar.

Pedi o celular emprestado para algumas pessoas que passavam, e uma delas respondeu: "Tem um orelhão logo ali". E de fato tinha, mas não tinha visto, porque não conseguia sair do lugar. Até que decidi falar para uma mulher que eu estava passando mal. Ela me emprestou o celular, e eu consegui ligar para a Jô, que trabalhava na minha casa. Ela foi me buscar.

Usei a desculpa de que minha pressão tinha caído, mas não era isso. Sentia meu corpo mole, uma sensação de que eu tinha que ir para casa logo, correndo.

Comecei a ficar tão preocupada que pedi para a minha mãe, que mora em São Paulo, vir para o Rio de Janeiro ficar comigo. Ela não entendeu muito, coloquei a culpa na pressão baixa, de novo, mas, quando ela chegou, percebeu toda a sequência de manias que eu tinha desenvolvido.

Arrumava as gavetas metodicamente. Passava horas no banho. Tinha mania de lavar todas as coisas —roupa, por exemplo, tinha que ir imediatamente para a máquina, mesmo que estivesse limpa; estraguei várias por excesso de lavagem.

Quando finalmente fui ao psiquiatra, ouvi pela primeira vez a palavra TOC, mas fiquei com vergonha de perguntar ao médico o que era.

Saí de lá e fui direto para uma livraria procurar algo sobre o assunto, não achei absolutamente nada. Voltei ao médico, ele me explicou, e eu falei: "Nossa, é exatamente isso".

Não consegui tomar o remédio que o psiquiatra me receitou. Comprei, fiquei olhando para ele, lendo a bula, e não tomei, com medo de ter todos aqueles efeitos colaterais, ficar dopada, sem conseguir trabalhar.

'Perdi o controle da minha vida'

Mas a doença piorou muito.

Eu tinha perdido o controle da minha vida, estava num looping de manias que só Deus sabia quando ia parar. Em determinado momento, entendi que não poderia mais viver sozinha e decidi sair do Rio de Janeiro para morar com a minha irmã em São Paulo.

Foi a pior sensação da minha vida, me senti uma criança de novo, e questionava: 'Como cheguei a este ponto?'

Meus pais começaram a se revezar com a minha irmã para ficar comigo. Meus amigos estavam preocupados, me procurando, mas eu não atendia o telefone, não sabia o que dizer.

A televisão passou dois anos desligada em casa, porque eu não aguentava ver notícias ruins, entrava em pânico. Minha família só podia ver TV num quarto fechado, bem baixinho. Só soube do 11 de setembro um ano depois, tamanho o isolamento

Quando ficava sozinha em casa, não conseguia sair do quarto para nada. Cheguei a pesar 39 kg. Perdi o apetite, parei de comer, de menstruar, meu corpo parou.

Minha família chamou vários médicos, todos tentando me convencer a tomar o bendito remédio, mas eu resistia, até que decidiram me internar numa clínica. Minha irmã me levava para lá de manhã e me buscava de noite, só para dormir em casa. Passava o dia fazendo exercícios, caminhando no parque e tendo aulas de argila, de relaxamento.

Passei seis meses lá, melhorei e decidi sair —ainda sem tomar o remédio.

Tive um momento de alívio. Voltei a gravar algumas participações na TV, cheguei a planejar uma peça, mas, em dez dias, voltaram todas as limitações.

Voltei para um buraco ainda mais fundo.

'Vou chamar uma ambulância, senão você vai morrer'

Estava num ponto que nem roupa usava mais, porque, para escolher uma camiseta, colocava e tirava 100 vezes. Vivia só com um roupão por cima. Tinha ficado 11 dias sem comida, trancada num quarto escuro.

Até que meu pai, sem saber o que fazer, falou: 'Chega, vou chamar uma ambulância agora, senão você vai morrer'.

Na hora, vieram à cabeça aquelas cenas de filme, em que as pessoas são colocadas em uma camisa de força e levadas para aquelas clínicas horríveis. Entrei em pânico. Falei: "Fodeu". Na hora, aceitei beber uma água de coco —eu não ingeria mais nada— mas foi na base da ameaça.

Entendi que, se continuasse assim, ia morrer. E decidi tomar o remédio.

Fomos à farmácia a médica, minha mãe e eu, descalça e usando roupão. Minha médica comprou uma caixa de remédio, abriu na minha frente e me deu junto com uma dose de Rivotril —comprado com receita. Ela disse: "Vai te ajudar, confia".

Tomei sentada na calçada da farmácia e, dali a uns 20 minutos, comecei a sentir o efeito.

Minha respiração, que era sempre muito ofegante, e meu coração acelerado desaceleraram. Nunca vou esquecer aquela sensação. Consegui fazer uma respiração profunda pela primeira vez em anos.

Na hora que entrou com remédio, intensifiquei a terapia.

Em seis meses, eu já era outra pessoa.

'Foram cinco anos de trabalhos perdidos, mas foi o caminho da vida'

Depois de alguns anos afastada das gravações, fazendo uma ou outra aparição muito pontual na TV, me procuraram para fazer uma entrevista e perguntaram por que eu estava sumida. Na hora, pensei: "Gente, eu vou dizer o quê? Que eu estava no Tibet?".

Eu perdi tudo —trabalho, saúde, peso. A única coisa que eu tinha para contar era a verdade. E falei: 'Eu tive TOC'.

Teve uma repercussão muito grande porque, assim como eu, ninguém sabia muito bem o que era TOC.

A partir dali, a vida da minha mãe virou uma loucura. Encontraram o número dela na lista telefônica e não paravam de ligar pedindo ajuda, indicação de médicos. "Eu tenho isso, meu filho tem isso, meu marido em isso."

No trabalho, passei por muito perrengue de estigma e preconceito.

Sentia essa vibração nas pessoas: "Ah, ela vai dar trabalho". Só porque eu tinha falado publicamente sobre saúde mental. Mas eu nunca dei um piti na minha vida, nunca aumentei o tom de voz com ninguém. No trabalho, sou impecável. E já vi muita gente dando escândalo nos bastidores sem ter doença nenhuma.

Queria ter trabalhado mais naquela época —não chega a ser uma frustração, mas sinto que foram cinco anos perdidos profissionalmente.

Ao mesmo tempo, entendo que foi o caminho que a vida tinha que seguir. Não queria ter vivido nada disso, claro, mas aconteceu. Fazer o quê?

Tenho um livro pronto desde 2010 que fala sobre TOC da forma que eu quis muito encontrar lá atrás e não encontrei. Na época, não quis lançar porque tive medo de ficar estigmatizada.

Todo mundo só queria falar disso, ninguém queria saber o que eu estava fazendo —peça, série, novela. Isso me incomodava. Mas hoje entendo que, na verdade, existe uma demanda pelo assunto justamente porque quase ninguém fala. As pessoas querem ler, se identificar, entender o problema.

Hoje tomo uma dosagem mínima de remédio e faço acompanhamento com psiquiatra. Só. E vivo profundamente, porque foi nas coisas boas do dia a dia que eu encontrei vida de novo —um almoço com meus pais, por exemplo, poder sair sem medo, comer com prazer.

Desde 2003, na verdade, quando comecei a me tratar para valer, sou outra pessoa. Não entro em pânico, não sinto nada.

Se eu vejo um quadro torto, não vou lá mudar, não me afeta, não me dá gatilho. Assim como um pensamento ruim, uma sensação de ansiedade, que eu ainda tenho, claro, não me afetam, não me tiram dos compromissos. É impressionante a diferença.

Eu fui cruel comigo. O tabu, o estigma, me fizeram demorar muito para me tratar. Mas voltei a ser uma fortaleza.

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