Companheira de chapa

Estratégia de indicar mulheres como vice se torna mais comum nas eleições. Quem ganha com isso?

Matheus Pichonelli Colaboração para Universa

Mulher negra e filha de imigrantes, a senadora da Califórnia Kamala Harris se tornou uma arma poderosa do candidato democrata Joe Biden para bater Donald Trump na corrida presidencial dos Estados Unidos deste ano.

Na América do Sul, candidaturas encabeçadas por homens venceram as últimas eleições presidenciais na Argentina, no Uruguai, na Colômbia e no Peru com um trunfo em comum: eles tinham mulheres como parceiras de chapa.

No Brasil, as últimas eleições, que consagraram a chapa Bolsonaro-Mourão, indicam um território hostil às mulheres. Nada menos do que 26 dos 27 governadores eleitos em 2018 são homens —a exceção é Fátima Bezerra (PT-RN).

A foto oficial esconde um pequeno grande detalhe. Naquele ano, sete vice-governadoras foram eleitas: em Santa Catarina, Espírito Santo, Sergipe, Piauí, Paraíba, Pernambuco e Ceará. E, embora apenas Marina Silva (Rede) tenha encabeçado uma chapa, entre os dez principais candidatos a presidente, cinco tinham mulheres como postulantes a vice, entre elas Manuela D'Ávila (PCdoB), que chegou ao segundo turno com Fernando Haddad (PT).

Nas eleições municipais deste ano, a fórmula de trazer uma vice como companheira de chapa foi replicada em disputas diversas, como se vê em São Paulo, à esquerda, com a dupla Guilherme Boulos e Luiza Erundina, ambos do PSOL, e à direita, com Arthur do Val e Adelaide de Oliveira (Patriota).

No Brasil as mulheres são maioria do eleitorado (cerca de 52%), mas, segundo o Tribunal Superior Eleitoral, nas últimas eleições municipais, em 2016, eram apenas 13% entre os candidatos a prefeito e 17,6%, a vice. Para estas eleições, o crescimento da representatividade delas no posto de vice foi expressivo: passaram de 27,8%, em 2016, para 41,7%, em 2020, entre as chapas candidatas às prefeituras das capitais.

A estratégia política de indicar mulheres como vices de chapas para disputa de cargos majoritários tem se tornado cada vez mais comum, e não apenas no Brasil, segundo especialistas em gênero e política ouvidas por Universa.

Mas quem ganha com isso? As mulheres, que passam a ocupar espaços em um ambiente historicamente masculinizado, ou os homens, que conseguem atrair votos femininos sem abrir mão do protagonismo das chapas?

O peso das eleições nos EUA

Segundo Joanna Burigo, mestre em gênero, mídia e cultura pela London School of Economics, a questão não tem uma resposta simples. Ela lembra que a configuração do quadro político no cenário internacional, é uma resposta à ascensão de figuras como Donald Trump.

"Não me surpreende que, para entrar em disputa política com um homem branco, [o cabeça de chapa] teria que ser outro homem branco. Qualquer organização partidária que esteja pensando em suas chapas vai ter que considerar a identidade, mas esse debate talvez não esteja tão amplo como a gente gostaria que estivesse."

Para ela, por mais que exista no Partido Democrata algum elemento performático ou um simples aceno aos debates contemporâneos, "de uma maneira ou de outra temos como candidata a vice-presidente dos EUA uma mulher negra, filha de imigrantes, que captura novamente um elemento da conversa política que foi suprimido com o fim do período Obama, sobretudo com o retorno da política supremacista branca patriarcal representada por Trump".

Mais que coadjuvantes: vices que ultrapassaram o papel decorativo

  • Kamala Harris

    A senadora pela Califórnia será peça-chave na estratégia do democrata Joe Biden para enfrentar Donald Trump na disputa pela Casa Branca. Sua trajetória política fala por si. Primeira mulher a ocupar o posto de procuradora-geral em seu estado, a candidata de origem indiana e afro-americana deve atrair os votos dos eleitores negros, imigrantes e femininos dos EUA, hoje avesssos ao atual presidente

  • Luciana Santos

    Primeira mulher a ser eleita vice-governadora em Pernambuco, em 2018, é formada em engenharia elétrica pela UFPE e se destacou no movimento estudantil antes de ser deputada estadual e prefeita em Olinda por dois mandatos. Foi secretária de Ciência e Tecnologia do governo Eduardo Campos e também deputada federal. Segundo Ingrid Farias, mesmo sendo vice, ela não foi apagada durante o atual mandato em razão de sua trajetória e visibilidade como mulher negra. Em muitos momentos, suas falas e posições tiveram mais repercussão do que as do próprio governador, Paulo Câmara

  • Benedita da Silva

    Primeira senadora negra do Brasil, a ex-servidora pública, auxiliar de enfermagem e assistente social foi eleita vice-governadora do Rio de Janeiro em 1998 na chapa de Anthony Garotinho, a quem sucedeu e depois rompeu após o ex-aliado deixar o posto para disputar a Presidência em 2002 em meio a uma grave crise fiscal no estado

  • Cristina Kirchner

    A ex-primeira-dama e ex-presidente da Argentina foi fiadora e peça-chave na eleição do então pouco conhecido presidente Alberto Fernández em 2019, tornando-se a primeira e única mulher argentina a ser eleita para todos os cargos federais de seu país, entre eles os de deputada e senadora

  • Marina Silva

    Terceira colocada na disputa presidencial de 2010, a ex-senadora surpreendeu ao se filiar ao PSB e aceitar se candidatar a vice na chapa de Eduardo Campos quatro anos depois, assumindo protagonismo no debate, sobretudo nos temas relacionados ao meio ambiente, naquelas eleições. Com a morte de Campos em um acidente aéreo, ela assumiu a candidatura a presidente e chegou a liderar as simulações de segundo turno da corrida eleitoral, mas terminou em terceiro lugar

  • Daniela Reineher

    Pouco conhecida no cenário político, foi eleita vice-governadora de Santa Catarina na onda que levou Jair Bolsonaro ao Planalto. O líder da chapa, Carlos Moisés (PSL), hoje rompido com o presidente, é alvo de um processo de impeachment, o que colocou a possível sucessora no centro das atenções. O governo federal chegou a se articular para se livrar de Moisés e preservar a aliada, que espera a criação da nova sigla de Bolsonaro para se filiar. A estratégia, porém, fracassou, e ela é hoje alvo do mesmo processo que pesa sobre o governador

  • Manuela D'Ávila

    Com Lula fora da disputa, a ex-deputada pelo PCdoB assumiu protagonismo raro na campanha de Fernando Haddad à Presidência em 2018. Foi figura presente nos atos de rua e nas redes e pautou o debate com inúmeras entrevistas à imprensa. Em 2020, ela é uma das favoritas na disputa pela prefeitura de Porto Alegre, tendo um ex-ministro e ex-candidato a governador, Miguel Rosseto, como vice

Um aceno mais do que um avanço

A escolha de Kamala, de acordo com Joanna, pode ser interpretada como um aceno do Partido Democrata para os debates da contemporaneidade conforme eles estão se apresentando nos Estados Unidos pós-George Floyd e o movimento Black Lives Matter.

"Se o Partido Democrata não tivesse na chapa principal alguém representando o movimento negro, seria um tiro no pé. Mas entendo que, sendo [os partidos americanos] estruturas políticas superconservadoras, seria muito difícil fazer uma chapa que não tivesse um homem branco. Se eles tivessem uma candidatura totalmente diversa, talvez não tivessem entrada no eleitorado."

Joanna afirma que adoraria ver uma chapa mulher-mulher, mas que "a representatividade política é um caminho longo a ser seguido, e essa não é a norma". Segundo ela, ainda é motivo de interesse, por parte dos analistas, quando um homem candidato traz uma mulher para ser vice em sua chapa. Quando a mulher é a candidata principal, o interesse é ainda maior por ser mais raro.

Doutoranda em ciência política e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Beatriz Sanchez afirma que, do ponto de vista da representação política feminina, é melhor ter uma mulher negra como vice do que dois homens brancos na mesma chapa.

Mas pondera: as mulheres vices continuam sendo coadjuvantes, e o papel central de decisão segue sendo masculino. "Essa atitude parece ser mais um aceno para o eleitorado feminino e negro do que um avanço concreto no sentido da inclusão política feminina. Na prática, as estruturas masculinas de poder não estão sendo alteradas."

Para a pesquisadora de gênero, raça e relações políticas do Observatório Feminista do Nordeste Ingrid Farias, não há dúvidas de que Kamala provocará um impacto político no processo de campanha e no estabelecimento de prioridades e estratégias de ação. "Tem um benefício para os dois lados. Mas acredito que sempre saem ganhando as pessoas que estão no poder há muitos anos, que são os homens brancos."

Com a palavra: as vices

É possível ser mulher e protagonista em uma chapa ou eventual governo liderado por um homem? Duas candidatas a vice-prefeita nas eleições de 2020, uma à direita do campo político e outra à esquerda, garantem que sim.

Formada em letras e pós-graduada em administração econômica, a corretora de imóveis Adelaide de Oliveira conta que a composição com Arthur do Val, candidato do Patriota em São Paulo, conhecido como Mamãe Falei, aconteceu naturalmente em razão do alinhamento de ideias, entre as quais a rejeição do fundo partidário. Ela é ativista e ex-líder do Vem pra Rua, e ele, militante do MBL (Movimento Brasil Livre) —movimentos que ganharam musculatura durante os protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff.

Adelaide, que se declara "liberal na economia e conservadora nos costumes", diz que mantém um diálogo constante com o companheiro de chapa. "Discutimos juntos propostas sobre urbanismo e revitalização do centro. Morei a vida toda na periferia e sei o que é andar três horas de trânsito sem ter onde sentar nem quando estava grávida. Também já morei ao lado do metrô Santa Cecília e conheço a realidade dura dos moradores de rua no centro."

Caso sejam eleitos, ela afirma que terá muita coisa a fazer como vice-prefeita. "Decoração não vai ser uma delas", diz. "Tenho personalidade. Não aceitaria ser vice de enfeite. Se fosse assim, era melhor ele ter chamado alguém mais nova", brinca a candidata às vésperas de completar 60 anos.

Na outra ponta, em Pelotas (RS), Iya Sandrali, psicóloga com atuação no movimento de mulheres negras, será candidata a vice na chapa de Ivan Duarte, veterano vereador do município, para a prefeitura da cidade gaúcha. Ambos são filiados ao PT.

A composição, segundo ela, foi resultado de um longo processo, "construído desde sempre, mas mais intensamente a partir de 2018", quando se candidatou, sem se eleger, a deputada estadual. Ela era a única mulher negra do partido em sua cidade na disputa.

A princípio, em 2020, Iya seria candidata a vereadora. Mas, dentro do partido, surgiu a discussão de que era importante que uma mulher compusesse a chapa para a disputa majoritária. Aclamada por unanimidade, ela topou o desafio. "Houve muito protagonismo. Foi uma decisão coletiva. Somos, de fato, uma dupla", diz a candidata, que levou à chapa as questões da luta antirracista, feminista e inclusiva.

"Eu participei de todo o processo. Isso está evidente em todo o material confeccionado. Está de acordo com o que eu acredito e com o que ele acredita."
A candidata afirma que, apesar da parceria, sabe que será o alvo principal dos ataques de adversários, que já começaram.

Contra isso ela tem uma estratégia. "Precisamos ter radicalidade, mas uma radicalidade amorosa, de respeito incondicional mesmo no embate. Jamais vamos usar a mesma ferramenta dos homens", diz.

As duas candidatas ouvidas por Universa concordam, porém, que o protagonismo reivindicado por elas nas chapas é ainda exceção, e não regra, na maioria das disputas Brasil afora.

Brasil e o problema da representatividade

As especialistas concordam que, no Brasil ou nos Estados Unidos, só a presença de mulheres como vices nas chapas majoritárias não vai, em si, alterar o quadro de representatividade política.

A pouca presença de mulheres nas cabeças de chapa das eleições, segundo Beatriz Sanchez, é reflexo do machismo institucional e tem efeitos negativos para a conquista da igualdade de gênero. "Eu destacaria dois principais. O primeiro é que as perspectivas sociais de metade da população deixam de ser representadas, o que faz com que a formulação de políticas públicas parta de um lugar específico que, no caso brasileiro, é branco, masculino, heterossexual e de classes mais privilegiadas. Todos os grupos que não se enquadram nesse perfil acabam sendo silenciados e excluídos."

O segundo efeito negativo, diz ela, tem relação com o que os movimentos têm chamado de representatividade. "Se as mulheres não ocupam os espaços de poder, a ideia que se transmite para a população é que elas não foram feitas para a política. Por outro lado, quando mais mulheres ocupam a política, outras mulheres e meninas passam a acreditar que aquele lugar também pode ser ocupado por elas."

Segundo a ONU Mulheres, o Brasil é o terceiro pior país entre 11 nações avaliadas, em questões relacionadas à paridade de gênero na política e à representação feminina nos Poderes. Em um índice de 0 a 100, o país atinge 39,5 pontos —o México, país mais bem colocado entre os avaliados, tem 66,2 pontos.

Quem ganha é o homem branco

"Se houvesse mais mulheres nas cabeças de chapa, a gente poderia avançar no que se compreende também como estética política. Quando as mulheres veem uma estética política feminina naqueles espaços, começam a compreender que existe a possibilidade de que aquela política possa também ser conduzida e pensada pelas mulheres", afirma Ingrid Farias.

Ela lembra que, nas últimas eleições, muitas mulheres foram lançadas como candidatas laranjas para preencher a cota de 30% de gênero determinada pelo TSE e foram depois abandonadas no processo sem apoio sequer para prestar contas.

"Esse caminho percorrido pela necessidade de ampliar a participação da mulher na política por causa das cotas nas chapas faz com que, muitas vezes, essas mulheres sejam utilizadas só como massa de manobra. A presença das mulheres faz uma diferença enorme no processo", diz, lembrando que países administrados por mulheres, como a Nova Zelândia, foram extremamente bem-sucedidos na condução da pandemia do coronavírus.

Ingrid, que é pernambucana, recorda também que, em seu estado, o atual governador, Paulo Câmara, escolheu uma mulher negra, Luciana Santos, como candidata a vice já em 2014 —e obteve dois mandatos consecutivos. "Ela já tinha uma trajetória, uma atuação, um posicionamento político que não permitiram que ela ficasse apagada do processo. Mas quem ganha com essa presença é ainda o governador, que é um homem branco."

Pelo fim das laranjas

Nas eleições municipais deste ano, Joanna Burigo diz ter observado muito mais mulheres presentes num momento de disputa para decidir quem vai compor as chapas.

"Estas mulheres estão se arriscando na vida política, se colocando na posição de fazer esse embate em um momento tão duro do quadro político ocidental. Vi as mulheres entrando com unhas e dentes nestas pré-disputas, já dentro dos partidos, para poderem convencer os quadros partidários da importância da ampliação da representatividade de mulheres", diz.

"E também prevejo um aumento no número de candidaturas não laranjas, de mulheres efetivamente dedicadas ao serviço público a partir de cargos eleitorais. Conheço pessoalmente uma cacetada de mulheres que vão participar efetivamente do processo eleitoral, mulheres trans inclusive."

Você não pode ser o que você não pode ver

As pesquisadoras ouvidas por Universa concordam que, quanto mais mulheres protagonizarem as disputas majoritárias, mais chances de ampliar a representação também nos legislativos —tema do recém-lançado documentário "Sementes", sobre a luta de mulheres negras para ocupar esses espaços após a morte da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro.

"Tem essa frase clássica dos slogans feministas: 'Você não pode ser o que você não pode ver'. Quanto mais mulheres estiverem presentes na discussão política, mais isso vai encorajar outras mulheres. A gente sabe que [a sub-representação] não é falta de querer, é falta de estrutura, inclusive familiar. É raro uma mulher que consegue fazer reuniões na segunda-feira às 23h, quando tem três filhos para fazer tarefa. A presença de mulheres na cabeça de chapa encoraja as mulheres a tomarem outro rumo político", diz Joanna.

"As mulheres estão se dando conta de que ou a gente disputa esse espaço, ou a gente vai ser atropelado por ele."

Beatriz Sanchez lembra que o Brasil ocupa atualmente a 132ª colocação no ranking de mulheres nos Parlamentos, segundo a Inter-Parliamentary Union. Para ela, a eleição, em 2010, de uma mulher para a Presidência foi muito pouco num país onde apenas 15% das cadeiras do Congresso são ocupadas por mulheres.

"Esse fenômeno de colocar mulheres como vice de chapas não altera a situação gravíssima de sub-representação feminina na nossa política institucional."

Com a eleição de um governo de extrema direita e o consequente fortalecimento de pautas conservadoras, afirma a pesquisadora, a situação fica ainda mais complicada. "Os pequenos avanços que foram conquistados ao longo dos últimos anos, em termos de igualdade de gênero e racial, estão sendo seriamente ameaçados nesse momento. Por isso, é muito importante, ainda mais nesse momento, que nessas eleições votemos em mulheres sensíveis às pautas feministas e antirracistas."

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