Mãe em tempos de pandemia

Quatro mulheres falam da sua vida e de seus filhos após a Covid-19

Helaine Martins Colaboração com Universa

Elas são maioria entre chefes de família nos lares brasileiros, lideram os índices de microempreendedoras e trabalhadoras informais e são boa parte das mulheres que dedicam suas vidas a atividades de cuidados não remuneradas no mundo. Ser mãe é e sempre foi um grande desafio. E ele se tornou ainda maior quando, há dois meses, tantas mães tiveram suas vidas atropeladas por um mundo em uma outra dinâmica: o da pandemia do novo coronavírus, segundo o que mostra o relatório "Mulheres no centro da luta contra a crise Covid-19", divulgado no final de março pela ONU Mulheres

Apesar da necessidade de isolamento e distanciamento social, há as que correm riscos diários se expondo nas atividades de linha de frente contra a pandemia. As que viram seus planos de futuro serem afetados pelo medo. Outras vivem um malabarismo para trabalhar, estudar, cuidar dos filhos e das atividades domésticas. E também aquelas que sofreram perdas que vão muito além de suas rotinas. Em meio a experiências tão diferentes, elas são unânimes: é inegável que sofreram mudanças profundas em suas vidas - intercaladas com ondas de culpa, estresse ou resignação.

"O que me alivia é que a Stella tem se mostrado empática. Ela me disse estes dias: 'sinto a sua falta, mamãe', antes de dormir. Mas me disse com um sorriso no rosto, fazendo coração com as mãozinhas", conta a médica intensivista Fernanda Gulinelli, de São Paulo, em um breve intervalo de seus plantões diários de 12 horas em uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva), onde atende pacientes com Covid-19.

Às vésperas de um dia das mães tão atípico, ao lado de Fernanda, as mães Andressa, Vera e Thaís contaram a Universa o que aconteceu na vida delas depois que o mundo foi surpreendido por uma pandemia e virou de cabeça para baixo.

Na hospital, 12 horas por dia

"Todos os dias, chego em casa do trabalho, entro pela porta lateral já tirando as roupas e o sapato e vou direto para o banho, sem direito nem a um beijinho de 'oi' na minha filha. Às vezes até consigo brincar um pouco depois, mas quase sempre o cansaço me vence e delego os cuidados dela para a avó, que é quem tem feito o papel de mãe da Stella nessa quarentena. Antes, eu conseguia parar durante o expediente e ligar por videochamada para saber como tinha sido o dia. Agora já não consigo mais. Sou médica infectologista e trabalho em dois hospitais do SUS como intensivista. Durante a pandemia, faço plantões de cerca de 12h por dia, com apenas um fim de semana de folga por mês. Não sei quantos pacientes já tratei, mas de 30 a 40% dos que vão para a UTI com Covid-19 acabam falecendo. Foram muitas perdas. Fica difícil estimar em números. Stella entende bem o que está acontecendo. Expliquei que eu e o pai dela, que também é médico, estamos lutando contra um vírus. Mandei para ela uma foto minha vestida de azul e com máscara e disse que era minha roupa de super-heroína. Desde então ela sempre me pergunta quantos vírus destruí naquele dia. Sinto uma enorme culpa por não dar atenção a ela, por estar tão exausta a ponto de não conseguir brincar mais, triste por perder este tempo que não vai ser recuperado. Mas, mesmo com cansaço, com tantas perdas, com a distância dela, está valendo a pena. Se naquele leito de UTI estivesse minha filha, eu gostaria que fizessem o melhor possível por ela."

Mandei para ela uma foto minha vestida de azul e com máscara e disse que era minha roupa de super-heroína

Fernanda Gulinelli, 40 anos, médica e mãe de Stella, de 4 anos, de São Paulo (SP)

Esperando Erick

"Estava tudo planejado. Desde setembro do ano passado, quando descobri aos quatro meses que estava grávida, pensei em cada detalhe de como Erick viria ao mundo. Assim que eu entrasse em trabalho de parto, a minha doula viria para minha casa para me acompanhar nos exercícios de alívio das contrações e de dilatação. Quando eu estivesse pronta, iríamos para o hospital com o meu marido e, lá, encontraríamos os fotógrafos que iriam registrar o nascimento do meu primeiro filho. Mas quando o coronavírus chegou ao Brasil e em março foi decretada a quarentena, foi um balde de água fria. Uma mistura de medo e frustração. Cogitei o parto domiciliar, até procurei por informações, mas o preço é muito alto. Eu não poderia pagar. Mudei de hospital, porque o que eu havia escolhido inicialmente não deixa entrar nenhum acompanhante na sala do parto. Por conta dos riscos de contaminação, tive que abrir mão da minha rede de apoio e acolhimento. Apenas meu marido poderá entrar na sala na hora do parto. Está sendo muito difícil aceitar todas essas mudanças justamente no período em que estou mais vulnerável. Estou com medo porque, na reta final da gestação, não posso faltar às consultas do pré-natal. O chá de bebê teve que ser cancelado, o enxoval foi comprado pela internet, o acompanhamento com a doula agora é só virtual e o Erick, primeiro neto da família, só poderá conhecer parentes e amigos por videochamada. Para piorar, o meu marido, que continua trabalhando fora, talvez nem possa pegar o filho no colo. Mas tudo acaba sendo uma detalhe perto de realizar o sonho de ser mãe."

Meu marido continua trabalhando. Talvez ele nem possa pegar o filho no colo

Andressa Eliton, 21 anos, cabeleireira e mãe do Erick, de Alvorada (RS)

"Neste exato momento estou trabalhando em casa, com meu companheiro com sintomas de Covid-19 isolado no quarto e meus filhos pulando em um colchão na sala para eu conseguir finalizar as tarefas, como lavar a louça empilhada na pia. Sou ativista social, estou morando com a família em São Paulo a trabalho e, conforme planejado, voltaria para o Rio de Janeiro em abril. Mas a pandemia chegou, a quarentena foi anunciada e ficaremos aqui até tudo isso passar. Essa experiência de ser mãe em meio a pandemia tem sido um desafio diário de lidar com as nossas emoções em família, com as necessidades de cada um, de como se adaptar ou romper de vez com a rotina, ensinar os meninos a importância de estarmos isolados e fazer com que, do jeito deles, entendam o tempo que estamos vivendo. A preguiça chegou com tudo também, com os horários mais relaxados para eles tudo é motivo de 'mais cinco minutinhos' ou de deixar para depois. Como tudo é novo tento não exigir muito. Estamos aprendendo mais coisas juntos sobre nós, sobre a nossa casa e sobre o mundo. E tenho procurado aproveitar bastante. Adoramos ficar juntos. Se antes não tínhamos muito tempo para isso agora está sobrando e o grude é certo. Acredito que maternar é repensar quem a gente é o tempo todo. E nesse período tenho visto e revisto bastante a maneira como oriento meus meninos a se relacionarem com o mundo lá fora, porque mesmo não sabendo quando, um dia vamos voltar para ele. E meus filhos continuarão sendo e crescendo como meninos pretos em uma realidade extremamente desigual. Sigo preocupada em garantir que eles estejam vivos no futuro, independente de como ele seja."

A experiência de ser mãe em meio a pandemia tem sido um desafio diário

Thaís Ferreira, 32 anos, ativista social e mãe do Athos e João, de 6 e 3 anos, do Rio de Janeiro (RJ)

Despedida sem abraço

"'Aqui é o nosso ambiente de paz'. Liri sempre dizia isso se referindo a nossa casa. Éramos eu, ela, a irmã Ligiane e a filha, Luísa, de 14 anos. Eu fazia questão de acordar cedo todos os dias e, enquanto ela tomava café e se arrumava para o trabalho, eu fazia a marmita dela e abria o portão para dar bom dia quando saísse. Um dia, na volta para casa, ela se sentiu mal e precisou ser hospitalizada. Os médicos diagnosticaram primeiramente uma pneumonia viral, mas ela só piorava e precisou ser intubada. Fizeram, então, o teste para Covid-19 e Liriane foi testada positivo. O quadro se agravou, ela teve problemas renais e precisou fazer até hemodiálise. Foram 35 dias lutando pela vida, 29 em coma induzido. Quando acordou, pediu para a enfermeira fazer uma chamada de vídeo para mim. Dizia que estava com muito medo, que queria voltar para casa. Eu, sem perder a esperança nem por um minuto, dizia a ela que ia ficar tudo bem. Eu tinha certeza que minha filha ia voltar para casa. Mas Liri não voltou. No dia 30 de abril, recebi um telefonema dizendo para eu ir ao hospital. Quando cheguei, a enfermeira que cuidou dela me abraçou forte e eu, sem querer acreditar, repetia que minha filha estava viva. Ainda não acredito. A todo momento parece que a minha marrentinha vai chegar e me dar um abraço. Não pude dar um beijo de despedida e isso me causa uma dor que não sei nem explicar. Mas, enquanto eu viver, ela vai fazer parte de mim, vai estar na minha mente e no meu coração."

*O ensaio fotográfico foi feito à distância, por meio de videochamadas.

Eu tinha certeza de que minha filha ia voltar pra casa. Mas ela não voltou

Vera Maria dos Santos, 57 anos, mãe de Liriane, de 34 anos, de Mauá (SP)

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