Mães possíveis

Com as mulheres mais sobrecarregadas do que nunca, viver uma maternidade com menos culpas se tornou urgente

Adriana Küchler Colaboração para Universa

Estresse, cansaço, sobrecarga, ansiedade. Cobrança, culpa, frustração. Sobrevivência. Palavras como essas se repetiram à exaustão (outra palavra recorrente) nas conversas com as mães que participam desta reportagem. Depois de um ano de pandemia, a jornada contínua pesa ainda mais. O looping sem fim de home office, homeschooling, afazeres domésticos e cuidados com as crianças que vêm acumulando, sem rede de apoio, durante a pandemia de covid-19.

Um estudo focado em mães brasileiras divulgado pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul em fevereiro desse ano mostra que 83% delas se sentiram mais sobrecarregadas por cuidar dos filhos durante a pandemia. Além disso, 25% apresentaram sintomas de depressão, 26% de ansiedade e 22% de estresse.

"Mulheres já são mais propensas a ansiedade e depressão. Mas, a partir desses resultados, podemos refletir o quanto a soma de papéis impactou de forma negativa na saúde mental das mães", diz Tatiana Carvalho Martins, coordenadora do estudo, que também concilia o trabalho remoto com os cuidados da filha de três anos.

Historicamente, as mulheres nunca estiveram tão sobrecarregadas, diz a filósofa e feminista italiana Silvia Federici que despertou para "a luta invisível das mulheres", seu tema de estudo, observando a própria mãe, uma dona de casa. "Ela dizia o tempo todo: 'Meu trabalho não é valorizado'. Meu plano era não ter que fazer nenhum trabalho doméstico na vida. Esse foi um dos motivos para eu não ter filhos", diz a escritora em entrevista a Universa.

O conhecido desequilíbrio da balança na divisão de tarefas da casa e no cuidado com os filhos desabou com tudo para o lado delas durante a pandemia: mais da metade das brasileiras ficou de fora do mercado de trabalho, gerando um retrocesso de décadas. A história se repete pelo mundo. Nos Estados Unidos, cerca de 80% dos adultos que pararam de trabalhar porque tinham de cuidar dos filhos eram mulheres. No Reino Unido, um terço das mães diz estar "no limite".

Sem rede de apoio nem privacidade

"Depois dos profissionais de saúde que estão na linha de frente, as mães de crianças pequenas talvez sejam as mais vulneráveis em termos de saúde mental —isso quando não estão também em vulnerabilidade social", diz a psicóloga e professora da The School of Life Desirée Cassado.

"A pandemia roubou o suporte e a privacidade das mulheres. Quando a gente fala em autocuidado para as mães hoje, a gente está falando de acionar uma rede de apoio pra que elas possam ter espaço e tempo de descanso. A mãe cuida de todo mundo, mas quem cuida dela?", questiona a psicóloga, que colocou uma placa na porta de seu consultório com os dizeres "fale com seu pai", direcionada ao filho de 11 anos.

Mas, assim como cansaço e culpa, amor e paciência também são palavras onipresentes no vocabulário das mães. Como retribuir um pouco dessa entrega, e não só no Dia das Mães? Um jeito é chamar pais, escolas e sociedade a assumirem sua responsabilidade no cuidado com as crianças, diz Desirée. "Ter filhos não é um projeto independente. É um projeto social, que deve envolver muita gente."

Diminuir as auto cobranças e os ideais inalcançáveis de perfeição que insistem em perseguir as mães pode ser outra forma de dar um afago a essas mulheres, que fazem o seu melhor. Conheça Luiza, Cris, Marcela, Mel, Mariana e Aline. Elas não são mães perfeitas - afinal, quem é? - mas estão tentando encarar a maternidade com menos culpa, um caminho mais possível pra tempos tão difíceis.

"Não quero sentir culpa por trabalhar"

Acostumada a lidar com políticos e seus assessores, Luiza Corrêa conta que, no começo da pandemia, via muita cara feia para a presença de seu filho em reuniões virtuais. "Tinha gente que se incomodava e falava, de um jeito grosseiro: 'Quer marcar pra depois?' Mas não tem depois. A criança não vai sumir", diz.

Mãe solo de Renato, 3, ela trabalha como coordenadora de advocacy no Instituto Rodrigo Mendes, ONG que defende a inclusão de pessoas com deficiência em escolas comuns. A essa altura do confinamento, ela diz, as pessoas já entendem melhor a presença de crianças. "Renato participa bastante. Ultimamente, está com a mania de rugir nas reuniões."

Luiza quer que o filho saiba que não trabalha só pra sustentá-lo, mas também porque gosta. "Não quero sentir culpa por trabalhar." Para sobreviver ao período de estresse máximo, afrouxou muitas regras do período pré-pandêmico. "Cedi tudo. Fiquei mais permissiva mesmo." Renato, que não tinha conhecido açúcar e telas até os dois anos, hoje come chocolate e assiste à Patrulha Canina. "Eu sei o que é melhor pra ele, claro, tenho limites, mas algumas batalhas eu não tenho forças pra comprar."

Ela, que pulou fora de um relacionamento disfuncional em meio à quarentena, diz que, se por um lado, não tem com quem revezar as tarefas, por outro, sem a presença do marido, sua carga de afazeres domésticos diminuiu: "É menos louça suja, menos roupa pra lavar, menos bagunça..."

Depois de ver o filho ficar quase deprimido, enquanto ela trabalhava loucamente, e cansada de ir ao banheiro de porta aberta, Luiza relaxou um pouco o isolamento e tomou coragem pra pedir ajuda de pessoas próximas. "Parece um contrassenso em meio à pandemia, mas formei minha aldeia particular. Sendo mãe solo, foi necessário pra minha sobrevivência. E pra dele."

Mas ressalta que a sociedade, como um todo, vem falhando em olhar e amparar as mães. "Tem muita gente apelando pra creches irregulares, deixando com a vó, com pessoas de risco, pra trabalhar, porque não tem opção. Sinto que o sistema político e social é de completo abandono para as mães."

Luiza, que faz posts de acolhimento e reflexões sobre a maternidade real em seu perfil no Instagram, diz que é hora de as mães pegarem leve consigo mesmas. "A gente tá em guerra com vários inimigos. Não fique se alimentando de culpa."

"Se hoje tiver que comer miojo, vai comer miojo. E tá tudo bem. A gente não tá num contexto tranquilo de dia a dia. A gente tá sobrevivendo."

Luiza Corrêa, mãe de Renato, de 3 anos

"Chorei dizendo que eu era uma péssima mãe e meu filho me consolou"

Cris Guterres realizou dois sonhos durante a pandemia: virou mãe e começou a trabalhar na televisão. Ainda assim, não escapou dos perrengues da crise atual — a colunista de Universa se viu obrigada a fechar seu restaurante e enfrentou dificuldades para lidar com as questões de disciplina do filho recém-adotado, Rafael, de 16 anos.

"Comecei a ter crises de ansiedade, gritava 'não aguento mais, eu vou ficar louca'", diz a apresentadora do programa "Estação Livre", da TV Cultura. Em duas dessas ocasiões, a solução foi escapar. Numa delas, foi parar num lugar inusitado. "Passei o dia inteiro no motel, sozinha, na banheira de hidromassagem, linda e bela. Desliguei o celular por 12 horas e falei: 'Se for urgente, vocês pedem pra outra pessoa resolver.' Voltei revigorada."

Em casa, Cris suou para criar uma rotina na quarentena com o filho, que nunca teve horário pra comer ou dormir —mas sempre teve liberdade de ir e vir. Tinha medo do que seria um adolescente acostumado a ser independente trancado e entediado dentro de casa. Cris, então, foi cedendo em algumas regras, liberando o encontro com alguns amigos e mais horas no computador. Mas chegou a levar bronca da professora porque o filho não estava fazendo as lições de casa. "Um dia eu disse: 'Chega, não aguento mais'. O Rafael precisa de mais tempo para aprender as coisas. Não dá pra cobrar o tempo todo. E ela entendeu."

Em outro momento sensível, numa discussão banal sobre deixar Rafael ir ou não à casa de um amigo, Cris duvidou das suas habilidades de mãe. Ela não aguentava mais ter de tomar decisões. "Eu chorava desesperadamente, como uma criança, dizendo que eu era uma péssima mãe."E era Rafa que a consolava. "Ele me abraçava, dizendo que eu era uma ótima mãe e que nem queria mais sair."

Vivendo a nova experiência da maternidade em meio à pandemia, Cris diz que acumulou mais culpa, cobrança e autocrítica. Para compensar toda a sobrecarga, montou uma rede de apoio alternativa, composta por uma doula de adoção, sua advogada e um grupo virtual com outros pais adotivos.

"Ser mãe é uma profissão muito solitária, mesmo quando se tem um companheiro. A gente é muito julgada. Mas não tenha vergonha de pedir ajuda. Não carregue essa barra sozinha."

Cris Guterres, mãe de Rafael, de 16 anos.

"Essa é a rotina que está dando pra fazer e fim"

Mães dos gêmeos Bernardo e Iolanda, de 2 anos e sete meses, Marcela Tiboni e Melanie Graille mergulharam em uma grande desafio assim que começou a pandemia: fazer o desmame duplo dos filhos.

As duas amamentavam e, quando a rotina das crianças incluía tardes em um espaço de brincar, o aleitamento acontecia três vezes por dia. "Mas, no primeiro dia que eles ficaram em casa, foram 21 vezes", lembra Marcela, que é produtora de conteúdo sobre maternidade no Instagram e autora do livro "MAMA: um relato de maternidade homoafetiva".

De uma hora para outra, os pequenos, "com autonomia zero", estavam o tempo todo precisando de atenção, lazer, cuidados. Marcela diz que, sem os períodos no espaço de brincar e a rede de apoio, com pais e amigos, em São Paulo, bateu o desespero, logo no início. Estar em casa por tanto tempo também trouxe à tona comportamentos diferentes de Bernardo e Iolanda.

"Nós levamos o Be na pediatra, porque achamos que ele poderia estar no espectro autista. Às vezes, ele batia a cabeça várias vezes num lugar até começar a chorar. A médica nos disse que é como um bichinho enjaulado; por isso, compramos patinete, skate, para ele mover o corpo". Já Iolanda desenvolveu o lado tagarela e mantém o "Mãe! Mamãezinha!" como um mantra que repete sem parar nos ouvidos de Marcela. "É quase insuportável", diz.

Neste ano, o casal mudou a dinâmica: Mel, que é corretora de imóveis, tem focado no trabalho fora de casa e Marcela, que trabalhava em museus, deixou o emprego para se dedicar cuidados diários com os filhos e no conteúdo do perfil do Instagram.

Para passar os dias, Bernardo e Iolanda também tiveram algumas brechas. "Antes da pandemia, eles viam TV uma vez a cada quatro dias. Agora, é todo dia. Também deixamos um tempo que eles comessem onde quisessem; mas já estamos acostumando a sentar no cadeirão para comer e ler um livro", comenta. "Falo para a Mel que essa é a rotina que a gente está montando e fim. É o que dá."

"As expectativas de várias mães que falam comigo no Instagram foram abaixadas, infelizmente, pelo que está acontecendo no mundo"

Marcela Tiboni , mãe, ao lado de Melanie Graille, dos gêmeos Bernardo e Iolanda, de 2 anos

"A pandemia nos dá a chance de sermos mais resolutivas"

Como uma mãe consegue encaixar todas as suas tarefas em um dia só? Mariana Marques deu seu jeitinho: começou a acordar às 5h da manhã. "Como assim você não tem tempo? Lógico que tem, é só levantar às 5h!", ri a executiva e mãe de Luna, 3, e Lucas, 20, que se inspirou no best-seller "O Milagre da Manhã" para performar seu próprio milagre.

Nas três horas que sobram entre o despertar dela e o da filha, ela faz atividade física, medita, reza, toma café da manhã e até garante um banho tranquilo. "E ainda sobra uma hora com a minha filha antes de começar a trabalhar", diz.

Mas, na hora do expediente, sempre surge um "Manheeê!" Às vezes, é choro. Outras, um pedido de atenção. Em alguns dias, Luna pula no colo da mãe na frente do computador e avisa que acabou a reunião: é hora de almoçar. Mariana não reclama.

"A mãe profissional se culpa demais por não poder ficar com os filhos. Quantas vezes eu pude almoçar com meu filho de 20?" Hoje, CEO da Amarq, empresa de gestão de planos de saúde, ela foi mãe solo do primeiro filho aos 18 anos. Chegava a trabalhar 20 horas por dia e contava com a ajuda da vó e da tia para cuidar do pequeno. "Eu precisava trabalhar para garantir a sobrevivência dele. Hoje, ele diz que tem três mães..."

Para dar conta das exigências do cargo, Mariana manteve a babá de Luna durante a pandemia. "Se não tivesse ela, com uma pequena de três anos, eu não conseguiria fazer metade do que tenho que fazer na empresa. Mas sei como é difícil para as mães que não têm essa rede de apoio." Adepta da filosofia de ver sempre o copo meio cheio, ela diz que a quarentena deu a ela e a outras mulheres a chance de se transformar numa pessoa mais resolutiva.

"Quando acabar a pandemia, o problema sempre vai ficar pequeno. Tudo vai ser fichinha."

Mariana Marques, mãe de Luna, 3 anos, e Lucas, 20.

"Gritar mãe é uma delícia. Então, ele pede o dia inteiro."

"Meu Deus, como é que eu vou fazer isso?" Tem dias em que Aline Wirley senta para trabalhar e tem vontade de chorar. "Que loucura é ter uma criança dentro de casa e ainda ter que dar conta de resolver a vida", diz a cantora e compositora, mãe de Antônio, de seis anos. Então, é um tal de "senta lá, toma o celular". Depois, lembra que não pode e tira o celular da criança. Um misto de culpa com necessidade de resolver.

Aline faz questão de ressaltar que o marido, o ator Igor Rickli, é muito presente e divide com ela todas as tarefas da casa. É ele, inclusive, que faz as refeições da casa ("não cozinho nada"). Mas, como toda mãe sabe, tem coisas que pai não resolve. "Gritar mãe é uma delícia. Então, ele pede o dia inteiro."

Em meio ao caos da pandemia, Antônio começou a ter uma dor de barriga aqui, um enjoozinho acolá. E Aline desconfiou que os sintomas eram sinal de algo a que o filho não conseguia dar vazão. "Sabe quando a criança vai murchando? Ele sempre foi solar e estava entristecendo, perdendo o brilho nos olhos." Quando se deu conta, a cantora, acostumada a ser uma pessoa "muito up", também se percebeu diferente: mais introspectiva e ansiosa.

Sem saber o que fazer, começou a buscar todo tipo de ajuda: fez meditação, mas também procurou uma psiquiatra, que lhe indicou medicação. "É difícil falar sobre isso, mas eu não estava mais dando conta. Liguei pra médica e falei: 'Querida, me ajuda, Jesus!'"

Aline passou, então, por um momento de virada de chave em sua vida. "A gente, como mãe, nunca está na nossa lista de prioridades, nunca tá em primeiro lugar, né? Percebi que tinha que me colocar nessa lista e me olhar com mais generosidade."

Recuperar a sanidade mental foi quase um privilégio, diz Aline, filha e neta de mães solteiras, ao lembrar que muitas mulheres não podem pagar por uma terapia ou ter ajuda de um companheiro. "Através da história da minha família, eu vejo muito nitidamente a solidão da mulher preta. Minha mãe abriu mão de sonhos para cuidar de mim. Eu tenho muita sorte."

"Se eu não me cuidar, não vou conseguir cuidar do meu filho. Ele é o reflexo direto de quem eu sou."

Aline Wirley, mãe de Antônio, de 6 anos.

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