Desmaiada de fome e 'linda'

Mariana Goldfarb enfrentou anorexia alcoólica e compulsão alimentar e se mantém alerta para evitar recaídas

Luiza Souto De Universa, do Rio de Janeiro Julia Rodrigues/UOL

Tenho 32 anos e comecei a modelar aos 16. Naquela época, disseram que eu precisava emagrecer o joelho. Também falaram que eu tinha as costas muito largas.

Eu era uma adolescente em formação. Minha cabeça estava sendo moldada. Nunca esqueci aquelas palavras. É algo que perdura.

Então passei a ingerir diurético, remédio para emagrecer, laxante. Ficava horas sem comer ou comia um pedaço de peixe. Mal consumia legumes, verduras e frutas porque achava que tudo era carboidrato; e, portanto, um perigo. Era uma vida infeliz, de restrição. Seis anos atrás, meu corpo passou a manifestar os primeiros sinais da anorexia.

Comecei a desmaiar na academia, depois da aula de spinning, e ali vi que algo não estava legal. Mas, ao mesmo tempo que passava mal, recebia elogios pelo meu corpo e fechava contratos de trabalho. As veias da minha barriga saltavam, mas pensava estar linda.

'Será que agora vou ser amada?'

Bebia muito para tentar anestesiar a dor que estava sentindo e tive anorexia alcoólica [quem tem este transtorno substitui alimentos por álcool]. Podia parece bonita aos olhos dos outros, mas estava sem luz. Por isso, precisamos parar de elogiar uma pessoa porque está magra. Diga que ela é interessante, que tem energia boa.

E devemos tomar cuidado com os comentários. Pessoas próximas falavam "nossa, como você está forte, corpulenta". Ainda pegavam no meu corpo. Eu odiava aquilo.

Precisamos aprender a elogiar de outra forma, não focar na parte externa. Tenho coisas aqui dentro pelas quais quero ser reconhecida. Não quero ser conhecida pela beleza.

Nós, mulheres, somos bombardeadas o tempo inteiro com comentários sobre nosso corpo, além de comparações entre mulheres. Fomos ensinadas, desde novinhas, a prestar atenção na opinião dos outros. Quando estava doente, me olhava no espelho e falava "será que agora vou ser amada?"

Sou grata pelo tempo em que trabalhei com moda. Mas, se tivesse uma filha que quisesse ser modelo, tentaria conversar com ela de uma maneira didática sobre o que isso representa.

Existe um glamour em torno da carreira artística. Mas não se fala de saúde mental, de como a pessoa fica por dentro.

'Você nunca mais vai fazer isso'

Como consequência das restrições alimentares, parei de menstruar por três anos. O corpo precisa de gordura para produzir hormônios e isso não estava acontecendo comigo. Fiquei apavorada porque quero ser mãe. Foi um período muito difícil.

Eu provocava vômitos depois de comer. Na terceira vez, assumi que precisava de ajuda. Lembro direitinho que me olhei no espelho, dei uns tapinhas no rosto e falei "você nunca mais vai fazer isso, você vai procurar ajuda." Percebi que alguma coisa estava fora do lugar. Naquele momento, fui para a terapia.

Não procurei nenhum outro especialista. Também não usei medicamentos. Foi um trabalho de formiguinha, feito com calma. Escrever me auxiliou no processo, porque ajuda a dar nitidez ao pensamento.

O processo de cura não é linear. Tive recaídas e até hoje fico em estado de alerta, prestando atenção, senão me boicoto. Por exemplo: fiquei um bom tempo restringindo minha alimentação. Daí tive momentos de ansiedade e comi por compulsão, porque a restrição gera a compulsão.

A ioga também mudou tudo. Tudo que envolve a mente e a respiração é uma ferramenta fantástica. Também decidi estudar para entender como os alimentos agem em nosso corpo e hoje sou nutricionista.

Ainda em processo de cura

Percebi que estava começando a me curar quando parei de ser a louca do exercício físico. E isso é de agora. Até ano passado, não me permitia ficar nenhum dia sem malhar, mesmo exausta. Pode parecer uma mudança sutil; mas, para mim, é evidente que estou num caminho de cura.

Também aprendi que só posso controlar o que acontece dentro de mim. O que os outros fazem não é responsabilidade minha. Não preciso agradar todo mundo. Assim, comecei a me sentir confortável na minha pele.

Mas é um dia de cada vez. Procuro não colocar pressão em mim. E ter rede de apoio. É mais difícil sair disso sozinha. Temos que buscar ajuda especializada e acolhimento nos amigos, familiares, no marido, para que estejam perto nos possíveis momentos de recaída.

O que mais funcionou para mim foi a empatia, as manifestações de pessoas dizendo entender o que eu estava passando e me levando informações sobre o tema. Gostava quando elas me indicavam filmes ou livros a respeito do assunto.

Honre suas cicatrizes

No processo de cura, o mais importante é procurar se encontrar e não esperar que o amor venha de fora. Ele vem de dentro. A anorexia e a compulsão surgem de uma necessidade de intimidade e amor. Temos que começar a nos dar mais amor.

Tive rede de apoio, mas a principal ajuda veio de dentro de mim. Às vezes, não adianta pai, mãe, marido, irmã e outras pessoas próximas falarem. É um clique que só o doente pode dar.

Noto que só agora estou conseguindo juntar os pedaços. Tem uma arte japonesa [Kintsukuroi] que consiste em colar os pedaços de um vaso quebrado com fios de ouro. Sinto o mesmo acontecendo comigo.

Meu corpo foi quebrado várias vezes em mil pedaços, mas estou colando as partes com pedaços de ouro. Estou encontrando e honrando minhas cicatrizes.

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