Mulher de aço

Estudante encara falta d'água, desinformação e pobreza extrema para combater Covid-19 na favela do Aço

Elena Wesley* Colaboração para Universa Giulia Santos/UOL

O carrinho de mão segue pelas ruas acidentadas, sacolejando dezenas de embalagens de alimentos. O atrito entre o arroz e o feijão compõe um barulho ritmado, mas é abafado pelo palpitar acelerado do coração de Moanan Couto. Enquanto equilibra os itens no compartimento, a jovem de 20 anos questiona se as 300 cestas básicas arrecadadas serão suficientes para as famílias que ficaram ainda mais vulneráveis com a pandemia do novo coronavírus.

A ponderação é interrompida pelos gritos das crianças que, ao reconhecê-la, abandonam a brincadeira e correm ao seu encontro. O abraço, porém, terá que ser negado. Determinação da OMS (Organização Mundial da Saúde). Com carinho, ela explica por que é preciso evitar o contato e pergunta se já lavaram as mãos. "Mas, tia, como eu vou lavar a mão se tá faltando água?", retruca uma das crianças.

Por trás da máscara, a boca engole em seco. A recomendação da OMS parece simples: para se proteger do coronavírus, lave as mãos com água e sabão. Mas o mínimo aqui é luxo. Neste lugar, alguns direitos básicos estão muito distantes.

A falta de água está entre os principais desafios enfrentados pelas favelas cariocas para se protegerem da Covid-19, doença que já dizimou dezenas de milhares de pessoas no mundo, mais de 7.000 no Brasil.

O Aço, no bairro de Santa Cruz, na zona oeste do Rio de Janeiro, é uma delas. A maioria das 10 mil residências que compõe a favela não possui caixa d'água particular e depende de um único reservatório, cujo abastecimento é irregular. As condições sanitárias se agravam devido ao saneamento básico irrisório numa região onde inundações são frequentes. É possível observar o esgoto exposto no quintal de algumas casas, disputando espaço com as brincadeiras das crianças.

Um estudo da Fiocruz de 2017 apontou a alta propensão a casos de leptospirose no bairro, oitavo colocado no ranking de piores IDHs da capital fluminense (0,74). O Índice de Desenvolvimento Humano considera a expectativa de vida, a renda e o nível de escolarização.

"Saneamento é quase inexistente aqui"

Estudante explica por que decidiu criar uma mobilização coletiva em busca de ajuda

Mobilização arrecadou 300 cestas básicas

Num dia normal, as ruelas do Aço são inundadas por crianças e vira-latas correndo, enquanto adolescentes reunidos em grupo batem papo nas esquinas ou no portão de algum vizinho. É assim no "Vagão" ou na "De alta", divisões da favela criada pelo governo estadual como um projeto de moradia provisória na década de 1960 e, oficialmente, batizada de Vila Paciência.

Em tempos de coronavírus, os cômodos apertados e a falta de opção de lazer dificultam o cumprimento do isolamento social. Para tentar convencê-los a se cuidarem, Moanam recorre à admiração que os jovens já nutrem por ela e pela amiga Rayane Marques, 19, que fundou com ela o Levante Aço, uma iniciativa de empoderamento de adolescentes e jovens entre 13 e 20 anos para tornar o ingresso na faculdade uma meta possível.

Boa parte dos jovens do Aço está no mercado informal. É comum vê-los como cobradores das vans do transporte alternativo, gritando os pontos principais do trajeto Santa Cruz x Campo Grande com metade do corpo fora da janela. Outros vendem balas e biscoitos nos ônibus BRT com destino à Barra da Tijuca, bairro nobre que parece não fazer parte da mesma zona oeste onde os ambulantes residem.

Com o isolamento social provocado pela pandemia, a circulação de veículos e de passageiros sofreu redução, o que culminou na perda de uma importante fonte de renda dos moradores. A medida frustrou os planos dos 35 adolescentes que participam do projeto Levante Aço, ansiosos pelo passeio ao Museu do Flamengo, que já estava agendado. No entanto, foi a preocupação com a alimentação das famílias que tirou o sono dos oito organizadores do Levante.

Arquivo Pessoal

A luta contra a fome

A mobilização coletiva, com a Ser Cidadão e o Rotary, ganhou força nas redes sociais. Em poucos dias arrecadaram cerca de R$ 8.000. Sem muito acesso a celular ou internet, os adolescentes da região se organizaram para colaborar presencialmente na montagem e distribuição das cestas.

O desafio no Aço transcende a urgência da fome. Mesmo ciente disso, Moanan não deixou de ser afetada por tantas ausências. O vazio das despensas escancaradas pelos vizinhos -sem nenhuma alternativa para abastecê-las a não ser a solidariedade- aponta que os problemas na favela não são causados pela pandemia e, sim, evidenciados na crise.

"Fiquei muito mal naquele fim de semana [no início da pandemia], a gente não sabia o que fazer. Daí, falamos com outros dois coletivos daqui [Plataforma CASA e PEPUC], também dirigidos por mulheres, e pensamos em arrecadar alimentos para quem já tínhamos mapeado, muitas casas com idosos e pessoas com deficiência", lembra Moanan.

E os R$ 600 oferecidos como solução pelo governo federal? Os pedidos de renda emergencial esbarram na falta de documentos, perdidos em enchentes provocadas pelas chuvas do último verão, e no desconhecimento sobre as ferramentas tecnológicas necessárias. É mais uma frente de trabalho aberta para o Levante Aço.

A experiência corrobora para a percepção do quanto os direitos são negados à periferia. "A gente estuda a teoria linda do Direito Constitucional, daí sai 22h da faculdade, pega trem lotado, chega em casa meia-noite para acordar cedo no dia seguinte e fazer tudo de novo. Essa é a realidade da periferia. Tem professor que não faz ideia do que é ter rato e esgoto passando na sua porta, mas quer ensinar o que é saneamento básico. Não preciso do Direito para fazer o que eu faço, mas ele me ajudou a entender como o sistema foi feito para nos manter nessa situação de vulnerabilidade", conta Moanan que leva duas horas entre a UERJ e sua casa.

A determinação com o Levante Aço ampliou o orgulho que os pais já sentiam pela primeira integrante da família a ingressar na universidade. "Ela sempre foi estudiosa, desde pequena. Corre atrás das coisas dela, gosta de trabalhar. Mas fiquei admirada com a dedicação ao projeto e dou todo o apoio. Ela tem uma cabeça para frente", elogia a dona de casa Luciana Couto, mãe de Moanan.

Com a máscara e as luvas que se tornaram seu uniforme, Moanan vai ampliar o mapeamento de jovens que contribuem com a renda familiar nas comunidades vizinhas do Cesarão e Rollas, como parte de uma estratégia de mobilização da União Coletiva da Zona Oeste, formada para combater o Covid-19 na região.

A próxima entrega de cestas básicas, prevista para este mês, será reforçada com livros, gibis e jogos de tabuleiro, numa tentativa de ajudar as crianças e adolescentes a permanecerem em casa. Já o abraço na criançada do Aço, que olha Moanan com olhos vibrantes de admiração, só quando a pandemia passar.

Para doar:
Moanan C. do Couto
Banco Bradesco
Ag 0473 Conta Corrente 19246-5
CPF 176.825.107-06

Giulia Santos/UOL Giulia Santos/UOL

A minha sorte é ter saúde pra me esquivar de todo o mal/refletir nesse inferno e tal/fazer a minha parte bem/ser um espelho também/pra quem está chegando, poder contar com alguém

trecho da música H.Aço do DMN

Conexão faculdade-favela

Pouca renda, baixa expectativa de vida e alta evasão escolar. Dados como esses motivaram Moanan, criada no Cesarão, favela vizinha ao Aço, e a amiga Rayane Marques, 19, a fundarem o Levante Aço, uma iniciativa de empoderamento de adolescentes e jovens entre 13 e 20 anos, a partir de atividades socioeducativas e culturais.

A faísca acendeu quando a dupla - que cursa Direito na UERJ e História na PUC, respectivamente - se uniu para orientar quem saía do 9º ano do ensino fundamental a ingressar em escolas de referência do Ensino Médio. De casa em casa, elas explicavam o processo aos responsáveis e inscreviam os adolescentes na seleção.

"Geralmente, quem mora aqui vai para um colégio dentro da comunidade que nem tem aula direito. Então, organizamos um evento com ex-estudantes de escolas públicas que estão na faculdade, para mostrar aos adolescentes que essa possibilidade existe. Muitos deles param no ensino fundamental, desistem de estudar para ajudar em casa, seja para cuidar de um irmão mais novo ou para trabalhar", diz Moanan Costa do Couto.

Ana Clara de Almeida participou do mutirão para arrecadar alimentos. A estudante, de 15 anos, se emociona ao se lembrar do sorriso das pessoas beneficiadas com alimentos e itens de higiene pessoal. "Todo mundo ficou feliz. Não é muito, mas vai ser menos coisa pra comprar." Ana Clara é uma das novas lideranças que surgem no Aço, inspirada por Moanan, uma pessoa "incrível", segunda ela, que a ajudou a tirar carteira de trabalho e a se inscrever numa escola melhor.

Braço-direito das fundadoras do Levante, Ana Clara é responsável por replicar, no coletivo, o clube do livro que desenvolveu no colégio.

"Somos exceção! Não é fácil sendo de onde a gente é, mas não é impossível. Se a gente conseguiu chegar à universidade, é porque recebemos suporte de outras instituições e pessoas, que nos ensinaram o que é Enem, o que é Prouni. Queremos ser essa referência para eles. A gente não tem pretensão de mudar tudo, mas alguém precisava começar, e a Moanan foi quem deu o empurrão. Trabalhar com ela é leve, nem parece trabalho, é uma amizade que eu espero levar pra sempre", afirma Rayane.

Para Moanan, ter uma equipe majoritariamente negra é um ingrediente fundamental para criar identificação. Ela acredita que a representatividade estimula os adolescentes da favela a se enxergarem nelas com mais facilidade.

O amigo de faculdade Alan Gangana de Andrade, morador de Campo Grande, também na Zona Oeste, endossa a opinião, afirmando a importância de projetos desenvolvidos por quem mora na comunidade, pois "entende os reais problemas" dos moradores.

Os dois se conheceram no Coletivo Negro Patrice Lumumba, na UERJ, onde trocam ideia sobre a experiência de serem jovens negros da zona oeste, os desafios que essa identidade acarreta e o desejo de multiplicar o que aprendem na região onde vivem.

"[O lugar] onde a gente cresceu influenciou quem somos. Na zona oeste, as disputas de território são diferentes, a qualidade de vida, os costumes. Isso nos diferencia, e a Moanan passa por isso. Onde ela estuda e onde ela vive são lugares totalmente diferentes e distantes. Isso é muito difícil e, por isso, a admiro. Ela é muito nova e consegue conciliar a faculdade e o trabalho em prol do Aço", analisa

Ver o moleque viciado na televisão/o baixo nível da escola e da educação/a preta linda que não olha no espelho/tem vergonha do nariz/da boca e o cabelo

trecho da música H.Aço do DMN

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