A capacidade de amar

Quatro mulheres com deficiência revelam como vivenciam o amor e o prazer para além dos estereótipos

Nathália Geraldo De Universa Arte UOL

Imagine que você e seu parceiro estão se beijando no meio da rua e que essa simples demonstração de afeto se torna uma "atração" para quem está passando pela calçada. É isso que a analista de projetos Fabiola Pedroso, uma mulher paraplégica, vive constantemente ao lado do namorado.

Ela usa cadeira de rodas e, além de ficar sob os olhares de quem não tem nada a ver com seu relacionamento, já ouviu pessoas dizerem 'parabéns' ao parceiro por estar com ela.

A criadora de conteúdo Julia Aquino, que também usa cadeira de rodas, sabe de onde vem esse preconceito. "Há pessoas que acreditam que nós, que temos deficiência, não transamos, que somos anjos ou 'alecrins dourados'." Bem, não são.

O que elas enfrentam é o capacitismo, atitudes discriminatórias, conscientes ou não, que subjugam a autonomia de alguém e colocam em primeiro lugar as deficiências, como se, apenas elas, definissem o ser humano. Pela ótica de um capacitista, as pessoas com deficiência (PCD) talvez não sintam desejo e tampouco sejam livres para viver a sexualidade plenamente.

São olhares que, de alguma forma, colocam limites para a capacidade de amar tão universal e cara a todos nós. Universa ouviu quatro mulheres sobre suas experiências afetivas e sexuais, os preconceitos e medos que fazem parte de suas vidas amorosas, e a descoberta da própria sexualidade em diferentes níveis.

Arquivo pessoal/Arte UOL

'Relação é como qualquer outra, ou seja, tem particularidades'

"Até meus 18 anos, meus relacionamentos aconteciam de forma virtual, muito por causa da minha deficiência e porque dependia muito da minha mãe para sair. Foi só com essa idade que beijei uma menina pela primeira vez.

Percebi que gostava de meninas aos 13 anos e só interagia com elas por meio de perfis falsos no Orkut, o que era comum na época. Mas o que era diferente das experiências que minhas amigas sem deficiência viviam é que não se aproximavam de mim. Até hoje é assim, parece que existe um "receio" —algo que, para mim, está ligado ao capacitismo.

Quando eu não tinha noção disso, me anulava em alguns momentos. A pessoa falava: 'Tenho medo de ficar com você, porque não sei como vai ser' e, pronto, me recolhia.

Agora, já aviso que o relacionamento com uma pessoa com deficiência é como qualquer outro, ou seja, tem suas particularidades. Tenho exposto cada vez mais minhas limitações, principalmente depois que comecei minha vida sexual, aos 21 anos, porque minha forma de fazer sexo é muito particular.

Por outro lado, sei que as pessoas sem deficiência têm uma ideia muito normativa do que é transar. Por isso, sempre converso sobre o que eu gosto, o que ela gosta, porque é isso que vai ditar nosso prazer.

Hoje, aos 24 anos e com um trabalho de produção de conteúdo na internet sobre ser uma PCD, quero me relacionar com pessoas que entendam minha luta. E embora estejamos compreendendo mais o capacitismo, ele existe. Há pessoas que acreditam que quem tem deficiência não transa, que é anjo ou 'alecrim dourado'."

Julia Aquino, estudante de psicologia e influenciadora

Divulgação/Arte UOL

"Nunca namorei, mas tive meus rolinhos"

"Sou reservada sobre minha vida pessoal, não só por ser uma mulher com deficiência. O que conto é que nunca namorei e, por isso, faço a brincadeira de estar 'solteira há 84 anos' nas redes sociais. Isso não significa que não tive rolinhos. Nas festas da faculdade, por exemplo, ficava com alguns meninos. Era uma fase em que queria conhecer pessoas novas.

Com uns 15 anos, tinha meus contatinhos pelo MSN, Orkut. Mas, ir em um date, não. Nessa época, já aceitava minha condição física, mas também tinha aquele pensamento: 'O que o menino com quem quero sair vai pensar?'

Por outro lado, já ouvi comentários capacitistas de alguns, principalmente em relação a minha altura. Sou baixinha e, às vezes, o cara chega falando disso. Corto logo, porque falar da condição física de alguém não é piada.

Passei por um processo de autoaceitação. Quando criança, descobri que era diferente. Depois, fui entendendo que era também vaidosa e até hoje faço cabelo, unha, adoro quando preciso de maquiagem para algum trabalho. Agora, vejo que sou bonita, sim.

Estou mais preparada para namorar. Mas quero me relacionar com um homem, seja anônimo ou famoso, que entenda minha rotina como criadora de conteúdo, porque é uma correria, estou sempre viajando. Por enquanto, converso por videochamada, mensagem privada do Instagram... Quando acabar a pandemia, estou louca para voltar às festas também.

Lorrane Silva, a "Pequena Lo", criadora de conteúdo

Quando eu não tinha noção do capacitismo, me anulava em alguns momentos. A pessoa falava: 'Tenho medo de ficar com você, porque não sei como vai ser' e, pronto, eu me recolhia.

Julia Aquino, influencer PcD

Arquivo pessoal/Arte UOL Arquivo pessoal/Arte UOL

"Acreditam que é difícil se apaixonar por alguém com deficiência"

"Se perguntarmos para os homens sem deficiência com quantas mulheres com deficiência eles já transaram ou se relacionaram afetivamente, serão poucos que responderão algo diferente de zero. As pessoas acreditam que é difícil se apaixonar pelo corpo com deficiência.

Vivo minha experiência como uma mulher heterossexual, negra, que veio da favela e essa construção social fala muito sobre o que passo. Sempre tive a autoestima boa, porque minha família me propiciava isso. Minha mãe foi a pessoa que me deu a primeira lingerie sensual, por exemplo.

Mas fui aprendendo a ser atraente, a me interessar pelos outros, porque a sensualidade por vezes é algo que a gente copia. E, como não enxergo, como iria entender o que era sexy, visualmente falando? Nesse sentido, a minha construção foi um pouco mais demorada.

Hoje, tenho um companheiro, Lucas, com quem tenho meu filho, Davi, de 1 ano. Meu parceiro atual lida muito bem com minha deficiência, ela faz parte de mim e isso nunca foi um impeditivo para nossa relação. Aliás, fui eu quem cheguei paquerando ele, em uma festa de Ano-Novo, e ele já sabia que eu não enxergava.

Mas, quando estava nos aplicativos de relacionamento e não colocava minha deficiência na descrição do perfil, os caras sumiam quando conversávamos sobre isso. Na adolescência, até tive as mesmas 'paixonites' que minhas amigas, mas isso também acontecia: por minha deficiência não ser aparente, já que tenho o olho vivo, os meninos se afastavam quando descobriam. E eu acabava sendo só o 'cupido' do grupo.

Lembrar da Nathalia de 16 anos me mostra que isso pesou na minha juventude, enquanto as meninas saíam com os crushes no sábado à noite, eu estava em casa lendo um livro. Será que lia porque queria, ou por que não tinha companhia?"

Nathalia Santos, jornalista e palestrante

Arquivo pessoal/Arte UOL

"Digo para todos: meu namorado não é meu cuidador"

"'Eu tenho medo de te machucar'; 'Mas, você transa?' Por muito tempo estive em aplicativos de relacionamento, e já recebi esse tipo de mensagem de homens com que dei match. Parece que uma mulher com deficiência é frágil. Meu namorado nunca me tratou dessa forma.

Como uma mulher paraplégica, demorei muito tempo para entender que sou uma pessoa sexual e que tenho direito de sentir prazer. Mas, fui um caso à parte nas experiências entre minhas amigas cadeirantes: dei meu primeiro beijo aos 9, transei pela primeira vez aos 16. Há mulheres que têm 35 anos e ainda são virgens.

Conheci meu namorado pelo Tinder, há três anos, e sei que com ele vai além da beleza física. Tenho uma escoliose bem acentuada, que não considero bonita. Mas aprendi a conviver com isso. Também não sou magra, não uso sapato, há várias coisas que as pessoas não consideram bonitas.

Além disso, tenho 1,50 m e, ele, 2 metros. Quando no beijamos é um evento na rua. Há quem pare até para falar: 'Parabéns, cara', como se ele estivesse fazendo um favor.

Estamos planejando casar, o que só não aconteceu ainda por causa da pandemia, e surgem outras perguntas capacitistas: 'Ele que vai cozinhar para você?', 'Quem vai arrumar a casa?'. Não, gente, ele é meu namorado, não é meu cuidador.

Fabiola Pedroso, analista de projetos

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Reprodução/Instagram @fenobre

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