#mulherdepreso

Chamando umas às outras de 'cunhadas', esposas de presos são sucesso no TikTok com rotina de visitas e saudade

Rute Pina De Universa, em São Paulo

"Matheus, se você for preso, pode esquecer! Não vou te visitar!" Quem manda o recado é a auxiliar de dentista Letícia Nascimento, 27, em um vídeo publicado em sua conta no TikTok. Letícia tem, na rede social, 125 mil seguidores. E tudo porque: Matheus está preso.

O recado faz parte de um vídeo bem-humorado que mostra, na sequência, Letícia arrumando uma bolsa de plástico transparente -único modelo permitido para visitas em presídios. Depois, ela surge em um vagão do metrô, usando calça legging -outra exigência das penitenciárias. Tudo isso acontece em dez segundos, ao som da música "Tome Baby", de Mc Nedved.

Como Letícia, há várias mulheres ganhando fama nas redes sociais mostrando a rotina de como é ser mulher de preso, as dificuldades, a saudade, mas também fazendo piada com a própria vida.

Usam a hashtag #mulherdepreso, chamam-se de "cunhadas" -já que os maridos são considerados irmãos na cadeia-, e fazem parte de uma comunidade online com mulheres na mesma situação, criando uma rede forte de apoio e acolhimento. O que veio na sequência? Milhões de visualizações, likes e seguidores.

De rainha da Cohab a Barbie da cadeia

"Eu era rainha da Cohab, agora sou a Barbie da cadeia", brinca Letícia ao se preparar para mais uma viagem que sai de Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, e vai até a penitenciária de Balbinos, interior do estado. São cinco horas de trajeto, repetido a cada 15 dias.

Com a sacola e tigelas transparentes prontos, ela grava um vídeo que, mais tarde, vai gerar mais de 200 mil visualizações no TikTok.

Em maio, a reportagem encontrou Letícia em sua casa antes de uma dessas viagens. Após se arrumar, pega um trem até os arredores do terminal Barra Funda, no centro da capital paulista. Lá, barracas vendem sacolas transparentes, chinelos e lingeries apropriadas para as visitas íntimas: os sutiãs de renda, sem aros, evitam que as mulheres tenham problemas ao passar pelos detectores de metal. O modelo de maior sucesso, conta a vendedora, é o "vem ni mim papai" —o modelo de renda preta com laterais mais finas, em verde limão.

Letícia é guia de excursão para o presídio. Naquela sexta-feira ela se apressa para chegar às 20h no local e começar convocar as mulheres que confirmaram presença na excursão. Lá, ela é chamada de "blogueirinha" por causa das milhares de visualizações que acumula nos seus vídeos.

Mas a ideia, ela conta, não é ser influencer.

"Conto o que vivo sem romantização" - Letícia Nascimento.

No dia seguinte, às 7h, ela está na fila para entrar na penitenciária. Com o frio de 9ºC, uma colega diz: "Aqui, só as guerreiras". Letícia demonstra a mesma personalidade bem humorada dos seus vídeos no TikTok e rebate: "Só as otárias, né?", gerando gargalhadas em uníssono dentro do ônibus.

A viagem de ida é animada e cheia de expectativas. A volta é triste e permeada de cansaço, e um trecho de um pagode do Exaltasamba dá o tom do que fica, a saudade: "Olha só como é bom / Amanhecer assim / Nosso amor tem o dom / De superar o fim / Meu amor, fica um pouco mais aqui."

Vídeos com marido só nas "saidinhas"

Jéssica Moraes, 23, não pensava em ficar famosa nas redes. Mas, em dezembro do ano passado, um vídeo que postou com o marido no TikTok atingiu 2 milhões de visualizações por uma confusão: as pessoas pensaram que ele era Diogo Eloi, conhecido como Dantes, jogador de Free Fire famoso na internet. "Ela namora o Dantes?", dizia um comentário. "Caramba, é ele sim", replicou outro. Para esclarecer o equívoco, ela publicou um novo vídeo no dia 28 de dezembro. "Não é ele e posso provar: meu marido está preso." Como assim preso?, se questionaram os usuários da rede. O novo vídeo atingiu 1,9 milhão de visualizações.

A partir daí, Jéssica passou a contar mais detalhes do seu relacionamento para sanar a curiosidade dos seguidores. Hoje, são mais de 150 mil pessoas que acompanham suas publicações. "Ainda é um tabu. As pessoas querem saber como funciona lá dentro porque é um mundo a que elas não têm acesso."

Ela e o marido, William Ricardo, 28, estão juntos há sete anos. Ele cumpre pena desde 2018 em uma penitenciária em Itajaí (SC), município próximo a Balneário Camboriú, cidade onde ela mora. Ele foi preso como réu primário por tráfico de drogas e, agora, cumpre regime semiaberto, o que possibilita saídas de 14 dias duas vezes por ano. Na primeira tentativa de entrevista com Jéssica, ela protelou o pedido por uma semana, pois estava acompanhando o marido em uma de suas "saidinhas" e o foco era 100% nele.

Esses são os únicos momentos em que a imagem de William pode aparecer nas redes dela. E isso ela aprendeu na marra: depois de postar um print de uma chamada de vídeo com ele, feita durante a pandemia, ela teve uma sanção e não pode visitá-lo entre janeiro e março deste ano.

Visita só para quem é casado

Letícia e Mateus estão juntos desde 2019. Eles se casaram em junho de 2020, uma semana depois de ele ser preso. Ela fez uma pequena comemoração na data em que assinou a união, em um churrasco apenas para o círculo mais íntimo da família dela, que aprova o relacionamento —como sua mãe, que adora o genro.

Ele teve que formalizar a relação para obter a declaração de amásia, como elas chamam o atestado de vínculo com o preso, que é uma exigência do sistema penitenciário para as visitas.

Stefany Pereira, 21, também teve que assinar a união estável com o namorado em janeiro de 2019, quando ele foi preso. Ela é tiktoker e se inspirou em Letícia para começar a fazer seus vídeos, como ao mostrar a preparação do jumbo — a cesta que envia com itens de higiene e alimentos para o companheiro. "Decidi gravar para o TikTok o vídeo do sedex, mostrando o que eu iria enviar de alimentos naquela semana. Postei sem edição, bem simples e teve mais de cinco milhões de visualizações."

"Já passamos por uma realidade sofrida. Com os vídeos, tentamos tirar esse sofrimento e trazer para um lado engraçado. Não para romantizar, mas para não deixar esse sofrimento acabar com a gente" - Stefany Pereira

O casal está junto há cinco anos, três na rotina da prisão —ele está em Hortolândia, a três horas de Itaquaquecetuba, cidade onde Stefany mora, ambas em São Paulo. "Quando ele foi preso, foi um choque. Eu tinha acabado de completar 18 anos, pensei em abandoná-lo. Mas passamos a nos comunicar por cartas, ele disse que mudaria, fiz os documentos [da amásia] e estou aí até hoje. Mas é uma rotina bastante difícil", conta.

"Na pandemia, por exemplo, ficamos um ano e meio sem nos vermos, e a mãe dele faleceu. Não tive como avisá-lo — foram os policiais que deram a notícia", lembra.

Ofensas vão de 'marmita de preso para baixo'

Muitas publicações de Stefany no TikTok são respostas às interações de seguidores —mas, no meio de curiosidades como "pode entrar com Gillette lá dentro?", há diversos comentários ofensivos.

"Muita gente aparece julgando os vídeos, dizendo, por exemplo, quando postamos os alimentos que enviamos, que um trabalhador não é tão bem tratado quanto um preso, muita coisa negativa. Mas continuo fazendo os vídeos porque a opinião das pessoas não muda em nada o que sinto pelo meu marido. Só julga quem não sabe como é", diz.

Assim que começou a atrair um público interessado em saber sobre o cotidiano de mulheres que têm companheiros presos, Jéssica Moraes conta que também começou a receber diversos comentários ofensivos. "De 'marmita de preso' para baixo. Eles tentam te ferir de todo o jeito. Mas eu encarei isso como uma forma de mostrar que ele é diferente. A gente faz isso porque acredita na recuperação e na mudança."

Outro comentário que aparece com frequência nos vídeos questiona a fidelidade dos maridos. Depois de todo esse corre delas e anos de dedicação, o que vai ser do relacionamento? Elas não têm medo de serem abandonadas? Letícia brinca: "Só se ele for burro".

. .

'Precisamos provar que não somos criminosas'

O julgamento, diz Jéssica, não é somente na internet. Ela, por exemplo, foi demitida de um emprego como costureira assim que William foi preso. No trabalho seguinte, ela passou um ano mentindo sobre a ausência do marido. "Dizia que ele trabalhava em uma plataforma de pesca e estava embarcado, por isso não estava comigo".

Ela conta que os comentários mudaram conforme as cunhadas ganharam espaço e visibilidade na internet. "A Virginia Fonseca [youtuber que tem mais de 37 milhões de seguidores no Instagram] comentou uma publicação minha, muitas pessoas apareceram dizendo 'se ela não julga, quem sou eu para julgar'. O preconceito ainda existe, mas acho que as pessoas têm aceitado mais depois que #mulherdepreso bombou."

"Esses vídeos ajudam as mulheres a não se esconderem. Por muito tempo a gente se escondeu. Quando comecei a visitá-lo, era vista como uma aberração, as pessoas me olhavam diferente, como se eu tivesse cometido um crime também. Mas existem muitas mulheres iguais, que têm filho, marido ou irmão preso" - Jéssica Moraes.

A rotina de visitas, conta Jéssica, também é sofrida. Ela relata já ter passado por diversas revistas vexatórias. "Já tive que ficar nua, me abaixar na frente de um espelho. Se tivesse algum corrimento, eles te mandariam embora", lembra. Hoje, ela afirma que ainda existem regras arbitrárias, como não entrar com cílios postiços e esmalte escuro.

"Eles deveriam saber que a família é uma peça fundamental para ressocialização do preso. Mas a todo momento a gente tem que comprovar que não estamos levando nada, que não somos criminosas."

A fila da visita tem gênero

A socióloga Rosângela Teixeira estudou como são construídos os laços de afeto em torno da prisão, principalmente nas visitas, que faz com que as mulheres —que ela identificou ser a maioria dos visitantes a pessoas em situação de cárcere — se desloquem centenas de quilômetros toda a semana. Sua tese de doutorado foi defendida em 2019 na Universidade Federal do ABC.

Ela explica que com a interiorização dos presídios após o massacre do Carandiru, em 1992, familiares de pessoas presas precisaram se organizar entre si para manter o vínculo com seus parentes e trocar informações sobre o que ocorria dentro do sistema penitenciário.

"Percebi que a internet era um veículo para as mulheres se conectarem. Por exemplo, as permissões sobre o que levar e o que vestir variam muito em cada unidade prisional. Ou mesmo para saber como chegar ou como fazer uma visita aos seus companheiros. Grupos de Facebook e WhatsApp são usados para trocar informações sobre rotas de viagem, roupas adequadas e por aí vai", diz Rosângela.

"O TikTok pode ser uma nova possibilidade de conectar essas mulheres que estão vivenciando situações semelhantes."

Até 2019, apenas no estado de São Paulo, ao menos 1,5 milhão de pessoas já tinham passado pela prisão. "O Brasil é um dos países que mais encarcera no mundo. Parece que a prisão é algo muito distante, mas está próxima e na rotina de muitas pessoas. Esses canais são uma forma de criar vínculos e encontrar apoio mútuo."

A pesquisadora comenta que o relato das mulheres ajuda a desconstruir o preconceito. "Esses vídeos possibilitam que elas mostrem que são pessoas comuns e ajudam a romper com a estigmatização. Eles são uma forma de resistência."

Letícia conta que recebe muitas mensagens de mulheres que estão com familiares presos e se identificam com seus vídeos. "A cadeia me deu de presente muitas amigas. É diferente conversar com alguém que vive o mesmo que você."

Leia também

Maria Toscano/UOL

Jornada dupla

Fabiula Nascimento conta como chegada dos gêmeos a fez ressignificar a vida

Ler mais
Zô Guimarães/UOL

'Você é minha mãe, né?'

A história da influenciadora Gabi Oliveira, que aos 28 adotou, sozinha, dois filhos, de 9 e 4 ano

Ler mais
Julia Rodrigues/UOL

Fera de batom

Milionária e ex-cancelada, Bianca Andrade é o cérebro por trás do império Boca Rosa

Ler mais
Topo